“Quanto mais polarizada é uma sociedade, mais burra, autoritária e menos democrática ela é. O Brasil é exemplo disso”

Andrés Bruzzone - 10 maio 2021
Andrés Bruzzone, autor de "Ciberpopulismo - Democracia e política no mundo digital".
Andrés Bruzzone - 10 maio 2021
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Uma convicção pode ser a mais perversa das prisões. Quando o que sei não pode ser questionado, escuto apenas o que me confirma. O que é diferente, recuso. Quando tenho toda a razão e o outro, nenhuma, não existe diálogo. Preso nas minhas convicções, reduzo a possibilidade de pensar. Não há como aprender sem estar disposto a mudar de ideia, e para mudar de ideia devo aceitar que a minha convicção pode estar errada.

Polarização é quando duas convicções opostas ocupam todos os espaços do debate político. Quando a política se transforma em mero embate entre posições que se excluem, sem pontos de encontro nem terreno comum. Quando não há adversário, mas inimigo. As alternativas, aquelas posições que não se encaixam em um dos dois lados, são postergadas ou negadas. O debate se faz impossível. 

É como se as mensagens transitassem por canais paralelos, ou fossem ditas em línguas diferentes: eu falo em aramaico, você responde em sumério. Pior: a língua é a mesma, as palavras são iguais – mas significam coisas diferentes dependendo de quem diz 

Paramos de escutar, não interessam os argumentos. Deixa de importar o que é dito, importa quem disse: se foi alguém que é da minha posição, vou defender sem questionar. Mas se for do outro lado, nego e rebato. 

Trocam-se palavras de ordem e memes, há menosprezo pelo argumento. Quem não está alinhado com uma das duas posições dominantes não tem voz: o que diga será entendido como apoio ou crítica a um dos dois polos. “Se você não concorda comigo está fazendo o jogo de X”. “Você diz isso porque no fundo você é Y”. As ideias se impõem por relação de força – não a força da razão, mas a razão da força. Quem grita mais, leva. As posições são sempre no branco ou preto, não existem nuances

É a morte das ideias, o fim da inteligência. 

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O bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo: nunca ninguém reclama de ter recebido pouco, disse o filósofo francês René Descartes no início de seu Discurso do método. Com as ideologias ocorre o contrário: nunca ninguém se queixa de ter o juízo distorcido pela própria ideologia. O viés ideológico só afeta os outros

Jamais nos questionamos: será que eu também não estou vendo a realidade? E se o que para mim é tão óbvio for produto de uma ideologia que não me permite ver diferente? É tão claro e tão evidente que não há espaço para dúvidas – e isso é muito perigoso 

Pluralismo democrático exige confrontação e debate. Em toda sociedade há necessidades contraditórias que precisam ser resolvidas — e a democracia é o sistema de governo que permite encontrar soluções negociadas aos conflitos. 

Como se distribui a carga de impostos, que impacta na distribuição da renda; se é direito de uma mulher abortar ou se cabe ao Estado a proteção de um feto; se haverá um pacote de ajuda ao grupo mais prejudicado por uma crise ou se irá se apoiar um setor da economia… 

É necessário estabelecer prioridades entre atividades essenciais: fazer mais hospitais ou mais escolas, melhorar a infraestrutura logística para exportações, promover a ciência, apoiar o desenvolvimento tecnológico… 

Sociedades mais maduras têm acordos mais estáveis que aquelas onde as tensões ainda precisam de muitos ajustes. Mas o sistema de regulação da democracia é flexível e instável: as tensões nunca desaparecem e por isso novas soluções se fazem sempre necessárias 

O debate pode ser acalorado e se fazer visível em ruas ocupadas por manifestantes, em greves e em discussões ou até mesmo brigas entre os representantes eleitos no congresso. 

Essa fricção permanente, que pode parecer ruído e confusão, é o sustento que mantém vivas as sociedades democráticas. Onde não há debate, os conflitos foram sepultados por uma força maior: a opressão de uma classe, um modelo de controle político ou ambas coisas combinadas. 

Por isso democracias saudáveis são barulhentas e dinâmicas, nunca silenciosas ou estáticas. 

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Em democracia, o debate ocorre entre adversários, nunca entre inimigos. A diferença é sutil e importante. 

O inimigo não tem legitimidade, é aquele que deve ser aniquilado para que não me aniquile: a sua existência me ameaça, mas sobretudo ameaça o espaço comum, a possibilidade mesma de debater. Já entre adversários há um acordo de preservação daquilo que é compartilhado, do lugar onde o debate ocorre, e há um reconhecimento recíproco que é anterior às diferenças e que precisa ser mantido. 

O debate morre quando é substituído por uma lógica de inimigos que se opõem. A única forma de preservá-lo é não se rendendo à lógica binária dos dois polos, desmontando a armadilha, expondo seu mecanismo e praticando a escuta honesta e a explicação paciente. Não é fácil quando uma força política se define pela morte do diálogo 

A sociedade democrática se pergunta: qual o limite da escuta quando o outro quer me calar a qualquer custo? Partidos fascistas usam os mecanismos democráticos para ocupar espaços de poder e, então, minar a democracia desde dentro. Regimes autoritários nascem e se desenvolvem usufruindo da liberdade de expressar seu ideário de ódio e crescem e se alimentam da polarização

Isso coloca os democratas numa situação paradoxal: a força que ameaça a democracia deve ser contida. O perigo, quando as democracias impõem limites aos autoritários, é se converterem naquilo que estes querem fazer delas. 

Uma sociedade polarizada se faz mais burra, mais autoritária, menos democrática. O Brasil é exemplo disso. Um país rachado onde a polarização colocou no poder um governo fascista, que hoje a promove e cultiva.

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O bolsonarismo nasceu da substituição de um debate político plural por uma lógica PT-Anti PT. O PT era o inimigo que devia ser tirado do poder, sem importar que o preço fosse violentar as instituições ou mesmo votar em um defensor confesso de regimes autoritários. 

A política passou a se definir por dois polos que atraem e afastam com intensidades semelhantes: PT-AntiPT e Bolsonaro-Anti Bolsonaro. A dinâmica dos uns contra os outros domina. 

Ficaram para trás o mito do país cordial, a gentileza, a agenda comum capaz de elevar o país ao patamar de uma das grandes nações do planeta. Perderam espaço o diálogo e a concordância. As vozes do meio são abafadas pelos gritos do extremo. Liberou-se um torrente de ódio, de violência e de intolerância que arrasa com os espaços comuns de pensamento.

O fenômeno não é apenas brasileiro: o mundo foi tomado por posições extremas, toscas e primárias 

As explicações e teorias sobre o porquê disso levam em conta vários fatores: a evolução do capitalismo após a queda do Muro de Berlim; a mudança nas relações de produção fruto da tecnologia e a precarização dos trabalhadores e dos movimentos operários; o fracasso das promessas de progresso permanente do que se chamou “o sonho americano”; os grandes deslocamentos populacionais e as tensões sociais que provocam em países centrais; a globalização e a entrada em cena de pautas identitárias, que questionam modelos e valores tradicionais. Isso tudo alimentando sentimentos de insegurança e frustração, de perda de garantias e de incerteza sobre o futuro.  

Os fatores são muitos e teorias diferentes abundam.  Mas o elemento primordial que ninguém pode ignorar é a comunicação. 

A capacidade de pensar e agir coletivamente é um dos grandes diferenciais da espécie. Somos seres comunicantes e nossa vida com os outros está definida pela forma como nos comunicamos, por isso a matéria prima da política sempre foi a comunicação. 

Cada avanço nas tecnologias de comunicação teve consequências fortes na forma de organizar as sociedades. Por exemplo, os jornais impressos estão na origem da democracia e o advento da propaganda política está associado ao nascimento do rádio.  Mas nunca o papel da comunicação foi tão determinante como é hoje. 

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Para um cidadão do século XXI, boa parte da vida transcorre no mundo virtual e está ligada às novas tecnologias. 

Ciberpopulismo — Política e democracia no mundo digital, livro de Andrés Bruzzone.

Acordamos com o alarme do celular. Consultamos mensagens antes de tomar o café da manhã. Lemos as notícias no tablet. Treinamos na academia com os fones de ouvido, olhando para a tela da TV. Fazemos reuniões virtuais. Criamos documentos e os encaminhamos para nossos colegas, clientes, chefes. De carro ou patinete alugado pelo aplicativo, chegamos ao restaurante, para ocupar a reserva feita com o atendente virtual. 

Por uma rede social, compartilhamos fotos de nossa comida enquanto curtimos as paisagens publicadas por nossos amigos e nos alegramos pelos momentos felizes da família. Numa outra rede social, nos indignamos, opinamos, participamos da vida política. Atualizamos nosso perfil profissional adicionando o curso online que acabamos de fazer. 

Antes de chegar em casa, conectamos os sistemas de luz, som e aquecimento pelo assistente que nos fala e nos escuta. Pedimos comida, transporte, flores de presente… apenas apertando botões virtuais de uma tela tátil. Assistimos a um seriado ou um filme. Fazemos amor com música que nos chega por um serviço de streaming e dormimos com o som relaxante de um aplicativo de meditação.

Se esse retrato reflete a vida de alguém bastante tecnológico e privilegiado, o impacto das tecnologias de comunicação não é menor no campo, no deserto, nas regiões mais afastadas – talvez seja até maior 

Pescadores artesanais têm sua navegação orientada por aplicativos; as previsões meteorológicas por satélite auxiliam os camponeses do altiplano peruano; os massais usam seus smartphones enquanto percorrem com suas vacas as longas distâncias da savana africana. 

Mais próximos de nossa realidade, entregadores de pizza, motoristas de Uber, professores de ginástica, vendedores, prestadores de serviços domiciliares dependem hoje de dispositivos de comunicação. 

Não tem atividade humana que não tenha sido alterada pelas novas tecnologias e hoje é inconcebível alguém não possuir um endereço de e-mail, um número de celular ou acesso à rede. 

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As novas tecnologias da comunicação mudaram radicalmente também a forma de nos relacionarmos com a política. 

Desde como acompanhamos as notícias por sites, redes e aplicativos até os meios disponíveis para manifestar descontentamento ou fazer petições, o mundo digital abriu novas formas de participação e mudou e está mudando as regras do jogo de poder. Algumas mudanças foram positivas, outras não. 

Entre as inovações que a comunicação digital em rede incorporou na política está o ciberpopulismo. Combinação eficiente de técnicas de propaganda do século XX com as possibilidades abertas pela tecnologia no século XXI, já mostrou a sua capacidade de causar alterações estruturais nos países e na geopolítica.

A base do ciberpopulismo é o populismo, que na essência é um esquema narrativo a serviço da tomada e da manutenção do poder. O modelo é simples: há um inimigo que deve ser derrotado, um povo que deve ser salvo e um líder capaz de fazer isso 

No relato populista quem é o inimigo pode mudar de acordo com a necessidade: podem ser os imigrantes, os judeus, os esquerdistas; ou o império ianque, as oligarquias, o establishment… 

Este relato é antigo e tem servido a muitos demagogos, independente da ideologia: o populismo serve bem governos de direita e de esquerda. Mas ainda que não seja uma ideologia, é filho de uma posição ideológica em que algumas formas da direita se encontram com algumas formas da esquerda: a dos opostos que se excluem, uma visão binária do mundo em que há somente amigos e inimigos. 

Quem tenta pensar fora dos polos dificilmente será ouvido e certamente não terá espaço nos grandes debates. Em um mundo de preto e branco, não há lugar para o cinza – nem para o rosa, o verde, o azul…  

O mantra de um populista é: nós temos toda a razão, eles não têm nenhuma. Não apenas os populistas pensam assim – mas eles é que fazem desse mantra o sustento de uma forma de fazer política. 

O contrário do populismo é o pluralismo, a crença de que não há duas visões únicas do mundo. Pluralista é quem entende que a verdade não se obtém derrotando um inimigo, e sim como resultado de um processo construído a muitas vozes. Ser pluralista é aceitar que a verdade nunca é definitiva, que está sempre em construção 

Mentes simples exigem explicações simplistas em que não cabe a complexidade de um mundo cheio de nuanças e em mudança constante. Por isso, o mundo de um democrata é mais rico que o de um populista.

 

Brasileiro nascido na Argentina, Andrés Bruzzone é bacharel, mestre e doutor em Filosofia pela USP com tese sobre Filosofia da Comunicação. Foi jornalista, correspondente em Paris e diretor-superintendente da Abril. Como executivo ou consultor ajudou grupos de mídia a fazer sua migração para o mundo digital. É fundador e CEO da Pyxys, que explora novas formas de comunicação. Velejador oceânico, iniciou em 2018 uma volta ao mundo em solitário em seu veleiro, Endeavour. O texto acima é um trecho de seu novo livro, Ciberpopulismo –  Política e democracia no mundo digital, disponível em pré-venda.

 

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