“Se eu, com tantos privilégios, não posso escolher trabalhar com o que acredito, quem pode?”

Felipe Chammas - 5 abr 2019
Depois de largar o emprego no Google e passar por projetos relacionados à permacultura, à bioconstrução e ao autodesenvolvimento, Felipe Chammas conta como reaprendeu a aprender por meio da experimentação.
Felipe Chammas - 5 abr 2019
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por Felipe Chammas

30 de junho de 2017 foi meu último dia de trabalho no Google Brasil depois de cinco anos lá. Um trabalho com o qual sonhei, que me ajudou a estar feliz por um bom tempo e que foi parte importantíssima do meu processo de abrir a cabeça para novas possibilidades que antes eu nem considerava.

Partir não foi uma decisão simples de tomar. Dois dias depois de sair, eu completaria 26 anos e, até então, aquela era a única realidade de independência financeira e reconhecimento profissional da qual eu tinha conhecimento. Apesar de saber dos meus privilégios, quando me percebi infeliz naquele emprego alguns anos antes, me assustei, sem ter ideia do que faria se saísse dali. Mas, em algum lugar dentro de mim, já sabia que:

Dedicar quase 50 horas semanais, dentro de um escritório, na frente do computador, vendendo publicidade para estimular ainda mais consumo num mundo em colapso ecológico e emocional, não era a maneira como me sentiria realizado

Foi só com o passar do tempo, depois de bastante reflexão, um tanto de desespero e muita experimentação, que comecei a me dar conta de que se eu, com o tanto de privilégios com que nasci e que acumulei ao longo da vida, não posso escolher trabalhar com o que acredito por medo de não conseguir me sustentar, ninguém mais poderia.

Aí o medo começou a se tornar responsabilidade. Assim como a maioria das pessoas nascidas no fim do século XX, cresci inserido em um sistema que ensinou com que eu  me comportasse de maneira a dar suporte ao funcionamento das estruturas vigentes.

Para pensar sobre isso, gosto da ideia de Educação Bancária que Paulo Freire traz sobre a aprendizagem amplamente difundida na nossa sociedade, no qual “aqueles que não sabem nada” recebem a informação, a verdade, de “pessoas que detém o conhecimento”, em uma dinâmica estéril e necrófila, pois geralmente isso acontece sem diálogo, dentro de uma sala feita de cimento, sem vida, através de informações impressas em lousas e papéis — bem distante do mundo natural, do qual, em teoria, derivam os conhecimentos ensinados.

Através desse processo de aprendizagem, em vez de sentir, pensar e questionar, aprendi a seguir protocolos. A recorrer a médicos e farmácias para cuidar da saúde; a enxergar os supermercados como fontes de comida; a precisar de motores para me locomover; a buscar instituições, cursos estruturados e diplomas para aprender; a culpar terceiros por coisas que estavam erradas nos meus arredores.

Conforme busquei refletir sobre possibilidades e experimentar coisas diferentes das que havia provado até então, fui percebendo que o mundo que me deixava assustado, sem saber o que fazer e que me estimulava a ter alguns comportamentos a partir do medo também era construído pelos comportamentos que eu escolhia ter — e essas escolhas poderiam reafirmar padrões existentes ou criar novos padrões que questionassem os antigos.

Desde que dei o passo para fora da minha antiga realidade, escolhi ter experiências imersivas de trabalho coletivo e comunitário, passei bons tempos experimentando comunidades ecológicas e tenho estudado dinâmicas de transparência emocional para construção de confiança em grupos e comunidades.

Coloquei a mão na massa implementando técnicas permaculturais, construindo casas usando terra como principal matéria-prima, lavando louça e cozinhando, coletando cocô de banheiro seco e na plantação agroecológica

E, seguindo um processo que já dura quase oito anos, pude aprofundar meus estudos em yoga, dedicar ainda mais tempo e atenção à minha prática pessoal e ganhar experiência compartilhando o que venho aprendendo ao longo dos anos a ponto de me sentir seguro em pedir recursos financeiros em troca desse compartilhar.

Relato abaixo três de minhas recentes vivências que acredito estarem diretamente conectadas com uma forma de aprendizagem que estimula o desenvolvimento do ser através da transformação do mundo e vice-versa.

GUERREIROS SEM ARMAS – SANTOS, BRASIL

O Guerreiros Sem Armas (GSA) é um programa de formação de jovens lideranças para a transformação social. Através da Filosofia Elos, base para o Jogo Oásis, o programa estimula a cooperação entre pessoas de uma comunidade para fazer de sonhos coletivos, transformações sociais.

No Guerreiros Sem Armas, Felipe teve a chance de aprender realizando um trabalho social em comunidades em situação de vulnerabilidade.

Comecei a imersão três dias depois de deixar o Google e, ao longo de um mês, nosso grupo de 60 pessoas vindas de 20 países e contextos sociais diferentes, fomos convidados a desenvolver um trabalho em três comunidades em situação de vulnerabilidade social enquanto nos desafiávamos a trabalhar nossos próprios paradigmas internos.

Minha sensação foi como se tivesse entrado em um acelerador de partículas sociais que estava me mostrando toda uma realidade que já existia, mas que até então eu não conseguia acessar.

Conheci pessoas envolvidas em ativismo político no Líbano, na Espanha e na Bélgica. Líderes de projetos sociais da Índia, do Zimbábue, da África do Sul e do Senegal. Gente do movimento de novas economias na Turquia e da nova educação na Itália. Enfim, descobri, de uma vez, muitas possibilidades antes impensadas. Além disso, fui convidado a olhar para as coisas a partir do que estava disponível, em vez de enfatizar o que faltava.

Escutei as pessoas, depois de conviver intensamente em um ambiente corporativo que supervaloriza a fala

Experimentei sonhar coisas com mais gente e engajar, juntos, um movimento para esse sonho acontecer. Esse processo imersivo de aprendizado permitiu que uma parede se tornasse a tela para uma obra de arte visual. Permitiu que uma praça se tornasse uma escola de arquitetura e construção. E que um largo fosse o ambiente no qual se aprende sobre tomada de decisão coletiva.

Nessa dinâmica, cada passo foi cheio de experiências profundas de aprendizagem. Ao ar livre, na prática, sem protocolos rígidos e com os sentidos todos muito acordados.

SACRED GROVES – AUROVILLE, ÍNDIA

Sacred Groves é um projeto que se propõe a construir 108 moradias ecológicas de baixo custo em Auroville, na Índia, para responder à demanda crescente de moradores na comunidade e à pequena oferta disponível de casas com um custo acessível.

Quando me dei conta, me vi junto a mais de 20 estudantes de arquitetura de todos os cantos da Índia e mais alguns poucos voluntários, todos residindo na comunidade, com uma estrutura de conforto muito básica.

Em Sacred Groves, na Índia, Felipe colocou a mão na massa para ajudar na construção de moradias ecológicas.

Durante um mês, aprendi muito sobre técnicas de bioconstrução — reboco de cal, revestimento de parede com cob, telhado com estrutura de bambu, tinta de cal, tijolos e argamassa de barro.

Em muitos momentos, me questionava o que estava fazendo ali, sendo que não sabia de construção a ponto de aportar conhecimentos para eles e o que absorveria em um mês não seria o suficiente para tocar nenhum projeto completo posteriormente.

Foi aí que me surpreendi ao aprender que podia, sim, ensinar algo. A partir de uma ideia que conheci no Brasil, sugeri instalar lâmpadas feitas de garrafas pet com água em uma sala que construímos, para evitar o uso de energia elétrica durante o dia. Achei que era coisa besta, mas a proposta foi bem aceita e, depois de implementada, gerou muita curiosidade em toda a comunidade.

Foi só lá pela terceira semana que me dei conta que os idealizadores do Sacred Groves tinham escolhido um caminho muito nobre para realizar o sonho do projeto: transformar o processo de construção das casas em uma experiência por si só, abrindo mão do controle, da necessidade por velocidade e certezas em prol do cultivo de energia criativa e da vida naquele ambiente que em breve vai ser o lar de muita gente.

Lá, a arquitetura desenvolvida, aprendida e aplicada deriva das experiências de pessoas que, como eu, compartilham refeições, sujam as palmas de suas mãos e as solas de seus pés, suam seus rostos e cometem muitos erros decorrentes de vivências práticas. E, isso, nenhum conhecimento de sala de aula pode oferecer.

ZEGG COMMUNITY – BAD BELZIG, ALEMANHA

ZEGG é uma comunidade criada em 1991 por um grupo de pessoas que estavam comprometidas a pesquisar, expor e encarar as verdades sobre as relações humanas, principalmente no que tange a amor, sexo e sexualidade, pois nesses campos todos os nossos padrões emocionais se intensificam.

Cheguei lá através das minhas pesquisas com o Fórum, uma metodologia que foi criada e vem sendo desenvolvida por eles desde o início do projeto. Ela consiste em um círculo de pessoas que se juntam para pesquisar o ser humano, construindo um espaço seguro no qual qualquer um possa acessar o centro da roda para compartilhar o que está vivo dentro de si no momento.

Através da facilitação de pessoas capacitadas e de percepções individuais dos presentes, quem vai ao centro pode se aprofundar em suas questões, ter percepções diferentes sobre suas vivências e aprender mais sobre si mesmo. 

No centro dessa roda, eu já chorei algumas vezes ao falar sobre minha relação com minha masculinidade. Já me senti extremamente vulnerável ao expor alguns medos na minha relação com dinheiro. Já compartilhei sentimentos e pensamentos dos quais tenho muita vergonha.

Vi gente ficar pelada, berrar e falar detalhes desconfortáveis de sua relação amorosa com sua companheira presente. Mas um dos principais convites que essa experiência na ZEGG me trouxe foi o de refletir sobre minha relação com meu próprio corpo.

Quando fui tomar banho em um chuveiro em que estava toda uma família nua — homem, mulher e uma filhinha — me vi bem travado de ficar pelado também. Percebi que estava muito inseguro, com medo de ser julgado e até de ter reações involuntárias inesperadas. Depois de me jogar na experiência, vi que tudo que eu fantasiei estava dentro de mim.

E que existe um paralelo direto entre minha capacidade de estar fisicamente nu e emocionalmente transparente na frente das pessoas

Para aceitar e integralidade do outro, preciso aceitar a minha própria  e vice-versa. Essa é uma tarefa que só posso fazer por mim, mas está claro que trabalhar isso acompanhado de mais gente facilita todo o processo.

Em seus estudos sobre fenomenologia, J.W. Goethe fala sobre Empirismo Delicado, um conceito que defende que o mundo surge através de nós, assim como nós surgimos através do mundo. Portanto, seria nas interferências que nos propomos a fazer para construir o mundo que nos tornamos quem somos.

Tivesse eu consciência disso ou não, a grande ideia que esteve por trás de tudo que vivi nos últimos 21 meses é a de que as ações que tomo para construir o mundo são também as ações que me constroem como ser humano integral.

Isso tem se materializado na busca de conhecimentos que não são amplamente oferecidos na sociedade atual, e mais ainda, um aprender não pelo processo mecânico ao qual estava acostumado, mas sim por experiências imersivas que estimulam minhas habilidades cognitivas tanto quanto minhas capacidades sensoriais, simultaneamente. Aprender uma nova forma de aprender tem me exigido muita energia e entrega.

Às vezes me sinto solitário, porque tenho buscado um caminho no qual a maioria dos meus queridos não estão. Um irmão meu me acha irresponsável, o outro diz que eu deveria aquietar um pouco

Vira e mexe me pego inseguro, impaciente e ansioso, buscando por certezas ou verdades vindas de fora, na ilusão de que isso me acalme. Mas, em algum lugar dentro de mim, a crença de que o mar só abre depois que começo a caminhar me deixa confiante de seguir caminhando rumo ao incerto.

Essa crença me ajuda a dar passos sem saber exatamente o porquê e menos ainda quais os resultados que tirarei disso. Sempre me certificando de que a intenção para fazê-lo vem bem de dentrinho de mim.

 

 

Felipe Chammas, 27, se formou em Propaganda e Marketing, trabalhou com Publicidade Digital no Google Brasil por cinco anos. Hoje se dedica a compartilhar o Yoga, pesquisar sobre ecologia e vida em comunidade, manter relatos de seus aprendizados em seu blog Abraçana e está estudando para se formar como Facilitador de FÓRUM – Círculos de Confiança. Como parte de sua formação, está iniciando o TODOS | Círculo de Confiança entre Homens.

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