Caçula de 15 irmãos, Dória Miranda nasceu e passou a adolescência no interior baiano.
Porém, foi na capital paulista que ela viveu as experiências mais intensas de sua vida – inclusive um período sem ter onde morar.
“Saí da Bahia porque fui expulsa de casa — ainda enquanto um menino gay, visto como ‘problemático’; mas eu só era alegre e gostava de ir pras festinhas…”
Ela conta que um dia, na Bahia, foi a um bar e sofreu uma agressão por homofobia. Chegou em casa de madrugada e não pôde esconder as marcas da violência e nem o seu porquê. Ao assumir que era gay, o pai a mandou embora.
Dória tinha 15 anos. Até então vivia sob a proteção da mãe, a quem às vezes se refere como “uma rainha”. Chegar em São Paulo sozinha e com aquela idade foi um choque de realidade.
“Descobri que existia um mundo à parte, fora daquela coisa da mamãe, cor de rosa, de fantasia, de ter sempre um chazinho quando você tem dores…”
Dória superou as dores e a distância do lugar onde nasceu e cresceu. Hoje, aos 50, é dona não só do próprio nariz, mas de uma marca de moda plus size que leva o seu nome.
Para chegar até aqui, ela precisou encarar percalços dignos de novela, além de uma transição de gênero:
“Tenho clientes que não acreditam quando descobrem que sou trans. Hoje tenho pessoas trans que compram comigo, mas gosto de dizer que minha marca é para mulheres reais”
Em 2022, a empreendedora diz que a Loja Dória Miranda “chegou bem perto” de faturar 1 milhão de reais. A expectativa, agora, é fechar 2023 batendo esse valor.
Até a adolescência, Dória jamais tinha posto os pés pra fora das redondezas do município de Morro do Chapéu, no interior baiano, a cerca de 400 quilômetros de Salvador.
Expulsa pelo pai, ela morou por um tempo na casa de uma tia, na capital paulista; depois, foi viver com a irmã, em um quarto-e-cozinha, onde moravam, além da irmã e do cunhado, os dois filhos do casal.
“Eu praticamente não tinha onde dormir. Era todo mundo no mesmo quarto. Uma noite, resolvi sair para me divertir e, quando voltei, minha irmã tinha colocado minhas coisas pra fora de casa”
Expulsa pela segunda vez, Dória foi morar com outra tia, mas conta que dormia na lavanderia. Nesse tempo, procurou trabalho como faxineira, fez também serviços de office-boy e mordomo.
Sozinha numa megalópole onde mal sabia se locomover (“uma vez, até acenei para o trem, achando que precisava dar sinal”), Dória precisou reunir todas as forças para não afundar no desânimo.
“Me lembro de pegar o trem na estação da Luz — e do desespero que bateu.”
Mais tarde, Dória foi trabalhar num ateliê de vestidos de noiva e teve sua primeira experiência como vendedora.
A essa altura, estava morando de aluguel na casa de um conhecido, que acabou vendendo o imóvel para a mesma irmã que a tinha expulsado de casa.
Dória já tinha pago um mês inteiro de aluguel ao antigo proprietário; mesmo assim, como o imóvel era pequeno, o único lugar que sobrou para ela dormir foi o banheiro.
“Foi quando me dei conta de que não tinha saído da Bahia para viver aquilo. Peguei minhas coisas e fui embora”
Ela estava só no vagão do metrô, com sua mochila nas costas, presente de uma das tias com quem morou; num impulso, resolveu desembarcar no Terminal Rodoviário Tietê.
Não foi uma simples baldeação. Muito menos o começo de uma viagem de volta para o interior baiano. Sem casa nem rumo, Dória permaneceu 15 dias na rodoviária, vivendo no local.
“Sentia fome, sede… Ainda era menor de idade. Pela manhã, escovava os dentes, lavava o rosto e as axilas no banheiro da rodoviária e, então, ia para o ateliê, para trabalhar”
Até que um dia, diz Dória, uma mulher no trabalho notou que ela estava com um “cheiro podre”…
A colega se compadeceu e levou Dória para morar na parte superior de um ateliê de costura que estava montando.
Nem tudo era perrengue e sofrimento. Dória começou a ter sucesso na loja de vestidos de noiva, ganhando comissão pelas vendas.
Com o tempo, diz, ela virou a vendedora número um daquele estabelecimento. Dória acredita que isso se deve ao fato de não fazer distinção de quem atender.
“Uma vez entrou uma mulher aparentemente simples. Ninguém dava nada pela aparência dela, não quiseram atendê-la, mas fiz questão! Depois soubemos que era para um casamento luxuoso, o mais importante para o qual já fizemos peças”
Enquanto avançava no trabalho, paralelamente Dória arregaçava as mangas e aprimorava novas habilidades. Fez curso de estilista, aprendeu a bordar, trabalhou para uma marca.
Por um tempo ela também teve o próprio estande em shopping centers e feiras, inclusive na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo.
Aos 25 anos, Dória descobriu um câncer de intestino. O momento, financeiramente, era próspero; por outro lado, ela tinha acabado de terminar um relacionamento.
Além de ser alcoólatra, o ex-companheiro, segundo Dória, só a procurava de madrugada, às escondidas, sem mostrar intenção de apresentá-la aos amigos.
“Com a autoestima baixa depois do término, comecei a lutar contra uma depressão que eu nem sabia que tinha. Perdi todo o dinheiro que eu tinha ganhado”
Os medicamentos para o tratamento foram comprados pelos colegas de trabalho. Aos 33, Dória teve um segundo câncer, dessa vez no ouvido.
Dois anos depois, ela resolveu iniciar a transição de gênero. Um movimento que seria crucial em sua trajetória.
“Eu não me aceitava como homem, mas entendi que aquela era uma segunda chance que Deus tinha me dado, para eu ser como gostaria”
Dória continuou se fortalecendo como vendedora, até que resolveu montar a própria marca. Já era empreendedora quando conheceu Thiago Shiraishi, com quem se casou.
Foi Thiago, diz Dória, que deu a ideia de vender seus produtos online.
“Quando veio a pandemia, comecei a comercializar tudo o que eu sabia, de bijuteria a tênis [além das roupas de confecção própria].”
Olhando para trás, Dória hoje define como uma “negação” o primeiro vídeo que gravou para postar nas redes. Diz que não sabia fazer fotos básicas, muito menos usar filtros.
Mesmo assim, ela já tinha 6 mil seguidores no Instagram quando, um dia, foi convidada para contar sua história no canal ter.a.pia.
Após a publicação do vídeo no YouTube, em 2021, Dória viu o número de pessoas que a acompanhavam no Insta crescer exponencialmente. Hoje, são mais de 120 mil.
“Precisei montar uma equipe de atendimento, porque comecei a receber contatos de clientes de outros estados querendo comprar produtos com link de pagamento — que eu nem sabia como funcionava, era meio analfabeta digital”
Foi naquele momento que ela estruturou sua marca no segmento de moda plus size.
Dória veste de 50 a 52 e vendia modelos nos tamanhos 46 e 48, mas logo percebeu, conforme a demanda do próprio nicho, a importância de oferecer modelagens maiores. Hoje, vende até o tamanho 64.
No início, diz ela, precificar os produtos foi um desafio.
“Demorei muito tempo para aprender que precisava embutir vários custos nos preços das roupas”
Ainda hoje, de vez em quando ela faz questão de jogar os preços lá embaixo, “até porque tenho clientes de todas as classes sociais”:
“Tem dias em que chuto o balde e faço várias promoções. Quando isso acontece, acabo vendendo uma blusa de 150 reais, por exemplo, por 90 reais.”
Um dos principais desafios nas vendas é o que deixa Dória mais feliz em fazer o que faz: a possibilidade de servir “como uma psicóloga” para a sua clientela.
Ela conta que estuda o seu público e treina a equipe para realizar um “atendimento humanizado”, entendendo os dilemas que cada cliente carrega:
“É comum que a mulher gorda enfrente questões com autoestima. Ela pode achar uma peça linda hoje e detestar amanhã… Conheço esse tipo de corpo, sei o que é precisar de um sutiã mais largo e uma calcinha que não enrola”
Enquanto influenciadora e autointitulada “babadeira da internet”, Dória afirma tomar cuidado para não excluir o seu público por meio dos conteúdos.
“Não quero que a Dória seja uma senhora trans que parece morar num apartamento de 5 bilhões de reais. E minhas seguidoras que moram na comunidade e ganham salário mínimo, como ficam? Não estou falando para um público fútil.”
Ela acha importante sublinhar sua transexualidade. O motivo? Quebrar estereótipos associados a mulheres trans e travestis.
“Normalmente, quando se pensa numa mulher trans, as pessoas já associam a uma bonitona siliconada, com aquele cabelo maravilhoso, ou à com pé rachado e esmalte escandaloso…”
Hoje, Dória vive numa chácara em Ribeirão Pires, na região metropolitana de São Paulo, mas tem um escritório na capital. Pela internet, vende agasalhos, vestidos, bermudas, calças e roupas íntimas.
A mãe morreu quando ela tinha 20 anos. O pai também faleceu, mas antes disso, Dória conseguiu criar uma boa relação com ele, conquistada depois de uma conversa franca, baseada em perdão.
Na entrevista ao Draft, ela surgiu na videochamada com um visual que imediatamente associou com a autoaceitação, depois de muitos altos e baixos.
“Até algum tempo atrás, ninguém me via sem que estivesse com quilos de maquiagem… Eu jamais iria gravar assim como estou, com melasma, sem make”
Dória diz que a consciência de tudo que já enfrentou e o fato de ter feito as pazes com a autoimagem após a transição de gênero dão sentido à sua marca:
“Sempre brinco que, quando a pessoa compra minhas roupas, recebe um pacotinho de amor, que é enviado até mesmo com o cheiro da mulher poderosa que eu sou hoje — mas que também vai com o resumo da minha história de superação.”
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