“Sucumbir para não sucumbir. Como transformei a morte trágica do meu marido em força, identidade e legado”

Camila Scramim Rigo - 4 mar 2022
Camila Scramim Rigo, sócia da consultoria CoCriar e fundadora do Luz na Escuridão.
Camila Scramim Rigo - 4 mar 2022
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Eu não o vi ser atingido. Do ângulo onde eu estava, só vi o disparo da arma. Ele teve o impulso de ir atrás do assaltante porque eu levei uma coronhada. Porque eu fui muito desobediente…

Me senti culpada por ter sido o motivo que o fez sair do carro. E também por ter gritado que estava tudo bem comigo, que ele podia voltar. Com ele, nada estava bem. E ele nunca mais voltaria

Uma pessoa iluminada me sugeriu que eu deixasse nossas filhas, na época (2016), com 4 e 2 anos, com pessoas que as amassem muito, numa espécie de férias felizes, sem informar nada sobre o que aconteceu, para que eu pudesse dar a notícia somente quando estivesse preparada.

Ao perderem o pai, era esperado que elas grudassem na mãe. A qualidade da minha presença, a minha tranquilidade ao transmitir a notícia seriam cruciais para determinar o nível de trauma que elas sentiriam.

Eu precisaria estar minimamente recomposta.

TUDO PODE DER DELEGADO. EXCETO O PARTO E O LUTO

Já tendo passado por dois partos naturais, eu sabia que nesses processos de passagem, de vida-morte-vida, tudo pode ser delegado, exceto o parto (neste caso, exceto o luto).

Sofrer – esse recurso emocional e físico importantíssimo para digerir a perda – é algo que só eu poderia fazer por mim

Deixei todos os trâmites e decisões relativas ao velório e enterro do meu marido serem conduzidos por amigos e outros familiares. Só comparecia para fazer assinaturas e realizar pagamentos. Só mesmo para o que era imprescindível.

A rede de apoio foi muito importante nesse momento. Me alegro em pensar na profundidade das relações que construí previamente para poder contar com essa dádiva.

Na primeira noite, duas amigas dormiram na minha cama, de conchinha. Eu acordava a cada meia hora chorando, contando mais alguma coisa a respeito da minha vida de casal, do que eu perdi, do futuro que eu tinha deixado de ter, do medo. Elas me ouviam, me acolhiam. Eu voltava a dormir para acordar novamente dali a meia hora

As noites daquelas primeiras semanas foram realmente difíceis. Inspirada pela oferta das minhas amigas na primeira noite, fui convidando novas pessoas para dormirem em casa nos dias subsequentes – em camas separadas, claro.

Essa foi uma linda experiência: cada uma delas trazia um tom de conversa, uma história, uma vivência diferente. E mobilizava em mim o resgate de fatos diferentes também.

RECEBI APOIO DE AMIGOS, MAS COM O TEMPO ENTENDI QUE DALI EM DIANTE EU TERIA QUE DAR CONTA DE NÓS

Famílias amigas faziam convites para as crianças, organizavam momentos divertidos, me davam tempo para respirar.

Criei um grupo no WhatsApp, de homens especiais na nossa vida, que pudessem atender a chamados por “fazer coisas de papai” quando as meninas estivessem sentindo muita falta dele. Quando eu solicitava ajuda, era prontamente atendida.

Passado o primeiro mês, as pessoas foram voltando as atenções para suas próprias vidas e para seus afazeres. Não precisei de mais de uma ou duas hesitações a pedidos meus para entender que, a partir daquele momento, eu teria que tomar minha vida nas mãos e dar conta de nós.

As dificuldades foram muitas. Num casamento, algumas divisões de tarefas ocorrem de forma natural: aquilo que você é muito incompetente para fazer fica automaticamente atribuído ao cônjuge. Todas essas tarefas me cercavam, me encaravam e tornavam urgente a minha rápida “superação”

Para se ter uma ideia do nível de fragilidade em que eu me encontrava, uma cena boba de perseguição na televisão produzia em mim nada menos do que pânico. Eu não aguentava olhar.

QUANDO ENCONTREI UM NOVO AMOR, DESCOBRI QUE ALGUMAS PESSOAS NÃO TORCIAM DE FATO PELA MINHA FELICIDADE

Quando, depois de três meses, imaginei que poderia voltar a trabalhar, desisti em menos de dois dias, ao perceber a enorme vontade de chorar que me dava ver duas pessoas discutindo por algo relativamente desimportante. Eu estava em carne viva.

Ainda tive que passar por algumas provas de fogo emocionais. Ao encontrar um novo amor que, para minha sorte, aceitou conviver com as minhas memórias (tão presentes como se fizessem parte da nossa relação), não tive a mesma receptividade por parte de pessoas que eu acreditava torcerem por mim, pela minha superação, pela minha felicidade.

Interpreto que, na visão delas, eu não havia sofrido por tempo suficiente, o que não era respeitoso com a memória do meu marido, e merecia escutar coisas horríveis como punição. Demorei para me recuperar desse golpe

Aos poucos fui dando conta das coisas da vida. Me orgulho por tudo o que fui capaz de fazer: da qualidade de suporte que dei para minhas filhas; da força para fazer desse assunto algo sobre o qual é possível conversar na minha família; de ter conseguido voltar a trabalhar e pagar minhas contas mantendo mais ou menos o mesmo padrão que eu tinha antes.

Ainda bem que eu tinha dinheiro guardado em meu nome: tudo aconteceu com o inventário (que, mais de cinco anos depois do acontecido e mesmo sem envolver qualquer litígio, ainda não foi concluído!).

O PREÇO DE TENTAR SER FORTE E SEGUIR EM FRENTE VEIO NA FORMA DE UMA FIBROMIALGIA QUE PARALISOU MINHA MÃO

Quando passei a cuidar da vida, deixei de cuidar da minha dor. Essa foi uma conta que chegou dois anos mais tarde, na forma de uma crise aguda de fibromialgia.

Era uma dor nas mãos tão lancinante que me impedia de segurar um garfo.

“Você passou por algum trauma recentemente?” foi a pergunta do médico. “Uma das teorias para a fibromialgia é de que ela seja resultado de uma depressão não vivida.”

A raiva e a revolta que eu sentia eram imensas. A vida não parava de me passar rasteiras. Então eu precisaria sucumbir, não havia outra opção. Precisaria mergulhar na escuridão para ter minhas mãos de volta

A jornada foi longa. Tive a sorte de ter comigo pessoas que se propuseram a compartilhar dos meus momentos difíceis, ficando ao meu lado, me recomendando tratamentos que tinham experimentado, me oferecendo abordagens que existiam em suas próprias caixas de ferramentas… Me ouvindo, me observando, me ajudando a elaborar o que vivi. Trazendo novas luzes para meus fantasmas a cada nova interação.

E escrevi muito sobre tudo o que as experiências provocaram. Documentei a minha cura.

TRANSFORMEI MINHA DOR EM TEXTOS, LIVROS E VÍDEOS PARA APOIAR OUTRAS PESSOAS EM SOFRIMENTO

Superei a fibromialgia sem me tornar escrava dos remédios. Me senti potente, senti que esse caminho foi trilhado por mim em meu benefício.

É claro que pessoas lindas, importantes e generosas participaram, cada uma a seu tempo e à sua maneira. Mas existia uma pessoa comigo, com quem eu podia contar sempre: eu mesma

Passei bastante tempo organizando meus escritos e pensando numa forma de proporcionar a outras pessoas em sofrimento – qualquer sofrimento – uma jornada facilitada para a cura.

Pensei em montar uma pousada, depois uma espécie de spa urbano… Infelizmente o investimento necessário e a sensação de que espaços como estes não sobreviveriam – devido à nossa forte cultura de evitar a dor – me fizeram desistir dessas ideias.

Veio a pandemia e com ela a necessidade de transpor boa parte de nossas atividades para o online. Foi assim que transformei essa intenção num site, o Luz na Escuridão, que busca oferecer a quem sofre exatamente o que eu tive a sorte de ter

Ou seja: confiança na minha força e no meu potencial, um caminho para trilhar e muitas contribuições, ferramentas de autocuidado e cuidados acompanhados oferecidos por pessoas especiais – algumas das que me ajudaram no meu processo, outras que vêm chegando de todos os cantos, acreditando no propósito e na beleza desse projeto.

Meu sofrimento eu transformei (e sigo transformando) em poesia, livro, vídeo, projeto de acolhimento para outras pessoas em dor, em texto para o Draft

E o seu processo de cura, onde pode te levar?

Se quiser companhia na travessia, já sabe onde encontrar.

 

Camila Scramim Rigo, 42, é comunicadora e facilitadora de conversas que importam pela CoCriar, já tendo trabalhado nos mais diversos setores e contextos conduzindo a qualidade da fala e da escuta. Também é dona da história de luto que originou o site Luz na Escuridão.

 

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