“Tive o aprendizado da fome, da insegurança e do frio. Hoje, transformo sobras de tecido em mochilas para alunos da rede pública”

Maria Eulina Hilsenbeck - 25 nov 2022
Maria Eulina Hilsenbeck, fundadora do Clube de Mães do Brasil e da ATrapo Brasil.
Maria Eulina Hilsenbeck - 25 nov 2022
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Já dei muitas entrevistas sobre a minha trajetória, mas desta vez quero dar destaque para o projeto mais valioso da minha vida: a educação ambiental para crianças. 

Entendo que a Terra é a nossa Mãe e precisa ser respeitada; que precisamos dar um destino correto para o lixo e mudar nossos hábitos para que nossos filhos e netos tenham um futuro melhor. E quero que esse seja meu legado. 

Há alguns anos, criei a ATrapo Brasil, com um amigo biólogo. A marca nasceu primeiro como um projeto e depois se transformou em um negócio de impacto social.

Como sempre trabalhei com confecção e com atendimento social, me incomodava o desperdício de tecido pela indústria e a poluição

Toneladas e toneladas de material vão para os lixões, enquanto, por outro lado, temos muitas crianças sem ter como levar seu material para a escola — e sem ideia do que é lixo e do que não é. 

Mochilas da ATrapo doadas a crianças de colégios da rede pública.

A ATrapo Brasil nasceu com essa ideia de transformar as sobras de tecido em mochilas, pochetes e bolsas (os produtos podem ser comprados aqui).

Parte da criação é vendida para bancar nosso atendimento à população de rua do centro da cidade de São Paulo, feita por meio da nossa OSCIP, o Clube das Mães do Brasil

E parte das mochilas é doada para crianças de escolas da rede pública parceiras.

A contrapartida é que cedam espaço para que a entidade possa apresentar uma aula sobre educação ambiental, para crianças e pais, visando mobilizá-los para a questão do descarte correto de resíduos, o impacto do seu consumo sobre o meio ambiente e a possibilidade de reutilizar materiais (a exemplo das mochilas que estão recebendo).

Mas vamos voltar um pouco no tempo. Meu nome é Maria Eulina, e nasci no Maranhão, de onde saí, já como normalista, quando estava com 19 anos.. 

CHEGUEI A SÃO PAULO CHEIA DE SONHOS, MAS ACABEI MORANDO NA RUA POR MAIS DE UM ANO

Vim para São Paulo buscando uma vida melhor, e foi aqui que aprendi o mau e o bom da vida. Depois de um tempo na casa de uns parentes, fui colocada de mala e cuia fora de casa.

Passei, então, a morar em um pensionato, pagando o aluguel com a venda das poucas joias que ainda tinha. Até a hora em que tudo acabou, e fui viver e aprender nas ruas da cidade

Por um ano e sete meses, tive o aprendizado da fome, da insegurança, da dor e do frio. Muitas vezes, dormia na calçada em frente ao Castelinho da Rua Apa. Eu observava aquele local abandonado e mentalizava que um dia ele seria meu…

Entre sonhos, também havia muito preconceito da sociedade. Sim, porque julga-se muito as pessoas em situação de rua, gente que não tem bens, como um teto para se abrigar, cama, mesa, banheiro… enfim, são despossuídos. Mas também são cidadãos, com direitos. 

A sociedade, nessa sanha de um ter que se achar melhor que o outro, esquece que aquela pessoa é o nosso próximo, e que somos todos irmãos.

CONSEGUI SAIR DA RUA QUANDO ME ESTENDERAM A MÃO. E RESOLVI APOIAR OUTRAS PESSOAS NESSA SITUAÇÃO

O ser humano precisa aprender a estender a mão ao invés de apontar o dedo.

Eu tive a mão amiga que me ajudou a sair das ruas: a Vânia, uma mulher que me levou para trabalhar na casa dela.

Depois, me levou para uma indústria de laticínios, onde ela trabalhava e onde conheci meu marido, Alexandre Maximilian Hilsenbeck, com quem vivi até 2001, quando ele faleceu.

Dessa experiência de quase dois anos nas ruas, levei comigo o aprendizado e a missão de ajudar essas pessoas tão vulneráveis

Os modelos das mochilas da ATrapo são únicos.

Então, comecei a me voluntariar em projetos das áreas mais carentes de São Paulo, como na Favela do Jaguaré, na Zona Oeste da capital paulista.

Até que, em 1993, fundei a oficina profissionalizante Clube Mães do Brasil, uma organização não governamental para cuidar de pessoas em situação de rua que queiram a oportunidade de se erguer novamente.

Sempre acreditei e defendo que é a educação que reconstrói vidas e dá dignidade.

Por isso, temos um atendimento emergencial, com ações de higienização, corte de cabelo, triagem e acompanhamento da equipe da saúde, alimentação, atendimento jurídico e outros serviços voluntários.

E também promovemos oficinas profissionalizantes para que quem deseja aprender costura tenha autonomia para abrir suas próprias oficinas, buscar uma colocação ou desenvolver seus produtos.

SE UM DIA EU IMAGINASSE QUE MEU SONHO SE TORNARIA REALIDADE…

A oficina usa restos de tecidos e outros materiais que recebemos de doações de empresas e lojas para transformar em produtos.

Então, tivemos a ideia de ensinar pessoas em vulnerabilidade social a fazer sacolas, mochilas, bolsas, vestidos, calças etc. com esses recicláveis.

A nossa produção, além de gerar renda, serve para transformar aquilo que alguns acreditam ser inútil em algo totalmente novo.

Todo esse trabalho é hoje realizado no Castelinho da rua Apa. Pois bem, lembra que eu sonhava em ser dona dele? Hoje, ele não é meu, mas do projeto, que obteve a concessão para o uso do espaço em 1996

Usamos o lugar para abrigar a ONG, a marca ATrapo — e todos os nossos sonhos de transformar vidas. 

MAIS DO QUE CRIAR NOVOS PRODUTOS A PARTIR DE RESÍDUOS TÊXTEIS, QUEREMOS GERAR EMPREGOS E DESPERTAR A CONSCIÊNCIA AMBIENTAL

Queremos estender essa ideia de levar a educação ambiental para as crianças e seus pais – além da doação de mochilas.

A ideia é transformá-la, se possível, numa política pública, que diminuiria ao mesmo tempo o impacto ambiental dos resíduos têxteis e o desemprego (demandando novas costureiras em mais oficinas pelo Brasil)

A proposta também atenderia mais estudantes com o fornecimento de mochilas e levaria essa consciência de que tudo que produzimos como “lixo” merece um novo olhar: o da reutilização. 

Aproveito para convidar todos que estão lendo esse artigo a conhecerem o nosso projeto e verem a partir de hoje o Castelinho da Rua Apa como uma casa aberta à sociedade.

E, se quiserem, venham visitar nosso evento cultural sustentável que acontece de hoje (25/11) até domingo (27/11), com entrada gratuita.

 

Maria Eulina Hilsenbeck é fundadora do Clube de Mães do Brasil e da ATrapo Brasil. Conheceu a problemática das pessoas que vivem nas ruas, de onde tirou seus aprendizados.

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