Turismo na maturidade: a aposta de vida da ex-tecelã Thereza Ramos Quedas

Bruno Leuzinger - 11 maio 2016
Thereza em visita ao museu da Ferrari, em Maranello, na Itália (foto: divulgação)
Bruno Leuzinger - 11 maio 2016
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Conhecer o mundo parecia um sonho fora de alcance para Thereza Ramos Quedas quando ela era menina, entre as décadas de 1940 e 1950, no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo. A mãe cuidava da casa; o pai, português, trabalhava como chofer de táxi, como se dizia na época. Para os sete irmãos (quatro moças e três rapazes), a infância tinha prazo de validade: aos 12, 14 anos no máximo, era hora de começar a ajudar com as despesas. “Completei 14 anos num sábado e na segunda já estava trabalhando”, diz Thereza. Hoje, aos 71 anos, é proprietária de uma agência de turismo, mas naquele tempo o seu destino foi o mesmo de suas irmãs: um emprego de tecelã numa das fábricas do bairro.

O turismo entrou na vida de Thereza por caminhos tortuosos. A esposa de um dos irmãos foi diagnosticada com tuberculose logo após o casamento, em 1952, e passou dois anos internada em Campos do Jordão, na Serra da Mantiqueira (na época, acreditava-se que o ar rarefeito minimizava a propagação e o agravamento da doença, transmitida por uma bactéria que ataca os pulmões). O pai e o irmão de Thereza faziam visitas mensais à paciente e ficaram tocados pela carência da população local. A anos-luz de se tornar a fervilhante estância turística de hoje, Campos do Jordão era um lugar marcado pelo estigma da tuberculose, coalhado de sanatórios e pensões exclusivas para os doentes.

Anos mais tarde, movida pela generosidade, a família mobilizou os vizinhos do Tatuapé, e de outros bairros, numa campanha de doações para os moradores de Campos do Jordão. “Se você tinha um fogão velho, a gente arrumava e levava para lá. Levávamos camas, colchões, sapatos, roupas. Comprávamos peças de flanela e fazíamos pijamas para as crianças.” A coleta era um trabalho de fim de semana, durava de janeiro a setembro, e incluía brinquedos e biscoitos fornecidos por fabricantes, além de alimentos básicos. No início da primavera, transportavam tudo até a cidade serrana. Essas expedições anuais se estenderam por mais de uma década. “Chegamos a ir com dois ônibus e dois caminhões. Quando a gente chegava, era uma festa!”

Guia freelancer

No período das campanhas de doações, Thereza já estava casada, com uma filha pequena, e seguia trabalhando na tecelagem. Aos poucos, informalmente, passou a organizar grupos de excursão. Conforme a medicina produzia métodos mais eficientes de se combater a tuberculose, Campos do Jordão se libertava de sua redoma invisível. Alguns sanatórios fecharam, outros viraram colônias de férias, e a cidade serrana revelava seus atrativos para o turismo de natureza. “Começamos a fazer turismo na cidade. Dali a pouco, perguntaram: ‘Por que a gente não vai para Barra Bonita? Por que a gente não vai para Caldas Novas, onde tem as águas termais?’” 

A cerca de 300 km da capital paulista, Barra Bonita é conhecida pelo passeio de barco na eclusa do Rio Tietê. Um dia, Thereza viu um anúncio de jornal de uma agência localizada no bairro paulistano da Barra Funda, distante do Tatuapé onde ela vive até hoje. “Recortei o jornal, fui até lá e disse: ‘A gente tem uma turminha querendo ir!’ Nessa turma foram 27 pessoas, depois foram 40, depois foram dois ônibus… Eram famílias, vizinhos, grupos de amigos. Cheguei a fazer Barra Bonita três vezes por ano.” Thereza começava a consolidar sua carreira paralela: guia turística freelancer. Organizava grupos, fazia o meio de campo com a agência, acompanhava as viagens, ganhava uma comissão.

Por um quarto de século, ela trabalhou em duas tecelagens (a primeira fechara as portas). Então, em 1986, aos 41 anos, Thereza se aposentou por tempo de serviço: funcionárias do setor tinham direito a aposentadoria especial devido à insalubridade do ambiente de trabalho. “Havia muito barulho, deixava a gente surda… Naquele tempo não se usava protetor auricular.” Além do ruído intenso, outro problema era a “poeira” de algodão que entrava nos pulmões. A partir daí, a ex-tecelã abraçou de vez o turismo como profissão. As viagens foram crescendo em quilometragem: “Fomos a Salvador, Maceió, Recife, Natal, Fortaleza… Tudo de ônibus, hein? Só depois começamos a viajar de avião.”

Eram os anos 1990, veio o Plano Real que estabilizou a economia e Thereza só via a demanda aumentar. Com dificuldade de dar conta de tudo, convidou a filha, Cíntia, para dividir o trabalho. Mas Cíntia trabalhava em um banco e não queria saber da vida de freelancer. Impôs uma condição à mãe: só topava se elas abrissem uma empresa. Criaram então a Cinthe-tur, batizada com a primeira sílaba do nome de cada sócia. Mas a grande sacada foi a decisão de escolher a terceira idade como nicho de mercado. “Senti que o pessoal estava muito sozinho. A pessoa idosa precisa se sentir segura para viajar, precisa de alguém para dar apoio com o hotel, o ônibus, com o ingresso do espetáculo…”  

Passaporte carimbado

A primeira viagem internacional ocorreu em 1994, quando Thereza já beirava os 50 anos e ainda era guia freelancer. Embarcou para um giro por Alemanha, Bélgica e Holanda morrendo de medo da barreira do idioma (ela aprendeu inglês na idade adulta e se comunica também em espanhol), mas tirou a missão de letra. Hoje, à frente de sua empresa, estuda e elabora pessoalmente os roteiros, planejados de forma a garantir uma viagem sem atropelos, ao gosto do público sênior (tem gente que viaja com Thereza há 40 anos, desde as excursões para Barra Bonita). As senhoras são maioria. “Agora mesmo estou indo para a Itália com 21 passageiros, 19 mulheres e dois homens. Todos de terceira idade.”

A hoje septuagenária Thereza não para. Duas semanas antes da entrevista, havia chegado de um mês entre Austrália e Nova Zelândia, em sua primeira vez na Oceania. A lista de países que já carimbaram o seu passaporte inclui, entre outros, África do Sul, Canadá, Egito, Escócia, Estados Unidos, Grécia, Inglaterra, Israel, Jordânia, Noruega, Polônia, Rússia, Turquia… Portugal, terra de seu pai, ela já visitou umas dez vezes. Viagem de férias mesmo, só para Minas Gerais, para visitar a família do marido, aposentado de uma empresa de tubos de aço. A ideia de deixar o trabalho de lado não passa pela cabeça de Thereza. “Pretendo fazer o Japão no ano que vem. Ficar em casa vendo televisão não é comigo!”

Mesmo depois de viajar o mundo todo, ela ainda se lembra com carinho daquelas idas a Campos do Jordão. Domingo, Thereza conta, era o dia de levar mantimentos para o frei Orestes Girardi (1921-1988), que hoje dá nome a uma das principais avenidas da cidade. Na época, o religioso tinha muitas bocas para alimentar. “Frei Orestes cuidava de 200 crianças, precisava arrumar comida para elas. A gente levava sacos de arroz, feijão, batata, macarrão, e ele preparava um almoço de graça para nós, um macarrão com ‘porpeta’ feito na bacia de roupa… E era maravilhoso!”, diz, para completar em seguida, achando graça: “Hoje, viajo com o pessoal para hotel sete estrelas em Dubai e eles reclamam da comida!” 

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