Um dia, Ana Fontes foi discriminada. Como reagiu? Criou uma rede de referência em empreendedorismo feminino

Lia Vasconcelos - 18 abr 2016Ana Fontes: "As mulheres precisam ter independência financeira para ter autonomia e escolher seu caminho de vida. Essa é a grande disrupção".
Ana Fontes: "As mulheres precisam ter independência financeira para ter autonomia e escolher seu caminho de vida. Essa é a grande disrupção".
Lia Vasconcelos - 18 abr 2016
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Nas entrevistas que dá, Ana Fontes gosta de contar que, durante sua carreira corporativa, certa vez ela estava prestes a ser promovida em um processo seletivo interno. O diretor queria promovê-la, olhou seu currículo com atenção e falou: “É fantástico. É igual à vaga. Pena que você é mulher. Quero alguém que seja forte, que seja macho e que brigue com os funcionários e você tem cara de muito boazinha”. Na época, Ana aceitou a justificativa sem achar que havia sido discriminada, mas admite que naquele momento alguma coisa mudou dentro dela. Uma semente foi plantada. Em 2010, ela fundaria a Rede Mulher Empreendedora, uma associação que hoje reúne 56 mil empreendedoras, além de 260 mil seguidoras da página no Facebook.

Ana ainda passaria alguns anos naquela empresa, mas em 2007, já mãe da sua primeira filha (Daniela, hoje com 13 anos), aquela semente começou germinar e o sentimento de inadequação àquele ambiente foi tomando conta do seu corpo e sua alma.“Sofri preconceito por ser mulher, por não ter estudado em escola particular, por não vir de uma ‘boa’ família e por não falar inglês”, diz. Foi quando ela decidiu deixar o mundo corporativo para abrir seu primeiro negócio. Se foi fácil? Claro que não.

Alguma experiência em empreendedorismo Ana até que tinha. Durante a graduação em Publicidade e Propaganda na Universidade Anhembi Morumbi, ela fazia bolos e tortas para ajudar a pagar a mensalidade, sempre atrasada. “Morria de vergonha de vender bolo e de ter meu nome exposto no quadro de devedores”, confessa.

Nascida em Igreja Nova, Alagoas, Ana, hoje com 49 anos, veio para São Paulo na década de 1970 com sua mãe e os cinco irmãos. O pai viera um pouco antes com os dois filhos maiores. Eram 10 irmãos, dois morreram ainda pequenos. Depois de dois dias e meio de viagem, eles chegaram e se instalaram em Diadema (na Grande São Paulo), onde Ana passou sua infância e adolescência. “A vida era dura, mas meus pais sempre falaram que era importante estudar. Dos oito filhos, cinco fizeram universidade”, conta.

Mas voltando a 2007. Antes de empreender, Ana passou nove meses em casa cuidando da primeira filha e da vida doméstica. Em 2008, adotou Evelyn, hoje com oito anos, e abriu seu primeiro negócio. Ela conta que esses meses que antecederam o empreendimento foram importantes para que ela fizesse uma reflexão:

“O mundo corporativo nos molda para não sermos empreendedores. Você cuida da sua área e não olha a empresa como um todo. E empreender é ser jogado no mar aberto em uma jangada”

Inexperiente nesse mar, Ana cometeu todos os erros “possíveis e imagináveis”, como diz, ao fundar o Elogieaki junto com dois sócios. Sua participação no projeto durou até 2011, quando a sociedade foi desfeita e o site, vendido. “Os sócios eram amigos e essa mistura não funciona necessariamente. Não tínhamos um modelo de negócio claro e nossa visão era muito romântica. Além disso, o negócio se mesclava às nossas histórias pessoais e nos inspiramos em um site norte-americano sem pesquisar a fundo se culturalmente faria sentido no Brasil”, afirma Ana. A ideia do portal era funcionar como um Reclame Aqui ao contrário – ou seja, um espaço em que as pessoas poderiam fazer elogios a empresas e a prestadores de serviços.

Ana exibe o certificado do programa 10.000 Mulheres da FGV/Goldman Sachs que mudaria sua vida.

Ana exibe o certificado do programa 10.000 Mulheres da FGV/Goldman Sachs que mudaria sua vida.

Um dos aprendizados dessa fase, para Ana é que “Não basta sonhar e trabalhar. Tem que sonhar e trabalhar certo senão não funciona”.

Outro, que ela foi percebendo aos poucos, é que parte dos erros cometidos na hora de empreender foram reflexo justamente da vivência no mundo corporativo, de onde vinham os três sócios. “Hoje vejo que, para dar certo, precisávamos ter nos despido da arrogância que o mundo corporativo nos traz de achar que sabemos de tudo. Esse foi nosso maior erro. Na verdade, não sabemos de nada”, diz.

Enquanto lutava pela sobrevivência do seu negócio, Ana foi selecionada, em 2009, para participar do programa 10.000 Mulheres da FGV/Goldman Sachs onde hoje atua como business advisor. Lançado em 2008, o 10.000 Mulheres é um programa global do banco de investimentos que proporciona educação em administração e gestão de negócios a mulheres empreendedoras, com o objetivo de ajudar a melhorar a qualidade da educação empresarial nos países em desenvolvimento. O programa já atingiu mais de dez mil mulheres em 43 países.

O curso, de três meses, seria um divisor de águas na vida de Ana. “As fichas começaram a cair. Pensava: eram 1 000 mulheres inscritas, das quais 35 foram selecionadas. O que vai acontecer com as outras? Me deu um estalo. Comecei a procurar na internet se já existia alguma insitituição que apoiasse e falasse com mulheres empreendedoras. Descobri que não havia.”

E assim nasceu, ainda que timidamente, a Rede Mulher Empreendedora. Em 2010, Ana fez um blog com a intenção de compartilhar dicas simples e conteúdo sobre gestão para mulheres que já empreendiam ou queriam começar. Em seguida, uma página no Facebook foi criada. “Começou a encher de gente rapidamente e montamos um grupo na mesma rede social que hoje conta com cerca de 28 mil mulheres”, conta Ana, que fundou a RME com duas sócias. Uma não faz parte mais da Rede e a outra, Cláudia Mamede, é uma das diretoras. A RME tem, no total, seis diretoras (e cada uma também tem seu empreendimento paralelo) e 45 embaixadoras voluntárias espalhadas por todo o Brasil.

A Virada Empreendedora, evento da RME, reuniu 2 mil pessoas em São Paulo este fim de semana.

A Virada Empreendedora, evento da RME, reuniu 2 mil pessoas em São Paulo este fim de semana.

Além de ser CEO executiva da RME, Ana é ainda fundadora do Natheia, um coworking fechado para parceiros da Rede, e curadora da Virada Empreendedora, evento anual que já está em sua sexta edição — este ano, aconteceu neste fim de semana, em São Paulo, com o tema “Brasil: Presente, futuro empreendedor”, com o apoio da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

“A Virada Empreendedora superou as nossas expectativas esse ano. Tivemos cerca de 2 mil pessoas aqui e oferecemos para elas um conteúdo totalmente voltado para o desenvolvimento do negócio do empreendedor. Esse foi um dos grandes diferenciais”, disse Ana, ao final do evento.

Ana conta que abrir tantas frentes de trabalho e conciliar tudo é quase impossível, mas reconhece que já alcançou muito do que havia sido planejado. Segundo ela, a RME desenvolveu a linguagem certa para falar com as empreendedoras. “Conseguimos realizar 70% do que planejamos, mas nosso negócio é vivo e sempre poderá melhorar”, diz. Ela prossegue:

“Posso dizer que tenho três negócios, mas meu propósito de vida é ajudar outros empreendedores, especialmente as mulheres”

Em seguida, complementa: “Quando mulheres empreendem, elas investem nos filhos, na família e na sua comunidade, ajudam seus funcionários. Elas certamente podem dominar o mundo. Mais que isso: elas podem melhorar o mundo”.

Ao falar de sua carreira de empreendedora “ajudadora” de mulheres empreendedoras, Ana conta, com certo alívio, que não cometeu o mesmo erro de quando fundou o Elogieaki. Ela tem muito mais clareza da necessidade de um negócio, qualquer que seja, se sustentar financeiramente.

“Conciliar nossa causa com um modelo de negócios que precisa dar retorno financeiro para poder seguir em frente é, certamente, um dos nossos maiores desafios, mas temos um modelo de negócios estruturado, o que ajuda muito”, diz Ana, que se define como uma sonhadora apaixonada pelo trabalho e pela família. “Para empreender, é preciso ter parceria de verdade”, afirma, referindo-se ao marido, Luciano Fontes, que é responsável pela operação e pelo financeiro da RME.

Segundo Ana, embora a Rede já tenha sete anos, a estabilidade financeira só foi atingida há dois. Para fundá-la, Ana usou as economias de 30 anos no mundo corporativo. “Não houve perda de dinheiro, mas uma necessidade constante de investimentos de recursos próprios para fazer as coisas acontecerem”, conta.

Entre os serviços oferecidos pela RME para as mulheres que já empreendem ou sonham ter seu negócio estão notícias e artigos em diversas plataformas – conteúdo este oferecido gratuitamente –, rodadas de negócios, eventos de networking e inspiração, mural de anúncios gratuitos no portal, programas de mentoria coletiva e individual e cursos, workshops e palestras.

Um desses eventos é o Café com Empreendedoras que acontece em diversas cidades e reúne, em média, 250 empreendedoras cada. Em março, por exemplo, foram seis. Para esses eventos, um ou dois palestrantes são chamados, são apresentadas sempre duas histórias inspiradoras e há atividades como o pitch, em que algumas participantes são convidadas a fazer uma breve apresentação do seu negócio. Sua fala dura entre três e cinco minutos e tem como objetivo despertar o interesse pelo seu negócio. A ideia é ensinar como fazer um e, também, praticar e trocar contatos. “Nossa meta é que cada mulher troque pelo menos seis cartões nesses encontros.”

Ana com as filhas Evelyn e Daniela, e Luciano Fontes, seu “parceiro de verdade”, como ela gosta de dizer.

Ana com as filhas Evelyn e Daniela, e Luciano Fontes, seu “parceiro de verdade”, como ela gosta de dizer.

A RME cobra por atividades como o Café. Há cinco faixas de contribuição voluntária: de zero a 50 reais. “Cada uma escolhe quanto pagar.” Além disso, o modelo de negócios da Rede está apoiado nos patrocínios empresariais. “Atualmemente 10 empresas apoiam a Rede ativamente. Aprovamos aquelas que, de fato, querem nos ajudar e contribuem com o nosso propósito. Já recusamos corporações que só queriam estar presentes para ter a RME como um canal de vendas. Isso não nos interessa”, afirma Ana. Ela considera um outro aprendizado do empreendedorismo a possibilidade de fazer as coisas do seu jeito: “Quando se empreende, os erros e os acertos são de sua inteira responsabilidade. Você terá que enfrentar seus medos e fraquezas. Isso pode ser assustador, mas vale muito a pena”.

Ana acredita que um dos diferenciais da Rede é que “fala de empreendedora para empreendedora numa linguagem que não é consultiva”. Ela diz que pensar no negócio e no sucesso dessas mulheres é uma obsessão diária porque não basta que a Rede esteja bem. E aí, destaca o que considera mais inovador na RME:

“As mulheres precisam ter independência financeira para ter autonomia de escolha. Elas devem estar livres para escolher seu caminho de vida. Essa é a grande disrupção”

Ana sonha que a RME ande sozinha daqui cinco a dez anos. “Meu sonho é que a causa do empreendedorismo feminino já esteja de verdade contemplada nos objetivos das empresas, pessoas e instituições e que a RME continue sendo referência”, diz. À sua frente, o contigente crescente de mulheres que decidem ter seu próprio negócio: atualmente, já são cerca de 13 milhões de empreendedoras no Brasil, o que corresponde a 49% do mercado. “Pena” que sejam mulheres? Nenhuma.

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