Você adotaria um cão paraplégico? Do amor entre Sophia e Marrom nasceu um projeto que estimula a adoção de pets com deficiência

Sophia Porto Kalaf - 10 fev 2023
Sophia Porto Kalaf, criadora do Projeto Cãodeirante, e Marrom.
Sophia Porto Kalaf - 10 fev 2023
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Eu era apenas uma jovem estudante de psicologia na PUC-SP quando decidi que queria fazer trabalho voluntário em uma ONG que abrigava animais de rua.

A grade horária da psicologia era integral e, frustrada por não poder exercer trabalho remunerado em paralelo à faculdade, entendi que fazer trabalho voluntário seria um modo produtivo de ocupar outros espaços para além da universidade. 

Nunca imaginamos que uma escolha tão trivial pode mudar todo o curso da nossa vida.

Ao me tornar voluntária de um abrigo de animais, diversas problemáticas ficaram escancaradas para mim: o abandono, os maus tratos, a perversidade do comércio de raças, a acumulação de animais

Eu visitava a ONG todo final de semana para fotografar os animais e divulgar a adoção deles nas redes sociais da organização.

Na medida que a equipe do abrigo foi confiando mais em mim, passei a intermediar as adoções por conta própria.

NÃO ME CONFORMAVA EM VER PETS PRETERIDOS NA ADOÇÃO E CRIEI A CAMPANHA “ADOTE UM ANIMAL ESPECIAL”

Recebi muitos adotantes no abrigo e consegui doar diversos animais. Mas via que sobravam os menos “interessantes” aos olhos dos adotantes: cães de porte grande, de pelagem preta, com idade avançada, alguma comorbidade ou algum tipo de deficiência.

Quando trazia essa pauta, escutava do pessoal do abrigo: “Ah, mas esses vão ficar aqui para o resto da vida. Ninguém adota mesmo”.

Eu não podia me conformar com aquilo. Quem me conhece mais profundamente sabe que quando coloco algo na cabeça, vou até o fim.

Inquieta com aquela realidade, decidi criar a campanha: “Adote um animal especial”. Consegui doar dois gatos cegos e uma cachorrinha bem idosa

O Marrom seria o próximo. Era um cão cadeirante extremamente carinhoso, porte médio, marrom de tudo (pelagem, olhos, focinho). Enquanto outros cachorros latiam, ele se destacava e nos fazia dar boas risadas com sua vocalização que mais parecia uma pessoa conversando.

Depois de ter sido atropelado em uma rodovia, foi trazido pelos funcionários que fiscalizam a via para o abrigo, onde já estava há mais de três anos. O atropelamento resultou em uma lesão na coluna e na medula, deixando-o paraplégico. 

Devido à falta de verba do abrigo, Marrom nunca tinha feito reabilitação e passou estes anos todos se arrastando no piso áspero do abrigo para poder se locomover.

NA IMPULSIVIDADE, LEVEI O MARROM COMIGO PARA NÃO DEIXAR QUE FICASSE SE ARRASTANDO NO CHÃO APÓS A CASTRAÇÃO

Quando comecei a promover a campanha de adoção de pets especiais, sabia que seria um desafio grande conseguir encontrar uma família para ele, já que o Marrom não controlava o xixi nem o cocô e precisava de trocas de fraldas frequentes.

Para podermos doá-lo, precisávamos castrá-lo. Na recuperação, ele ficaria se arrastando no abrigo — e arrastando a parte operada — sem um cuidado individualizado.

Foi aí que tomei a atitude mais impulsiva da minha vida, daquelas que se você pensa duas vezes, facilmente percebe que não seria uma boa ideia

Decidi levá-lo para casa, sem ninguém saber. Acredito que grandes encontros se fazem nos acidentes de percurso, no acaso. Uma escolha impulsiva que mudaria tudo. 

Cheguei em casa com Marrom e dizia que ele era um hóspede, que estava fazendo apenas lar temporário para ele. 

COMECEI A ESVAZIAR A BEXIGA DO MARROM QUATRO VEZES AO DIA PARA EVITAR INFECÇÕES URINÁRIAS (E UMA ZONA EM CASA)!

No abrigo, me disseram que ele fazia as necessidades sozinho, mas que tinha incontinência e não conseguia segurar a urina.

Os primeiros xixis do Marrom tinham muito sangue e odor forte. As fraldas enchiam rápido e em poucas horas já tinha xixi e cocô por todo lado na minha casa.

A situação começou a ficar muito insustentável e, mais uma vez, eu não conseguia me conformar de que só tinha como ser daquela forma.

Passei a pesquisar sobre os cuidados com um cão cadeirante e encontrei pouca coisa. Em um dos blogs que achei sobre o assunto e que me abriu muitos horizontes, vi um vídeo sobre esvaziamento da bexiga de pet cadeirante

O primeiro banho de Marrom, assim que chegou na casa de Sophia, ainda assustado.

Aquilo foi fundamental porque me fez perceber que, caso eu esvaziasse a bexiga dele, o Marrom não ficaria com xixi vazando o tempo todo e teria menos infecções urinárias.

A partir daquele momento, comecei a fazer aquele procedimento quatro vezes ao dia e os problemas de xixi por todo lado se resolveram.

Eu passava com ele em veterinários, que rapidamente prescreviam antibióticos e diziam que ele faria xixi sozinho.

Foram quase seis meses até encontrar um veterinário que entendesse sobre o esvaziamento da bexiga.

As enormes dificuldades que enfrentamos no começo (ainda como lar temporário) foram fruto de desinformação e falta de orientação por parte dos profissionais.

NÃO APARECEU NENHUM ADOTANTE PARA O MARROM. MAS, SEM PERCEBER, NOSSA HISTÓRIA JÁ ESTAVA ENTRELAÇADA

Enquanto isso, as divulgações de “Adote o Marrom” ocorriam, sem sucesso… Passei a informar que era necessário fazer o esvaziamento da bexiga e troca de fralda quatro vezes ao dia.

Correram semanas e nenhum interessado apareceu. Completamos três meses de lar temporário, sem qualquer adotante potencial para o Marrom.

Neste tempo fui conhecendo cada vez mais a realidade dos “cãodeirantes”, como chamo carinhosamente e, consequentemente, as dificuldades que eles enfrentam.

O entrelace da minha vida com a do Marrom foi se dando no acontecer. Aproximando-me desta realidade, fui me apropriando dela, tornando essa história cada dia mais minha sem nem perceber (ou percebendo e não querendo resistir ao rumo que este encontro estava tomando)

Não tinha mais saída: a luta pelos animais que eram menos vistos — como os vira-latas e os pets com deficiência — ganhou potência ali, com Marrom mostrando que as barreiras iniciais que impedem alguém de adotar são, na maior parte das vezes, pré-concepções que partem da desinformação.

Sophia com Marrom, Pipa e Josephine.

O afeto pelo Marrom só aumentou neste período de lar temporário e não imaginava mais minha vida sem ele. Oficializei a adoção e criei um perfil no Instagram para ele, no qual compartilhava a rotina, as dificuldades, os cuidados.

Em menos de um ano, visitei o mesmo abrigo onde Marrom esteve e me encantei com uma cachorrinha preta e que andava apenas em três patinhas.

Voltamos para casa e não conseguíamos esquecer o olhar meigo dela. Em uma semana, Pipa estava em casa, na nossa família.

A última adotada foi Josephine, uma vira-lata de porte grande, sem deficiência, e que estava no abrigo há um ano.

TODA ESSA HISTÓRIA VIROU UM PROJETO QUE AJUDA A DAR VISIBILIDADE E CONSEGUIR UM LAR PARA ANIMAIS COM DEFICIÊNCIA

Ao me inserir cada vez mais no contexto dos pets com deficiência, me sensibilizei com diversos pedidos desesperados de ajuda a pets que não tinham acesso a reabilitação e cuidados.

Então, decidi tornar o Instagram, que inicialmente era do Marrom, em um projeto social focado em conscientização e visibilidade a pets com deficiência, o Projeto Cãodeirante.

Iniciamos em 2020 e de lá para cá resgatamos alguns animais com deficiência e conseguimos lares para todos. Auxiliamos pets com deficiência de abrigos e protetores a saírem da invisibilidade e terem chances de adoção

Tivemos casos bastante surpreendentes, como o do Vitório, um cão que sofria maus tratos e ficou cadeirante. Após seu resgate por protetoras independentes, fomos procurados por elas, pois buscavam orientações quanto aos cuidados com um pet com deficiência.

Assumimos o caso, realizamos uma bateria extensa de exames e descobrimos a hemofilia, um quadro hematológico raro e sem cura que poderia impossibilitar uma adoção.

Vitório foi acompanhado pelos melhores veterinários em hematologia e passou a utilizar medicação diariamente para controle da doença. Fizemos uma divulgação massiva da busca por adotantes, mesmo nos parecendo tão intangível uma adoção.

Além de cadeirante e hemofílico, Vitório é de porte grande, preto e de pelagem curta; um perfil de cão que pouco atrai adotantes.

Depois de mais de um ano na busca por um lar, uma seguidora do projeto que já estava encantada por ele decidiu dar uma chance para o Vitório, que foi fazer parte de uma família, segue realizando fisioterapia e até vai à creche brincar.

AGORA, MINHA BUSCA NO MESTRADO É ENTENDER O FENÔMENO “MÃE DE PET”

Em três anos de Projeto Cãodeirante, conseguimos promover a adoção de mais de 20 cães e gatos com deficiências variadas — desde animais com três patinhas, cadeirantes, cegos até  tetraplégicos.

Realizamos quatro grandes eventos de adoção e selamos parcerias importantes no auxílio aos pets com deficiência. 

Em 2022, iniciei meu mestrado em psicologia clínica, com o objetivo de me aprofundar na relação entre pessoas e cachorros e, mais especificamente, compreender o fenômeno “mãe de pet” na contemporaneidade.

A ideia do mestrado tornou-se real na medida em que minha orientadora, Profa. Marlise Bassani, rapidamente acolheu minha proposta temática e se viu afinada com aquilo que eu estava buscando pesquisar.

Durante o trabalho de mestrado, realizei a mediação do processo de adoção de um cão que estava no mesmo abrigo do Marrom e da Pipa para minha orientadora

Marlise adotou Francesco, um vira-lata de porte grande, extremamente medroso, que estava no abrigo há anos. 

ADOTAR É UM ATO DE AMOR. A CADA ADOÇÃO, O MUNDO DE UM ANIMAL (E DE UM SER HUMANO!) É TOTALMENTE TRANSFORMADO

A cada adoção, sinto que pude fazer um pouco por um cão e por uma pessoa. Ali, forma-se um vínculo, uma família.

A chegada de Francesco no novo lar.

Tento acreditar que cada animal que passa por nossas vidas tem uma missão. Não a partir de uma visão autocentrada e antropocêntrica, do benefício que este animal gera a nós, seres humanos, mas na repercussão que o encontro entre este animal e o humano gera no mundo.

São muitos os “Marrons” que existem por aí em abrigos, sem nunca terem tido qualquer chance de adoção. Marrom foi catalisador de transformação. No nosso encontro germinou a busca por mudanças

Mesmo que em pequena proporção, comparada à realidade da causa animal no Brasil, sabemos que o mundo de cada um destes animais adotados foi totalmente transformado.

Adotar é um ato de amor. E como sempre digo: “Dê uma chance à vida. Adote!”. 

 

Sophia Porto Kalaf, 28 anos, psicóloga e mestranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP.  É mãe do Marrom, Pipa e da Josephine (três cachorros adotados). Desde 2014, atua na causa animal e, em 2020, fundou o Projeto Cãodeirante, focado em dar visibilidade à adoção de pets com deficiência.

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