Antes de ingressar na universidade para cursar Geografia, Yuri Salmona, 41, já sabia o que queria fazer da vida: proteger o Cerrado. E foi para isso que ele criou, em 2011, o Instituto Cerrados.
Natural de Brasília (DF), Yuri cresceu tendo o bioma como moradia e área de lazer. A convivência com avô Cantídio, um raizeiro que morava em Almenara, numa região de Minas Gerais localizada na transição entre Cerrado e Caatinga, só engrossou o caldo dessa vontade:
“Ele me levava no quintal, que era um trecho de Cerrado perto do rio, saía pegando as folhas e falando ‘isso é bom para dor de barriga’, ‘essa casca aqui é boa para dor de cabeça’. A sensação que eu tinha era de estar vendo o oculto. Onde eu via plantas, terra, água e formiga, ele via uma camada farmacológica, cosmética, espiritual, cultural”
Yuri conta que, na infância, ainda não conseguia elaborar esse entendimento com clareza. “Mas aquilo ficou comigo. E, já na adolescência, essa sementinha começou a me fazer querer saber sobre essas coisas. Aí comecei a entender que esse bioma estava sendo ameaçado.”
Ainda na faculdade, Yuri trabalhou em diversas instituições ligadas ao meio ambiente, como Greenpeace, Ibama, ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), Conservação Internacional e TNC (The Nature Conservancy). Quando chegou a hora de investir na vida profissional, ele não conseguia pensar em outro caminho que não fosse cuidar do bioma que aprendeu a amar desde criança:
“Durante meu aprendizado nessas instituições, vi que não tinha nenhuma voltada para o Cerrado. Então, decidi fundar uma”
Sediado em Brasília, o Instituto Cerrados atua com produção científica, trabalho de campo, articulação, advocacy, geração de tecnologia e comunidades tradicionais. Tem 18 funcionários e mais de 50 projetos realizados, todos convergindo para o objetivo de proteger 1 milhão de hectares de Cerrado até 2050.
Segundo Yuri, 20% dessa meta já foi atingida por meio de programas como o Suindara, voltado ao monitoramento de queimadas e desmatamento; o Jurema, para a criação de áreas protegidas; o Elos do Cerrado, focado em informação e conteúdo sobre conservação e uso sustentável do bioma; e o Povos do Cerrado, de mapeamento e fortalecimento de comunidades tradicionais.
A seguir, em entrevista ao Draft, Yuri fala sobre a importância do bioma, o impacto do desmatamento e a falta de vontade política, entre outros assuntos:
Por que proteger 1 milhão de hectares do Cerrado?
O Cerrado tem mais ou menos 1/4 do tamanho do Brasil. Dessa área gigantesca, metade está desmatada. São mais de 115 milhões de hectares, dos quais pelo menos 30 milhões são de pastagens degradadas ou subutilizadas. Um estudo indica que, em boa parte do Cerrado, há potencial para colocar quatro cabeças de gado por hectare, mas a média é de 0,9.
Então, o desmatamento no Cerrado soma um conjunto de disfunções da eficiência e da economia. Isso não é “papo de ambientalista”: é papo de quem está preocupado com distribuição de renda, soberania alimentar, hídrica e energética, diplomacia – e um plano que mantenha o país com dignidade e distribuição de qualidade de vida para as pessoas
Mas o Brasil sempre se colocou como um espaço que produz qualquer coisa vinculada ao recurso natural com pouquíssima manufatura, gerando pouco emprego qualificado e com um valor calibrado no mercado internacional. Com uma moeda fraca como a nossa, ficamos à mercê dos jogos internacionais e da fragilidade do câmbio.
Nos últimos 50 anos, a interiorização do país fez com que o Brasil atualizasse o que vende no mundo destruindo o Cerrado. Até a nossa lei fala isso.
Pelo código Florestal, a Reserva Legal [área que o proprietário rural não pode desmatar, apenas manejar sustentavelmente] na Amazônia é de 80%, enquanto no Cerrado é de 20%. Isso mostra que o legislador já olha para o Cerrado e pensa: “Esse negócio não vale nada. Isto aqui é o palco para eu exportar minha commodity”
Quando eu falo que estamos tentando proteger 1 milhão de hectares, eu quero proteger 1 milhão de hectares enquanto eu estiver vivo. Mas não é suficiente. Quero que essa missão seja intergeracional para que a próxima geração olhe para trás e queira proteger mais uns 40 milhões de hectares.
Existe algum tipo de preconceito com o Cerrado?
Sim, de que é uma área de terra pobre, de planta feia, sem valor, de gente rústica… Um sertão a ser civilizado. Estou falando nos termos encontrados nos textos dos primeiros naturalistas e bandeirantes, porque eles perduram.
Só que tem um detalhe: eles foram cooptados pelo agro, que trouxe para si a ideia de que ele é o agente promotor da civilização do Cerrado e, para isso, tem que substituir o bioma – um lugar agreste – por algo civilizado… E aí começam a surgir várias interpretações levianas e falta de ciência sobre vários aspectos.
Então, podemos dizer que o agro é o grande desmatador do Cerrado?
O que realmente desmata o Cerrado são os diferentes ciclos de commodities agropecuárias, ou seja, carne in natura, grão de soja, grão de milho, sorgo, algodão, tudo isso sem manufatura e com pelo menos a metade da sua venda para o exterior. Às vezes mais que a metade. Então, o impulsionador do desmatamento no Cerrado é o agro, porque ele tem todos os subsídios para fazer isso.
Na Mata Atlântica, e mesmo na Amazônia, ouvimos muito falar em restaurar e regenerar. No Cerrado isso também acontece?
A ciência da restauração do Cerrado deu um plot twist na última década. Se você fizesse essa pergunta há dez anos, talvez não ouvisse alguém falando que é possível restaurar o Cerrado.
Hoje, podemos bater no peito e dizer que temos muita técnica para isso. E o Instituto Cerrados está fazendo isso e se somando a outras instituições, como o ICMBio, a Rede de Sementes Cerrado, Cerrado de Pé, Araticum e o Redário, todas muito importantes nessa distribuição dos esforços para restaurar o bioma.
Qual o maior desafio na restauração do Cerrado?
Do ponto de vista técnico, o desafio é, na verdade, combater a braquiária [espécie de capim originário da África, usado para alimentar gado no Brasil e que se espalha pelo Cerrado, afetando a vegetação nativa].
Se você só arrancar a árvore e depois quiser restaurar, é bem tranquilo. Agora, se você arrancar, colocar braquiária, encher de capim exótico, botar gado para pastar, fica mais difícil [restaurar a vegetação do Cerrado] porque é preciso inviabilizar as sementes do capim para não competir com o que será plantado
Pensando em uma visão mais ampla, tem outros desafios. Um deles é abrir a porteira. O Código Florestal de 2013 entrou em vigor, mas o CAR [Cadastro Ambiental Rural] virou apenas um mapa que tem polígonos, porém não dá a obrigatoriedade ao proprietário de restaurar o que ele desmatou…
No Cerrado, são mais de 5 milhões de hectares desmatados ilegalmente que deveriam estar sendo restaurados. Então, esse é um grande gargalo. O governo não tem feito o seu papel de cobrar essa restauração.
Por que é tão importante proteger o Cerrado?
Para começo de conversa, o Cerrado é o grande promotor de água do país, e não a Amazônia. A Amazônia tem o maior rio do mundo, mas ela é hermética, ou seja, é “ela para ela”.
O Cerrado fica no meio do país e distribui água para oito das 12 bacias hidrográficas do Brasil; 93% da água do Rio São Francisco, por exemplo, vêm do Cerrado, ou seja, dá para acabar com a Caatinga e com o São Francisco sem tocar neles. Toda a água do Pantanal vem do Cerrado. Na bacia do Paraná, que abastece a usina hidrelétrica de Itaipu, cerca de 40% da água vem do Cerrado.
Além disso, o Cerrado é a savana mais biodiversa do mundo, com mais de 11 mil espécies de plantas… Será que não tem uma que tira ruga, combate um câncer, faz cabelo crescer ou acelera a cicatrização?
Hoje, países como a China e os Estados Unidos dão conta de plantar soja. Já barbatimão, araticum e pequi, não. Porém, não criamos essa indústria, não manufaturamos esse negócio ao ponto de deixá-lo agradável, palatável.
Se a França – com aquele punhadinho de biodiversidade – deu conta de pegar o seu insumo natural, manufaturar, agregar valor e criar uma cultura que virou referência no mundo, com queijos e champanhe, por que a gente não dá conta de fazer isso com pelo menos umas 200 espécies? Isso é ser muito subserviente.
E o que que falta para conseguirmos fazer isso?
Fazer esse enfrentamento, ou demonstrar esse potencial, é um desafio porque uma pessoa que tem 100 hectares e quer plantar soja, vai na Embrapa, na Bunge ou na Cargill e recebe um pacote pronto com insumo, agrotóxico, semente e técnica. Agora, se ela for pedir ajuda para rentabilizar esses outros recursos, eles não têm nada para oferecer, ou muito pouco.
Então, precisamos de uma visão de longo prazo. Precisamos fazer com que parte do recurso do Plano Safra [de crédito e apoio ao produtor rural], investimento em ciência, tecnologia e assistência rural vá também para criar essa nova indústria.
Isso a longo prazo. A curto prazo, temos que fazer com que tenha Cerrado para chegar no longo prazo – ou seja, frear o desmatamento. E para isso, precisamos de certa coragem política
Hoje, cerca de 71% do desmatamento é ilegal. E não estamos conseguindo levar isso a sério a ponto de exigir um plano de restauração de quem tem área desmatada ilegal, sob a pena de bloquear o financiamento no próximo ano.
E [precisamos] também instituir uma taxa de desmatamento que, na minha visão, deve corresponder ao valor que aquela área desmatada rentabiliza em um ano: se ele vai plantar soja durante um ano e isso rentabiliza 100 mil reais, então a taxa deve ser de 100 mil reais. E esse dinheiro tem que ir para aqueles proprietários que estão preservando o excedente da Reserva Legal, ou seja, mais do que 20%.
Mas o governo está batendo cabeça com o agro. Na álgebra, o Brasil está sendo quebrado pelo agro. Eles falam exatamente o oposto, mas quem quebra o Brasil é o agro, que praticamente não paga imposto.
É possível engajar e fazer um arranjo com as grandes empresas que atuam no Cerrado para trabalhar em prol da preservação?
Existem várias tentativas de iniciativas que juntam ONG e empresas para poder fazer essa redução. Mas isso não tem se mostrado suficiente, animador, contundente ou coisa do tipo. Pra mim, é porque falta o governo nessa mesa. E a gente, enquanto instituto, tem trabalhado nisso.
Temos, por exemplo, uma parceria com o Ministério do Meio Ambiente para a criação de áreas prioritárias para conservação de água. É um estudo que vamos lançar na COP30, no qual indicaremos quais são as áreas do Cerrado que mais fornecem água
Com isso, a gente também quer demonstrar que, quando desmatadas, haverá impacto. Isso para ver se o governo faz algo em uma visão de, talvez, dez anos. Imagino algo parecido com o que foi feito com o cigarro, no sentido de criar limitações para o negócio.
A minha proposta é um projeto de desenvolvimento do país em torno da agricultura familiar, do reconhecimento do serviço ecossistêmico que os biomas geram e de uma qualidade de vida distribuída e não concentrada.
Dá para preservar esse bioma e manter essa produção agropecuária? Ou teria que ser uma ruptura total?
Se pararmos de desmatar o Cerrado hoje, não haverá impacto nenhum e a economia continuará do mesmo jeito. Porque a parte que eu não te falei é que, no Cerrado, grande parte do negócio não é produzir, mas sim desmatar.
Se um hectare custa 1 mil reais, depois que é desmatado passa a custar 3 mil reais. Com uma autorização de irrigação, o valor vai para 6 mil reais. Chegou uma rodovia perto? Vai para 10 mil reais. Então, não é preciso produzir nada para gerar essa “maquininha” do desmatamento…
E, hoje, a agricultura familiar já alimenta o país. Não é uma hipótese. E ela faz isso tendo uma fatia minúscula do Plano Safra, dos investimentos da Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural], da capacidade de infraestrutura e logística.
Então, se direcionamos as infraestruturas que existem para a agricultura familiar, a gente freia o desmatamento, produz alimento, abaixa o preço da cesta básica. Só que vamos ter que lidar com os raivosos.
Para além do desmatamento – e, certa medida, como consequência dele –, vivemos as mudanças climáticas. Como elas impactam o Cerrado?
Fizemos um estudo inédito para avaliar a água no Cerrado. O resultado é preocupante: 95% dos rios analisados tiveram redução de vazão. O bioma está secando.
Quando vamos buscar as causas, em média, 56% é desmatamento e 43% é mudança climática. Desde a década de 1970, a redução da vazão já chega a 27%. E a projeção é de cair mais 33% até 2050 — podendo chegar a 40% já em 2040, segundo a ANA [Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico].
O regime de chuvas também mudou. O início da estação chuvosa está atrasando entre 30 e 56 dias, e o período de chuva encolheu cerca de dois meses
E ainda tem outro efeito, que pouca gente percebeu. Aquela grande enchente no Sul, em Porto Alegre e Santa Catarina, teve relação direta com isso.
Normalmente, a umidade da Amazônia, do Atlântico Sul e das frentes polares entra pelo continente, interage com a massa de ar seco do Cerrado e se distribui. Só que o desmatamento ampliou demais essa bolha de ar seco e a umidade não conseguiu entrar. Acabou contornando os Andes e o Atlântico, se encontrando em cima do Sul do Brasil, onde ficou estacionada e provocou aquela chuva absurda.
Ou seja, o desmatamento do Cerrado, junto com as mudanças climáticas, não afeta só o bioma. Já impacta, por exemplo, os Pampas, único bioma que não faz fronteira com o Cerrado
E a má notícia é que nada mudou desde então: o desmatamento segue, a mudança climática avança. Então, não tem motivo para isso não se repetir.
Você é um otimista? Acha que conseguimos melhorar essa situação?
Eu tenho abandonado esse conceito de otimismo e pessimismo, porque isso é sobre expectativa. Sobre o futuro do Cerrado, acho que devemos ser o que é necessário para ter o cenário que queremos. Não estou preocupado se há mais ou menos chance de acontecer. Vamos pegar as melhores ferramentas e executar.
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