Praticar a empatia para transformar a sociedade. Essa é a proposta do Think Twice Brasil

Gabriele Garcia - 2 set 2015Gabriele, ao lado de Felipe, já viajou 39 países pelo projeto.
Gabriele, uma das idealizadoras do Think Twice, já viajou 39 países pelo projeto.
Gabriele Garcia - 2 set 2015
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Por Gabriele Garcia

Sempre fui apaixonada pelo Brasil. Se não me engano, essa paixão começou no meu primeiro baile de carnaval, aos cinco anos, quando fui vestida de Carmem Miranda. Até então a única “Miranda” que eu conhecia era a Roberta, que na época cantava “A Majestade o Sabiá” e me fez pensar que a fantasia seria uma jaqueta de couro e uma peruca morena. Crianças…

Foi vestida de Carmem, com uma tiara de frutas e um saiote rodado, que eu fui apresentada ao Brasil na sua forma mais pura e verdadeira: gente alegre, dançando no salão e completamente entregue a compartilhar a pista com quem quer que fosse.

Os anos foram passando e eu fui descobrindo um Brasil diferente. Um Brasil de padrões, desigualdades e jeitinhos. E a vida se mostrou infinitamente mais complexa do que uma fantasia de carnaval. Guardei minha tiara de frutas na gaveta e segui o jogo.

Acabei largando na frente de muita gente, já que tive o privilégio de nascer em uma família com condições emocionais e financeiras de me criar com conforto e segurança, além de pagar pelos meus estudos. Foi quando descobri que no Brasil, e em outras partes do mundo, nascer sortudo e privilegiado é determinante para o seu futuro.

Aproveitei a minha chance e fui estudar Direito. Supostamente porque queria promover a Justiça, a Igualdade e outras virtudes um tanto esquecidas ultimamente. Quando me dei conta, me vi trabalhando como advogada empresarial e assessorando a venda de grandes empresas por milhões. Uma carreira promissora, um salário garantido e a sensação de que eu também havia me esquecido de algumas coisas importantes.

Comecei a me envolver em voluntariados, projetos sociais, causas pro bono e dentre os vários cursos na área de terceiro setor e negócios sociais, conheci o Felipe, outro sortudo, apaixonado pelo Brasil, por pessoas e pelo carnaval. Não demorou muito para nos apaixonarmos um pelo outro também.

Juntos compartilhávamos das mesmas angústias e questionamentos, que nos faziam repensar nossas escolhas e o nosso papel no mundo. Foram dias discutindo a situação política e social do Brasil e a nossa contribuição pra isso. Algumas horas de voluntariado começaram a ser muito poucas perto da nossa energia e disposição pra arriscar algo novo. Foi quando decidimos mudar de carreira para trabalhar com desenvolvimento e transformação social. Em outras palavras, retribuir ao universo toda a sorte que recebemos dele e gerar mais e melhores oportunidades àqueles que quase nunca podem escolher.

Não há como resolver um problema sem conhecê-lo verdadeiramente, nem enxergar o próximo se estivermos mergulhados em estereótipos, preconceitos e padrões de opinião e comportamento. Essas percepções são difíceis de mudar do dia pra noite e, sabendo disso, resolvemos nos dedicar integralmente a essa mudança.

Daí surgiu a ideia do projeto Think Twice Brasil, uma viagem por países da África, Oriente Médio e Ásia com o propósito de conhecer pessoas e organizações que estão a serviço de um mundo melhor. E, dessa forma, vivenciando a prática da empatia aprender como podemos nos tornar verdadeiros agentes de transformação social. Escolhemos começar fora do Brasil para termos a chance de sair completamente da zona de conforto e aproveitar que o nosso momento de vida nos permite essa viagem mais longa e distante.

Já passamos por 38 países, zonas de conflito, vilarejos rurais e campos de refugiados. Dentre as tantas diferenças, encontramos ainda mais similaridades e descobrimos que não somos só apaixonados pelo Brasil, somos mesmo apaixonados pela humanidade, que tem muito mais em comum do que podemos imaginar.

O Think Twice Brasil é muito mais do que uma série de viagens, é o primeiro passo de um projeto de vida que pretende criar um movimento de conscientização social e ambiental capaz de encorajar as pessoas a questionarem seus hábitos e padrões e tornarem-se parte da mudança.

Neste ano conhecemos a Rose do Quênia que dá abrigo e assistência a viúvas e órfãos de um vilarejo rural, a Tariro do Zimbábue , uma linda mocinha de dez anos que caminha diariamente vinte quilômetros para ir e voltar da escola e o Tarik do Líbano, que mantém uma creche, onde atende mais de 200 crianças refugiadas da Síria e Palestina. Também conhecemos a rotina de famílias que vivem sem acesso a água, saneamento e eletricidade. Até sentimos na pele os efeitos naturais do desmatamento e aquecimento global.

Essas histórias nos lembram diariamente do Brasil, dos nossos problemas e dos nossos milhares de heróis silenciosos que quase sempre passam longe das manchetes de jornal, mas estão empenhados em transformar essas realidades.

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O projeto soma 383 dias de jornada, que renderam 88 inspirações na bagagem.

Nosso país tem líderes e formadores de opinião que instigam abertamente a segregação, a agressividade e a polarização e que se posicionam por interesses pessoais e financeiros. Tem uma parte da população que parece repetir copiosamente opiniões superficiais, cuja veracidade ou conteúdo pouco importam na hora de compartilhar e tem um povo carente de valores, de dignidade, de confiança e de verdade.

Um Brasil que não se enxerga machista, racista, corrupto e que acha que o problema é sempre o outro – e do outro. Um país que quer educar na palmada, pra não dizer porrada, uma gente que sofre o reflexo da negligência, da opressão e do abandono em que foi deixada.

Vivemos em um país que quer ganhar no grito, enquanto tem gente trabalhando duro pra limpar a sujeira. São as Roses, Tariros, Tariks, Marias, Chicos, Josés e Silvas que ainda abraçam apertado, sorriem de graça e encaram com gentileza e resiliência suas batalhas.

Um país de gente criativa, generosa e mão na massa. Um povo meio perdido, que nem sempre sabe qual caminho seguir, mas que acredita mais no fazer, do que no falar. Gente que decidiu sair do sofá pra mudar o que precisa ser mudado e está disposta a ser parte da solução e não do problema.

Pessoas que não se classificam, não se julgam e não se condenam. Gente que simplesmente se reconhece como ser humano, cidadão do mundo e responsável por toda e qualquer escolha que faz ou deixa de fazer. Gente que sabe que lutar por uma causa te faz mais firme e mais sereno e quanto mais causas, melhor. Gente que não reage com agressividade e já compreendeu que pra resolver um problema é mais eficaz agir por ele, ao invés de só postar na internet. Enfim, gente que está mudando a si mesmo, o Brasil e o mundo, enquanto a outra turma esbraveja alguma ofensa qualquer.

Paulo Freire, o patrono da nossa educação, defendia um processo educacional transformador e libertador, que valoriza a construção de um senso crítico e a troca de conhecimento. Para ele, a educação é um ato político que nos liberta para raciocinar individualmente e enxergar o mundo a partir da nossa própria história. Partia do princípio de que ninguém pode realmente ser, se impedir que o outro seja também.

Foi por isso que escolhemos mudar de vida, pra permitir que conscientemente todos nós sejamos, o que quer que seja. E assim nos colocamos de corpo, alma e coração a serviço do nosso país, da nossa gente e de quem mais precisar de nós pelo mundo afora.

Queremos trabalhar para que o Brasil renasça em virtudes, igualdade, justiça e tolerância. Se reerga sobre relações de respeito, líderes admiráveis e uma sociedade mais interessada em ser do que ter. Um Brasil consciente, proativo e solidário.

Certa vez li um livro chamado Reflexões sobre a Tolerância, de Rao V. B. J. Chelikani, em que o autor defende que “Todo ser humano tem o dever de questionar as situações que comportam injustiça fundamental para si próprio ou para outrem e esforçar-se para corrigi-las. Evitar o confronto e o conflito, em tais situações, remete, não à tolerância, mas à cumplicidade.”

É disso que o Brasil precisa. Um povo verdadeiramente consciente que não aceita ser cúmplice de desigualdades, intolerâncias e irrazoabilidades. Gente que vai além dos interesse pessoais, das opiniões repetidas e da cegueira intencional.

Eu desejo um Brasil que reflete tudo o que temos de melhor, mas que não vira notícia. Um Brasil genuinamente apaixonante e apaixonado. E eu continuo apaixonada por esse país e ansiosa pra ver nossa gente reunida e fazendo a diferença em casa e no mundo. Quando isso acontecer, é hora de tirar a tiara de fruta da gaveta e voltar a pular o meu carnaval.

 

 

Gabriele Garcia, 29 anos, é formada em Direito pela PUC/SP e pós graduada em Direito Societário pela GVLaw/SP. Estudou Sustentabilidade e Responsabilidade Social Corporativa na Escola FGV/SP e participou da Usina de Ideias – formação em Negócios Sociais da Artemísia. Trabalhou por dez anos como advogada no Pinheiro Neto Advogados. Gabriele e Felipe Melo são os fundadores do projeto Think Twice Brasil.  Você também pode acompanhar o projeto nos perfis do Facebook e do Instagram.

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