Ver um cientista ser tratado como celebridade pode ser incomum, mas foi o que se viu no fim de maio, em Florianópolis. Quando Carlos Nobre, 74, subiu ao palco na Semana do Meio Ambiente da Universidade Federal de Santa Catarina, o auditório gritou de empolgação.
Antes e depois da palestra, estudantes, professores e visitantes fizeram fila para tirar fotos e trocar algumas palavras com o climatologista e cientista do Sistema Terrestre. E as cenas de admiração e tietagem se repetiram dois dias depois, do outro lado do país, dessa vez com um público formado por servidores de Tribunais de Contas participando de uma convenção internacional em Manaus, capital do Amazonas.
Engenheiro eletrônico e doutor em Meteorologia, Carlos Nobre estuda a Amazônia há meio século. Ele fez carreira no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e integrou o time internacional de cientistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês); em 2007, o IPCC teve seu trabalho reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz, dividido naquele ano com o ex-vice-presidente dos Estados Unidos, Al Gore.
Empreendedor e membro de quatro academias de ciências – do Brasil, dos Estados Unidos, do Reino Unido e a Academia Mundial de Ciências –, Nobre foi anunciado, na segunda quinzena de maio, como o primeiro brasileiro integrante do Planetary Guardians (“Guardiões planetários”), grupo criado pelo bilionário Richard Branson com a ideia de impulsionar ações pelo clima e a proteção das populações mais vulneráveis.
A seguir, em entrevista ao Draft, Carlos Nobre fala sobre sua trajetória; seus projetos de inovação, educação e incubação de startups (o Amazônia 4.0 e o Instituto de Tecnologia da Amazônia – AmIT); sua pesquisa pioneira sobre pontos de não retorno dos biomas brasileiros; a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas; e suas expectativas para a COP30, em novembro, em Belém:
Como o senhor se interessou em se tornar um cientista do clima?
Quando eu me formei no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), procurei um emprego, consegui no final de 1975, em Manaus, no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), como engenheiro, e fiquei apaixonado pela Amazônia.
Lá, um grande diretor e cientista me incentivou a fazer o doutorado e me tornar cientista, e eu conheci algumas pessoas que tinham feito, inclusive o diretor de meteorologia do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) na época – o grande professor Jule Charney, que foi um dos maiores cientistas do mundo na área, e foi o orientador da minha tese.
Me marcou muito quando, em agosto de 1979, ele chamou seus três alunos de doutorado – eu e dois italianos – e falou que tinha acabado de fazer o lançamento do primeiro estudo do país sobre mudanças climáticas, que ele coordenara a pedido da Academia de Ciências dos Estados Unidos, e [afirmou] que era muito grave o aquecimento global
Ele inclusive falou sobre o risco da temperatura atingir 1,5 graus mais quente: os furacões que eram raríssimos no Golfo do México, iriam ficar fortíssimos e ter praticamente todo ano. E é o que está acontecendo hoje.
Terminei meu doutorado em 1982, voltei para o Brasil e arrumei um emprego no INPE, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Desde então, sempre me preocupei e fiz pesquisas sobre as mudanças climáticas e a Amazônia.
Qual o status atual da sua pesquisa sobre os pontos de não retorno (tipping points)?
Eu fui o primeiro cientista, 35 anos atrás, a publicar os primeiros artigos [afirmando] que se houver um grande desmatamento na Amazônia, ela passa do ponto de não retorno e mais da metade da Floresta vai se autodegradar…
Fiz essa pesquisa porque o desmatamento aumentou muito no final dos anos 1980 – a Amazônia estava 7% desmatada. Hoje já está 18% desmatada e outros 17%, degradados.
O Sul da Amazônia está na beira do ponto de não retorno. A Estação Seca já está quatro ou cinco semanas mais longa… No Sudeste da Amazônia – Sul do Pará e Norte do Mato Grosso –, a Floresta já perde mais carbono do que remove da atmosfera, e a mortalidade de árvores está crescendo muito
A ciência mais recente mostrou que o Cerrado (Savana Tropical) e a Caatinga (Estepe Savânica) também estão muito perto do ponto de não retorno.
No Norte da Bahia, a chuva diminuiu muito e está virando quase um semideserto, porque a Caatinga já se expandiu 230 mil km², nos últimos 30 anos, do Nordeste para dentro do Cerrado… E o Pantanal está diminuindo demais de área.
Então, esses biomas brasileiros, que tem uma riquíssima biodiversidade, estão em enorme risco de desaparecer.
Como o senhor analisa o “marco do licenciamento ambiental” (PL 2159/2021) e os recentes leilões de blocos para exploração de petróleo no Brasil?
Na parte da Foz do Amazonas, um risco de vazamento de petróleo de exploração tem um enorme impacto ambiental. E também não precisamos: cerca de 75% das emissões [de gases do efeito estufa] no mundo vêm da queima de combustíveis fósseis.
Se a gente só utilizar o que já está sendo explorado, chegaremos em 2050 ainda emitindo mais de 10 bilhões de toneladas de CO2 e vamos fazer o aumento de temperatura média do planeta passar de 2,5ºC [acima da temperatura do período pré-industrial].
A licença ambiental que o Congresso quer aprovar, de autodeclaração, vai na direção de acelerar a destruição dos biomas do Brasil. Com isso, vamos passar do ponto de não retorno, perder a maior biodiversidade do planeta, jogar na atmosfera mais de 300 bilhões de toneladas de gás carbônico, tornando impossível manter a elevação de temperatura média da Terra abaixo de 1,5ºC.
A degradação da biodiversidade gera um enorme risco de epidemias e pandemias… A Fiocruz e o Instituto Evandro Chagas, de Belém, já mapearam 48 zoonoses, vírus que já foram modificados pela degradação ambiental e podem virar epidemias – como a Febre Oropouche, que contagiou mais de 25 mil pessoas no Brasil
Nós estamos com um grupo de cientistas liderando um estudo para lançar em breve, que mostra o Brasil com toda condição de zerar as emissões dos gases de efeito estufa até 2040. Na direção de uma transição energética acelerada, com redução do uso de combustíveis fósseis; e uma transição acelerada para a pecuária e agricultura regenerativas, que têm muito menos emissões, são muito mais resilientes aos eventos extremos – que causam quedas enormes na produção agrícola [tradicional], como ocorreu na safra de soja ano passado.
Uma grande restauração dos biomas brasileiros removerá até 600 milhões de toneladas de CO2 da atmosfera a partir de 2040 até depois de 2100, porque os biomas levam muitas décadas [para se restabelecer].
Então, o licenciamento ambiental que temos enorme urgência de implantar é o contrário do que foi pré-aprovado no Senado: zerar o desmatamento, a degradação e o fogo. E permitir somente uma infraestrutura super sustentável
O Brasil tem a maior biodiversidade do planeta. Temos que liderar a busca de soluções e criar gigantescas restaurações.
Qual é a sua expectativa para a COP30?
Eu estarei na COP30, e a comunidade científica vai trazer os riscos. Agora que nós já atingimos por quase dois anos 1,5 Cº, explodiram todos os eventos extremos de ondas de calor, secas, incêndios florestais, chuvas excessivas, rajadas de vento.
Os Estados Unidos saíram do Acordo de Paris e são os responsáveis por 20% de todas as emissões, historicamente desde 1850, e agora [são] o segundo maior emissor, depois da China. Eles têm um presidente negacionista; no seu primeiro mandato, as emissões aumentaram, e certamente vão aumentar neste mandato atual, em que ele mandou explorar um monte de petróleo e gás natural.
Todos os outros países de grandes emissões – a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil e os países europeus – vão ter que realmente ir na linha de zerar as emissões até 2040 – e não em 2050, como é o Acordo de Paris. Todos os países do mundo precisam acelerar demais a busca de soluções
Nós temos bilhões de habitantes vulneráveis a todos os eventos extremos. Hoje já se suspeita que mais de 500 mil mortes por ano são devidas a ondas de calor… Precisamos todos juntos na COP30 – setor científico, político, econômico, agronegócio e sociedade – fazer o Brasil liderar e combater a maior emergência que a humanidade já enfrentou.
Falando em soluções, o senhor está criando o Instituto de Tecnologia da Amazônia, em parceria com o MIT. Como está esse projeto?
Desde 2022, estamos em cerca de 15 pessoas, lideradas pelo professor Adalberto Val, do INPA, desenvolvendo um estudo de viabilidade para construir na pan-Amazônia o AmIT, em inglês, Amazon Institute of Technology.
É um instituto com cerca de 25 laboratórios muito avançados e cerca de 250 professores para formar milhares de estudantes de graduação e pós-graduação para a nova sociobioeconomia. Estimamos o custo em cerca de 400 milhões de dólares.
Estamos avançando para concluir o estudo para construir pólos de inovação em Manaus, Belém e Alter do Chão [distrito de Santarém-PA], no Brasil; em Letícia, na Colômbia; Iquitos, no Peru; e Cobija, na Bolívia
Esses hubs são essenciais para se criar um grande número de startups em cinco temas centrais: 1) as águas amazônicas, que são o maior sistema de águas do mundo; 2): a sociobioeconomia de floresta em pé e rios fluindo: sistemas agroflorestais e industrialização para agregar valor a centenas de produtos da biodiversidade; 3) infraestrutura sustentável: transporte fluvial, por drones e outros tipos de aviões; energias renováveis, como a solar, e em alguns lugares, eólica e hidrocinética – a energia gerada com as correntes dos rios; conectividade, telecomunicações e telemedicina; 4) paisagens alteradas: como criar mecanismos de grandes restaurações florestais; a Amazônia tem 6,5 milhões de quilômetros quadrados – 1 milhão de km² estão desmatados, e quase 1 milhão de km², degradados; e 5) Amazônia urbana: há mais de 70% da população nas cidades que enfrentam um baixíssimo nível de saneamento, e várias outras questões que precisam ser cuidadas.
Os indígenas chegaram em torno de 12 a 15 mil anos atrás na Amazônia, sempre mantiveram a floresta e utilizaram mais de 2 300 ativos, quase 1 500 plantas medicinais, quase 300 frutas, óleos e outros produtos… Estamos concluindo um estudo – realizado por três indígenas, três quilombolas, três ribeirinhos e três cientistas – mostrando como trazer esse conhecimento para dentro do AmIT.
Uma vez que criarmos esse Instituto, o Amazônia 4.0 vai entrar dentro, com seus laboratórios flutuantes, que vão pelos rios para fazer pesquisas e capacitações…
O Amazônia 4.0 é um projeto inicial, então, para testar a viabilidade do AmIT?
Sim. Começamos em 2019, e atrasou por causa da Covid. Construímos um laboratório portátil, super moderno, que usa inteligência artificial para produzir o chocolate, o cupulate – chocolate de cupuaçu – e outros produtos de altíssima qualidade…
O laboratório flutuante é movido a energia solar e faz economia circular, processando todos os resíduos. Já capacitamos três comunidades – e, nos próximos meses, vamos capacitar a primeira comunidade indígena da história do Brasil, a Paiter Suruí, em Rondônia
O Grupo Carrefour, de supermercados, vai doar um recurso para construirmos uma biofábrica nos próximos meses para produzir até 250 quilos de chocolate por dia e outros produtos do cacau, e já se ofereceu para comprar muito desse chocolate e exportar para a Europa. Esperamos terminar até o final do ano.
Desenhamos um laboratório criativo para a cadeia da castanha do Brasil, como parte de um projeto financiado pela Fapesp, para fazer um grande número de produtos alimentícios, óleos industriais e cosméticos. Também um laboratório de sequenciamento genômico, um sistema junto com a USP e a Politécnica – e estamos buscando apoio para construir.
Vamos capacitar comunidades para fazer o DNA de plantas, animais e microorganismos, registrar essas informações e ter os benefícios econômicos.
Ano que vem temos eleições. Como podemos construir uma ponte entre conhecimento científico e tomada de decisões políticas?
O Brasil não tem tradição de ter bancada científica e isso é muito ruim – não precisa ser a maioria, mas não pode ser zero.
Devíamos levar a voz da ciência ao meio político. É muito importante que a gente não eleja populistas, negacionistas de mudanças climáticas, tanto de extrema direita quanto de extrema esquerda.
Em 2026, por favor, vamos eleger – independentemente da ideologia –, políticos que entendam o risco que o Brasil e o planeta estão correndo, e [a importância de] que nós sejamos um dos países líderes em soluções baseadas na natureza… Todos nós temos essa responsabilidade.
“Ser hipersensível”, Josiane Aparecida da Silva convivia com dores físicas e emocionais. Ela conta como uma bebida sagrada a levou a encontrar propósito na natureza, no cuidado com as abelhas e na cura de si mesma.
As faculdades continuam formando profissionais sem um olhar crítico para os problemas sistêmicos do planeta. A EcoUniversidade quer mudar esse jogo estimulando a colaboração e conectando empresas e comunidades tradicionais.