A Bicha da Justiça criou uma rede de advogados especializados em apoiar a comunidade LGBT

Marília Marasciulo - 18 mar 2020
Bruna Cristina Santana de Andrade e Flavia Maria dos Santos, sócias da Bicha da Justiça.
Marília Marasciulo - 18 mar 2020
COMPARTILHE

Como ajudar uma população discriminada e marginalizada, às vezes pela própria Justiça, a ter acesso a seus direitos? É essa a pergunta que move a startup mineira Bicha da Justiça, criada pela advogada Bruna Cristina Santana de Andrade, 33, e pela administradora Flavia Maria dos Santos, 42

Mistura de lawtech com edtech, a startup fundada em 2018 treina advogados para atender o público LGBT e faz a conexão entre ambos. Além disso, transforma a advocacia LGBT no que Bruna chama de “infoproduto”, com cursos que ensinam o cliente a tomar as rédeas de ações — como a retificação de nome ou de gênero e da liberação de cirurgia de troca de sexo por planos de saúde. Segundo Bruna:

“Nós identificamos que quase 70% das vítimas de preconceito não procuram um advogado com medo de ser re-vitimizada. Tenho amigos que viviam situações de homofobia, mas achavam que era normal por causa da cultura no Brasil”

Operando em todo o país, a startup já atendeu 4 mil pessoas e consolidou uma base com 20 advogados. O faturamento saltou de 80 mil reais no primeiro ano para cerca de 500 mil reais em 2019.

Embora tenha sido o dado sobre a re-vitimização que fez a startup apostar na parte educacional, a decisão é talvez o que melhor explica o sucesso do negócio. Para entrar para a base da Bicha da Justiça, o profissional deve fazer um curso online de cinco meses com a própria Bruna. 

“É algo bem prático, para entender de tudo, desde as personas dentro da comunidade até o que fazer em cada situação e quais são os gargalos”, explica. “Eu garanto para o cliente que ele não vai sofrer preconceito, e a análise de currículo não é o suficiente para isso.”

(Leia também: “Queremos construir um banco digital transparente, verdadeiro, próximo da comunidade LGBTI+ e que fale de igual para igual”, uma entrevista com Márcio Orlandi Júnior, CEO do Pride Bank)

O curso custa cerca de 3 mil reais e é oferecido conforme a demanda, o que contribui para a situação de “ganha-ganha” dos envolvidos com a startup: os advogados têm trabalho praticamente garantido (hoje há 300 profissionais na fila de espera para se incorporar à base) e os clientes, a certeza de que vão encontrar um atendimento acolhedor. 

“Nosso objetivo é manter uma comunidade engajada e satisfeita, garantindo um fluxo de atendimento”, diz Bruna. 

Segundo ela, se a qualidade não for mantida, o profissional pode ser descredenciado, o que até hoje não aconteceu. Além de ganhar com os cursos e infoprodutos (com preços que vão de 50 a mil reais), a Bicha da Justiça fica com um porcentagem, entre 40% e 50% da assessoria jurídica, dependendo da demanda. 

EMPREENDER FOI O JEITO DE USAR A PESQUISA ACADÊMICA PARA TRANSFORMAR VIDAS

Chegar a esse caminho não foi fácil, e incluiu o abandono de uma carreira acadêmica — além do investimento de 350 mil reais na criação de outra startup que não deu muito certo. 

“Quando comecei [no Direito], tinha uma linha cronológica muito clara de estudar e fazer concurso público, um perfil clássico do profissional jurídico. Nos cursos de Direito, o empreendedorismo é rechaçado por completo”

A advogada ingressou no mestrado, durante o qual pesquisou o acesso da população à Justiça. 

“Constatei o que já era óbvio, que o Brasil é muito grande e isso reflete na forma de acesso”, diz ela, que identificou que embora o país tenha 1,5 milhão de advogados, 80% deles estão nos centros do sul e sudeste. 

“Esse dado me assustou muito, [especialmente] porque advogando em Belo Horizonte e em São Paulo o que eu mais ouvido era que o mercado estava saturado — mas a verdade é que estava mal distribuído.”

Em 2015, ao concluir o mestrado, ela se questionou: “Fiquei três anos pesquisando, mas o que iria fazer com aquilo, o que vai gerar de transformação real na vida das pessoas?” Concluiu que queria encontrar uma solução mais prática do que a carreira acadêmica clássica que havia planejado para si.

UM PROJETO AMBICIOSO FEZ AS SÓCIAS ENTENDEREM QUE NÃO PODERIAM ABRAÇAR O MUNDO

No mesmo ano, viu a amizade que tinha com Flavia evoluir para namoro. Diferentemente de Bruna, Flavia já tinha experiência criando e administrando empresas. 

“Um dia, eu estava realmente dormindo e acordei pensando: por que não crio uma plataforma online que conecte as pessoas aos advogados?”, lembra Bruna. 

A ideia era resolver dois problemas de uma vez só: levar a demanda não atendida de outras partes do Brasil a advogados nos mercados saturados das capitais. Mostrou para Flavia, que gostou de ideia, e as duas uniram forças. 

O ano de 2016 foi dedicado a modelar a plataforma, que recebeu o nome de Meu Advogado Online, e conhecer o ecossistema. “Foi um terror, batemos cabeça, gastamos dinheiro e energia”, diz.

Em busca de rumo, entraram para o processo de aceleração da Techmall, em Belo Horizonte. Bruna conta:

“O que mais ouvíamos dos mentores era que tínhamos uma pretensão muito grande, precisávamos fatiar o programa. Mas no começo eu achava loucura, pensava: por que fatiar o mercado se não temos concorrência nenhuma?”

Na época, o mercado B2C de lawtechs era “mato”, segundo a empreendedora. Ou seja, um terreno ainda a ser desbravado.

Foi só quando chegaram ao limite do planejamento financeiro — desde o início, haviam definido que investiriam 350 mil reais em 24 meses — que elas decidiram aplicar o que os mentores tanto diziam. “Tivemos vários erros de gestão, de planejamento, de falta de métricas, mas sabíamos bem nosso limite financeiro”, diz.

OS ERROS NÃO FORAM EM VÃO — E O NOVO NEGÓCIO DECOLOU

A próxima questão a ser definida era o nicho de atuação. Fizeram uma nova pesquisa para entender qual era o público mais marginalizado do ponto de vista jurídico e chegaram à comunidade LGBT. Bruna explica: 

“A gente segue uma lógica inversa de precisar de leis para fazer valer a Constituição, até brinco que o brasileiro sempre precisa de uma lei para chamar de sua. No caso LGBT, não existem leis, mas decisões do Judiciário. Se já é difícil para as pessoas entenderem o que a lei diz, imagina desvendar o discurso do Judiciário?”

Para completar, o fato de fazerem parte da comunidade dava às sócias uma motivação a mais, que não se resumisse à questão financeira. 

“Obviamente o retorno importa, não somos uma ONG. Mas empreender com propósito é libertador, o dinheiro não vira uma preocupação imediata”, diz Bruna. “Se a gente não recebesse nem um real pelo Bicha da Justiça eu já estaria feliz, porque gosto do impacto social que ela gera.”

(Confira também: “Ser transgênero, com Gustavo Glasser”, episódio do podcast Retrato com o CEO da Carambola)

Desta vez, porém, elas foram mais enxutas — e certeiras. Investiram 20 mil reais na criação de um MVP (no caso, um site para captação de leads) usando principalmente ferramentas gratuitas do mercado, e apostaram na geração de informações no Instagram para chegar ao público alvo. 

Nos primeiros oito meses, recebiam os formulários e “triavam” os casos manualmente, com Bruna responsável por entrar em contato, apresentar as soluções e fechar contratos. 

Em um ano de funcionamento, a Bicha da Justiça faturou o mesmo que a Meu Advogado Online em três — a startup, que mudou seu foco para brasileiros que vivem no exterior, até hoje não deu retorno sobre o investimento. “Sinto que erramos lá para acertar aqui”, diz. 

PENSAR GRANDE, MAS MANTER UMA ATUAÇÃO ENXUTA VIROU A PALAVRA DE ORDEM

Mesmo com os resultados positivos, elas levaram um ano para se “profissionalizarem”. 

“Falei para a Flavia: acho que agora já deu de MVP, né? Tenho vergonha do nosso MVP, mas aceito que tem que ser básico para saber o que o cliente vai demandar”, diz Bruna. E explica:

“Por exemplo, hoje sabemos que o cliente quer conversar com o advogado da forma mais simples, por WhatsApp, então não faria sentido gastar tempo e dinheiro criando um chat específico nosso”

Ainda assim, há muito o que melhorar. Bruna crê que elas não atingiram nem 5% do que é possível alcançar. 

Um dos pontos é informatizar o sistema de triagem dos casos, que ainda é manual: o “match” entre os advogados e os clientes é feito com base na especialização do profissional e local de atuação, dando preferência sempre para os em localidades mais próximas. 

Antes disso, as sócias querem se consolidar como a principal edtech de Direito, oferecendo mais opções de cursos para a comunidade. E, quando sentirem que é o momento, pretendem internacionalizar. 

“A homofobia é um problema mundial, enquanto toda a população não conhecer [a Bicha da Justiça], não estaremos satisfeitas.”

 

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: Bicha da Justiça
  • O que faz: Treina advogados para melhorar o acesso da comunidade LGBT à Justiça
  • Sócio(s): Bruna Cristina Santana de Andrade e Flavia Maria dos Santos
  • Funcionários: 4 (mais as duas sócias)
  • Sede: Belo Horizonte
  • Início das atividades: 2018
  • Investimento inicial: R$ 20 mil
  • Faturamento: R$ 500 mil (2019)
  • Contato: bichadajustica@gmail.com
COMPARTILHE

Confira Também: