“Queremos construir um banco digital transparente, verdadeiro, próximo da comunidade LGBTI+ e que fale de igual para igual”

Verônica Fraidenraich - 28 nov 2019
Márcio Orlandi Júnior, CEO do Pride Bank (foto: Paulo Neri).
Verônica Fraidenraich - 28 nov 2019
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Se existe o chip do corintiano, o cartão de crédito da rede de supermercado ou da loja de departamento, por que não pode haver uma conta digital para o público LGBTI+? É o que alega Márcio Orlandi Júnior, 49, CEO do Pride Bank, quanto às críticas que pipocaram na semana de lançamento [em meados deste mês] do banco digital, que se anuncia como o primeiro do mundo voltado à comunidade LGBTI+.

“A oferta de serviços e produtos segmentados não é algo novo. A novidade é que estamos fazendo isso para a comunidade LGBTI+. E o que a gente quer desmistificar na cabeça das pessoas é que nós não queremos discriminar ninguém, todo mundo é aceito e bem-vindo no Pride Bank”, diz.

Entre os cuidados no atendimento a esse público, a fintech prevê a opção dos correntistas (chamados de ‘priders’) de usar o nome social, de acordo com o gênero com que se identificam. No momento do cadastro, os clientes podem também assinalar entre as seguintes opções: mulher/homem cis, mulher/homem trans, agênero, não binário, gênero fluído, travesti, queer e outro.

Segundo Márcio, o grande diferencial do Pride Bank, contudo, é o investimento em causas sociais ligadas a seu público. Para tanto, foi criado o Instituto Pride, que receberá 5% da receita do banco digital para apoio a ONGs e coletivos ligados à população LGBT.

Outra vantagem seria contar com uma tecnologia própria para o desenvolvimento do sistema da fintech. Isso graças à Digital Banks, sócia do negócio e responsável pelo desenvolvimento de soluções para meios de pagamento.

Por ora, o Pride Bank está em fase experimental e a abertura de contas digitais é exclusiva a convidados. As tarifas a depender do pacote vão de R$ 9,99 e R$ 39,99 para pessoa física e entre R$ 29,99 e 149,99 para pessoa jurídica. Diferentemente de outros bancos digitais que não cobram certas taxas de serviço, Márcio diz que a cobrança é necessária, uma vez que o Pride Bank não recebeu investimentos de terceiros.

A seguir, Márcio (que já escreveu uma vez para a nossa seção Lifehackers) fala mais sobre o projeto.

Os bancos comuns não discriminam ou não deveriam discriminar minorias como os LGBT. Por que criar um banco para esse público específico?
Bancos comuns, pré-existentes, não deveriam discriminar, mas às vezes discriminam. E não é uma questão proposital. Há artistas trans que têm um nome de palco, assim como há pessoas trans que mudaram de nome mas ainda não têm a documentação referente à mudança. Nesses casos, um banco não deixa você emitir um cartão de crédito com seu nome social, só com o nome original.

Eu tenho amigas trans que são obrigadas a usar um cartão com seu nome de menino, e isso é muito ruim. Existe a questão também de que tem gente que passa por um nível de perseguição na vida, que muitas vezes tem medo de usar serviços, de se expor, de ir a uma agência bancária, porque acha que pode ser discriminada, que podem não querer oferecer o serviço a ela

Então, saber que existe um banco digital que te permite usar o nome social, que te conhece, entende das suas dores e vai te respeitar por elas, é muito importante. Além disso, o Pride Bank ajuda não só com o pertencimento à comunidade, ele dá ferramentas como cartão de crédito e outras que ajudam a se posicionar na vida como LGBTI+.

Por que atrelar um banco digital ao investimento em causas sociais?
O Pride Bank já nasceu com essa proposta. Nossa ideia era fazer algo focado na comunidade LGBTI+ e que devolvesse à mesma parte do que ganhássemos. O Instituto Pride receberá 5% da receita da instituição para reverter em apoio a causas sociais relevantes para a comunidade LGBTI+ brasileira. E durante o período beta, como forma de atrair clientes, a cada conta digital aberta e ativada, o Pride Bank irá doar R$ 5 adicionais para as causas sociais selecionadas.

Todo o processo de investimento em causas sociais será administrado pela Welight, empresa de tecnologia social, desenvolvida em blockchain, permitindo aos correntistas visibilidade completa de como cada centavo foi distribuído e aplicado nas causas.

Quais serão as causas apoiadas?
Como são muitas espalhadas pelo Brasil, escolhemos três diferentes. A Casa Arouchianos abriga e apoia jovens e adultos da comunidade LGBT em situação de vulnerabilidade e promove atividades de cultura, arte, esportes e questões sociais. A Casa Brenda Lee acolhe travestis e transexuais com HIV e desenvolve ações específicas de cuidados a esse público. Por fim, a Eternamente Sou é voltada a pessoas idosas LGBT, que vivem sós, sem companheiro e/ou família, e não têm mais emprego nem vida social. A ONG dá atendimento psicossocial e cria eventos e atividades para melhorar a vida dessas pessoas.

Como surgiu a ideia? E quem são os sócios do banco digital?
Nós somos três sócios externos – eu, Maria Fuentes, proprietária da editora Neon e da revista Arco Íris, e Alexandre Simões, consultor administrativo e financeiro — e três sócios que são sócios também da Digital Banks.

Maria há bastante tempo se perguntava porque não podia existir um serviço de cartão de crédito do público LGTBI+ – assim como existem tantos cartões de mercado, como de times de futebol – que além de ser um cartão que a pessoa possa usar para se sentir pertencente à comunidade, reverta parte dos seus lucros para ações sociais

Ela saiu procurando entre os amigos quem poderia ajudá-la [a executar a ideia] e encontrou com Alexandre que lhe disse ter gostado da proposta. Ele conhecia dois donos da Digital Banks e foi apresentar a ideia. E foi um feliz encontro, porque todos adoraram o projeto, acharam que tinha muita probabilidade de funcionar, porque a ideia da causa social associada ao projeto de um banco digital fazia muito sentido na cabeça de todos — e de fato faz.

Quando você assumiu o cargo de CEO no Pride Bank?
Eu me juntei ao banco digital quase dois meses atrás. Já existia muita coisa pensada, estruturada, e o software da Digital Banks que a gente usa como base para o Pride Bank já havia sido desenvolvido. Mas a conceituação final, como usaríamos aquela tecnologia para criar o nosso produto, eu participei bastante desse processo.

Não sou nem de longe o dono da ideia e nem a origem dela, mas ao procurar alguém de mercado que fosse um executivo e ao mesmo tempo tivesse um histórico de desenvolvimento e de engajamento com a causa LGBT, sendo assumido e tudo mais, chegaram ao meu nome. Isso faz um mês e meio, e eu acabei contribuindo desde então.

Que aprendizados você recolheu ao longo da sua trajetória profissional e que contribuíram para assumir esse cargo no Pride Bank?
Eu sou formado em engenharia eletrônica. Minha trajetória profissional começou no mundo da tecnologia, na Accenture, na década de 1990, trabalhando em desenvolvimento de sistemas. Era uma área técnica, eu entendia o problema do cliente e criava um código proprietário que resolvesse ou automatizasse aquele desafio.

Percebi que tinha uma capacidade a mais de entender o processo de negócio que estava sendo atendido por aquela linha de código e sugerir melhorias para o processo que depois desencadeavam em mudanças no software. Esse talvez tenha sido um talento que percebi cedo na minha carreira

Depois de 13 anos na Accenture, isso acabou me levando para a Natura, onde ficaria mais dez anos. Primeiro, assumi a parte comercial de TI e tive a oportunidade de criar produtos, entendendo de um processo complexo que é o de venda direta. Depois, assumi a área de presença digital, que era pequena perto do que é hoje em dia, porque a internet evoluiu muito de 2008 para cá, mas o meu papel acabou sendo o de olhar para a internet como um produto – como monto o produto (o sabonete ou o xampu, por exemplo), apresento e conceituo ele, penso em seu público-alvo.

Também fiquei dois anos na Riot Games, quando virei diretor de produto League of Legends, trabalhei na Brasil CT, empresa brasileira de nicho e depois me tornei consultor autônomo. São experiências bastante relevantes para criar agora um produto que é meu, o Pride Bank, e pensar em como melhor apresentá-lo e estruturá-lo para que ele seja realmente muito bom para quem deseja usá-lo.

A equipe do banco e as lideranças são pessoas da comunidade LGBTI+? Quantas pessoas compõem o time hoje?
Não ser LGBTI+ não exclui de ser colaborador do banco, e ser um LGBTI+ não garante uma vaga. O que a gente busca são pessoas que entendem nossa causa de atender projetos sociais como algo extremamente importante.

Nossa estrutura é enxuta. Tenho mais duas pessoas nesse momento, no dia a dia, distribuindo convites, tirando dúvidas e respondendo mensagens nas redes sociais. Trabalhamos com terceiros em algumas áreas, principalmente, para dar suporte telefônico ou por chat com qualidade. Imagino que nas próximas semanas vamos abrir muitas vagas.

Alguns bancos digitais não cobram tarifas relacionadas à conta. Por que o Pride Bank cobra pelo pacote e pela manutenção da conta?
Muitos bancos não fazem isso porque receberam milhões de investimento de terceiros e estão queimando esse dinheiro, não cobrando nada agora para ter mais clientes. Nós não temos investidores. A gente não consegue não cobrar.

Somos um banco com propósito, parte do dinheiro é revertido para causas sociais, logo, nosso modelo precisa de cobrança. E a tendência é que os outros bancos no futuro passem a cobrar também.

De onde veio o capital usado na abertura do banco? Vocês revelam o valor do investimento?
O capital vem de nós mesmos, os sócios, e da Digital Banks que hoje já opera outros seis arranjos de pagamento muito parecidos com o Pride Bank, embora menores. A gente não revela valores, mas não estamos falando de muito dinheiro.

Como é uma operação de baixo risco, em que não existe crédito, limite de crédito, nada disso, a gente consegue fazer com nossa capacidade. Não queremos transformar o banco em algo que todo mundo ganhe muito dinheiro. O ponto é criar alguma coisa que gere muito dinheiro para a comunidade de volta e que faça a diferença e impacte na comunidade em primeiro lugar.

O banco vai se rentabilizar por meio da cobrança de tarifas?
Nesse primeiro momento o banco trabalhará com tarifas ou pacotes de serviços para poder custear as operações do banco e suas ações de marketing e do Instituto Pride. Mais para a frente, a gente prevê lançar outros serviços e investimentos e aí teremos outras formas de rentabilização.

Quais seriam esses outros serviços?
A gente quer ser bastante inovador, trazer aquilo que não existe no mercado ou talvez não na melhor forma pro nosso ‘prider’, que é o correntista. Pensamos em oferecer planos de saúde associados a alguma empresa do setor que sejam específicos para um público LGBTI+.

Por exemplo, se for um homem gay, o plano poderia incluir exames bimestrais ou trimestrais de HIV. Para uma pessoa trans, poderia haver um plano de saúde que facilite o acesso aos hormônios que ela precisa usar para a sua transição.

Outro campo que podemos explorar é a de pacotes e excursões de viagens específicos para o público LGBTI+, associados a alguma agência de turismo. Ainda, na área de investimento, podemos trabalhar com carteiras de empresas que são LGBT friendly.

Como o banco vai funcionar para operações mais sofisticadas como um crédito imobiliário, por exemplo?
Ainda vamos aprender com o tempo. Neste momento, a nossa operação é simples e se resume a como depositar dinheiro na conta, como gastar esse dinheiro em pagamentos e no uso das maquininhas POS (ponto de venda) para quem for profissional autônomo LGBTI+ ou tenha um pequeno negócio. Neste caso, a pessoa poderá ter uma maquininha do banco com taxas bastante atrativas, caso sua clientela seja usuária do Pride Bank.

No futuro, a gente pretende trazer operações mais complexas e aí vamos ter que sofisticar nossa equipe, nosso atendimento e aplicativo, para ir de encontro a isso e simplificar a vida do prider. A vida dele tem que ser simples, — a nossa, não necessariamente.

Vi comentários nas redes sociais questionando se o Pride Bank não seria uma ‘segregação disfarçada’ e um caso de ‘marketing apelativo’.
Sempre haverá resistência e questionamentos quanto a isso. O que a gente quer é com o tempo provar o quanto a nossa ideia era genuína e partia de uma vontade positiva de fazer mudança.

Na verdade, existem sim bancos, produtos e serviços nichados no Brasil e fora. Nos Estados Unidos tem um banco específico para a comunidade negra. Assim como aqui há o chip do corintiano, o cartão de crédito de uma rede de supermercado ou de uma loja de roupas. A novidade é que estamos fazendo isso para a comunidade LGBTI+.

E o que a gente quer desmistificar na cabeça das pessoas é que nós não queremos discriminar, todo mundo é aceito e bem-vindo no Pride Bank. Quem não se identifica, não precisa abrir uma conta, mas quem se identifica pode abrir uma conta, sendo ou não LGBTI+.

Alguns questionamentos afirmam que levantar a bandeira LGBT poderia ser um discurso vazio atrás do ‘pink money’. Como vocês veem essas críticas?
Há empresas que olham para o público LGBTI como parcela importante de seus clientes e do seu faturamento e criam produtos e serviços ideais para essa comunidade. Mas, infelizmente, também há aqueles que simplesmente dizem vamos pintar de rosa, parecer ser gay friendly ou LGBTI friendly e tentar vender. Então, há iniciativas que partem do coração e outras que partem do cérebro pensando no dinheiro.

O Pride Bank quer demonstrar que a nossa proposta vem do coração. Queremos construir um banco digital transparente, verdadeiro, próximo da comunidade LGBT e que esteja falando com ela de igual para igual. Não pode existir um distanciamento — a gente quer uma coisa próxima, real e significativa

É importante dizer que o termo pink money às vezes é visto como algo negativo, como se estivéssemos explorando o dinheiro dessas pessoas. Mas pink money é o dinheiro que já existe, da comunidade LGBTI+, que ela vai gastar em produtos e serviços que ela precisa comprar. E a questão é como você explora ou tentar captar parte desse pink money. A gente quer trazer esse dinheiro para nosso banco digital para devolver para a comunidade.

Já dá para abrir uma conta no Pride Bank? Qual é a previsão de duração da fase beta?
Estamos distribuindo convites. Quem me manda mensagem (pelas redes sociais) eu envio um convite e essa pessoa recebe outros dez convites que pode repassar a seus amigos. Tenho recebido pedidos do Brasil inteiro, muita gente mesmo. Por isso, sugiro que a pessoa interessada procure um amigo que já tem a conta para que repasse um dos convites que recebeu. Também tem o cadastro no site que vai para uma lista de espera.

Estamos preparado para abrir quantas contas forem necessárias, graças à tecnologia desenvolvida pela Digital Banks, mas a fase beta visa aprender como melhor atender o prider, como se comunicar com ele, fazer o chatbox funcionar e treinar agentes para ter conversas com os correntistas. Se trouxesse um número grande de pessoas para o banco agora poderia oferecer um serviço incompleto ou ruim. A fase beta não tem data prevista para terminar, mas queremos que seja o mais curta possível.

Quais são os critérios para abertura da conta digital?
O principal é querer abrir a conta. Precisa subir no aplicativo fotos do RG, do comprovante de endereço, da CNH, se tiver, e uma selfie com um desses documentos mostrando que é você na foto e no documento. Com isso, a gente entende que tem dados suficientes para ter uma conta 100% verificada e é mais ou menos a prática dos bancos digitais. Já as contas não verificadas, em que você não envia os documentos, serão limitadas a 5 mil reais. O objetivo é garantir a qualidade nas contas abertas e evitar qualquer tipo de lavagem de dinheiro ou uso ilícito do nosso banco digital.

O Nubank teve problemas porque cresceu muito rápido. Vocês chegaram a pensar nesse cenário?
Esse é um problema bom de ter, né? Crescer rápido demais e manter o serviço no mesmo nível ou até melhorar o patamar de atendimento. Esse é o nosso sonho e acho que temos uma vantagem em relação a outros bancos digitais: nossa plataforma core, o centro da operação de um banco digital, é tecnologia própria desenvolvida pela Digital Banks. O código inteiro é deles, não existe código terceiro. Somos donos do código, entendemos o código e como ele pode entregar de forma simples, rápida e barata os serviços que a gente quer — e com isso a gente fica competitivo.

Quantos clientes pretendem alcançar até o fim de 2020?
Esperamos no primeiro ano estar com um bom pedaço daquilo que é entendido como comunidade LGBT no Brasil, que é algo em torno de 20 milhões de habitantes de LGBTI+ assumidos no país. Um a cada dez é assumido e pode ser desde assumido e muito bem tratado no seu ambiente ou aquele que está ostracizado e precisa de ajuda, não é bancarizado e tem até medo de banco, que nunca fez nada por ele.

A gente acredita que cerca de 10% desse grupo pelo menos considere abrir uma conta no Pride Bank.

Como você imagina o Pride Bank daqui a cinco anos?
Nossa, agora você fez uma pergunta que é até emocionante. Eu imagino o Pride Bank como uma marca muito bem estabelecida no Brasil, de força na luta pelos direitos igualitários LGBTI+.

A gente busca o direito igualitário, aquilo que todo mundo sempre pode fazer na vida como casar e ter respeito e dignidade no trabalho e em qualquer lugar que a gente vá. São coisas que o LGBTI+ e outras minorias viveram muito tempo sem e agora a gente quer ajudar nisso

Espero que o Pride Bank em cinco anos seja reconhecido também pela transformação social, ao ajudar ONGs e coletivos que precisam de dinheiro para fazer o seu trabalho.

 

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