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“A fome é urgente”, diz Alcione Pereira, que leva excedentes do varejo para a mesa de quem precisa

Julia Moioli - 27 out 2022
Alcione Pereira, CEO e fundadora da Connecting Food.
Julia Moioli - 27 out 2022
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Um dos mais terríveis paradoxos da humanidade: ao mesmo tempo em que mais de 800 milhões de pessoas passam fome no mundo, quase um terço de toda a comida produzida vai parar no lixo.

Quando se deparou pela primeira vez com os números sobre esse desperdício, em 2015, a engenheira de alimentos Alcione Pereira se surpreendeu. Ela atuava havia mais de 15 anos nas áreas de logística e tecnologia de grandes indústrias e varejistas, mas não tinha a dimensão exata do problema. Não demorou muito para tomar uma atitude: no ano seguinte fundou a foodtech Connecting Food, a missão de capturar alimentos excedentes das cadeias de distribuição e os conectar a Organizações da Sociedade Civil (OSCs).

Sabe aquela banana fora do cacho que quase ninguém coloca no carrinho nos supermercados? A cenoura com formato estranho? A alface mais murcha e próxima do prazo de validade? O alimento processado intacto, mas com erros na embalagem? Para uma grande indústria ou rede de varejo, nenhum deles têm mais valor comercial. Por isso, são retirados das prateleiras e jogados fora – entretanto, na maioria das vezes, esses itens ainda estão perfeitos para o consumo.

Conectar o excedente da indústria e do varejo a pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar é uma das estratégias globais, inclusive do Programa Mundial de Alimentos da ONU, para combater a fome no mundo. É também o trabalho da Connecting Food: redistribuir esses alimentos para 379 OSCs legalmente constituídas (e que passaram por auditorias) que preparam refeições ou montam cestas básicas em 116 cidades de 15 estados do país.

GESTÃO ORGANIZADA

A foodtech organiza de forma coordenada e padronizada todo o processo burocrático interno de gestão de doações dentro das grandes empresas, inclusive sob os pontos de vista jurídico e de legislação sanitária. Também realiza treinamentos com funcionários para que eles consigam realizar a separação e a manipulação adequada dos alimentos – o que pode ser doado e o que não tem mais condições de consumo. “É uma grande gestão diária de processos com uso de tecnologia”, resume a fundadora e CEO Alcione.

“O core business do varejo é vender produtos. O nosso é colocar a responsabilidade social corporativa em prática, inclusive fornecendo uma série de indicadores de impacto social, ambiental e econômico sobre as doações. Operacionalizar o ESG – no nosso caso, o S e o E – no dia a dia dá trabalho e nem sempre uma rede de varejo tem pessoas para fazer isso. Essa é a importância da nossa parceria.”

Tem funcionado. O primeiro projeto piloto da Connecting Food foi com com três lojas do Grupo Pão de Açúcar (GPA), em 2017. Em um ano, esse número saltou para 140. Em dois, para 240. Hoje, a lista de clientes inclui, além de todas as 400 lojas do GPA, iFood, Assaí Atacadista, Proença Supermercados, Nestlé, Bauducco e Danone, garantindo a presença da foodtech em mais de 600 pontos de varejo e permitindo que quase 8 mil toneladas de alimentos que seriam desperdiçados já tenham sido redirecionados e 14,4 milhões de refeições, complementadas.

“Hoje, a doação de alimentos é uma das principais fontes de frutas, verduras e legumes dessas pessoas. Estamos falando de 60% da população brasileira com algum grau de insegurança alimentar – famílias em situação de vulnerabilidade pela perda de renda por conta da inflação, da pandemia e do desemprego. Temos que nos posicionar.”

COBRANÇA DA SOCIEDADE

Alcione conta que, desde a fundação da Connecting Food, nunca havia vivenciado um cenário como o dos últimos dois anos, com tanta demanda por ações de impacto social e ambiental efetivas pelas empresas. “São grandes problemas globais que não podemos mais fingir que não acontecem ou que não têm consequências, e está sendo muito importante ver a sociedade civil cobrando por soluções.”

Ao mesmo tempo, o ecossistema de impacto social no Brasil também é mais robusto. Incentivadas por grandes aceleradoras, mais empresas de impacto social (que têm como core de seu modelo de negócios resolver grandes problemas sociais) têm surgido e se proposto a apoiar corporações que querem atuar de forma efetiva na solução de grandes questões sociais ou ambientais.

Além de despertar mais interesse para o trabalho de gestão da Connecting Food, esse momento também tem potencial para favorecer seu outro pilar de atuação, o de advocacy, para melhorar o cenário de doação no país.


“Temos um braço operacional muito prático porque a fome é urgente e é preciso levar comida à mesa das pessoas hoje. Mas, ao mesmo tempo, atuamos em paralelo com articulações e regulações porque é importante pensar no médio e longo prazo.”

Um exemplo é a co-criação, junto com o iFood, do movimento “Todos à mesa”, que é a primeira coalizão de empresas brasileiras voltadas para a redução do desperdício de alimentos. Outro é a atuação junto a autoridades fiscais e sanitárias em marcos regulatórios mais específicos para doações do tipo no país – um dos últimos da América Latina a contar com uma lei que tratasse da segurança jurídica do doador de alimentos, a 14106, de 2020.

“Além da falta de cultura de doação no país, existem outros grandes entraves, como a falta de regulamentação sanitária específica (utiliza-se a referente à comercialização) e de um arcabouço fiscal favorável. Paga-se ICMS por diversos alimentos que não são comercializados, mas doados, e isso precisa mudar”, finaliza.

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