A Igreja Neopentecostal do Empreendedorismo

Adriano Silva - 29 nov 2019
Como o "empreendedorismo de palco" evoluiu para um culto com sacerdotes carismáticos, mantras entoados em empreendedorês e promessas de entrada no paraíso dos negócios bem-sucedidos
Adriano Silva - 29 nov 2019
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O mercado é um bicho vivo. Não estou arrolando aqui o Mercado com M maiúsculo, com aquela conotação deificada do liberalismo econômico. Também não estou falando do mercado financeiro, epitomizado pelas bolsas de valores.

Me refiro ao mercado como comunidade de compradores e vendedores trocando produtos e serviços, estabelecendo preços e relacionamentos comerciais, criando novas tendências e abandonando velhos paradigmas, elegendo melhores práticas e vendo emergir modelos de negócio e tecnologias que fazem nascer e morrer empresas e indústrias.

O mercado, nessa acepção, é uma estrutura líquida, flexível, em eterna mutação.

Sempre que ocorre uma disrupção, o mercado se retrai, como um organismo vivo. Para, logo em seguida, com notáveis instinto de sobrevivência e inteligência coletiva, voltar, devagarinho, cercando a inovação que o agrediu, até envolvê-la, até engoli-la, até torná-la parte de si.

Nesse processo de fagocitose, o mercado, de modo geral, sai fortalecido. E a inovação, com frequência, perde força.

Esse processo pode ser percebido, em microescala, quando uma grande empresa absorve uma startup que, de alguma forma, lhe desafiava. A operação costuma engrandecer a corporação. E apequenar um pouco a startup.

A APROPRIAÇÃO RASTEIRA DO DISCURSO DE INOVAÇÃO ABRIU CAMINHO PARA A PAROLAGEM DOS “EMPREENDEDORES DE PALCO”

Outra expressão dessa capacidade do mercado de domesticar elementos exógenos, e de rapidamente transformar ameaças em novos produtos e em novos negócios, é a transmutação do próprio discurso de inovação, antes uma conversa incômoda para a maioria das empresas e dos executivos, numa espécie de bem de consumo obrigatório para qualquer profissional ou organização.

A exploitation do mundo da inovação e do empreendedorismo, duas forças que têm colocado em xeque, ao longo da última década, o jeito de trabalhar, de conduzir carreiras e de administrar empresas, se deu primeiro por meio do que se convencionou chamar de “empreendedorismo de palco”.

Basicamente, descobriu-se que o receio e a relativa ignorância do mundo de negócios tradicional diante do universo da Nova Economia representavam uma oportunidade. Criaram-se negócios cujo negócio era indicar aos outros como criar negócios. Surgiram empreendedores cujo empreendimento era ensinar empreendedorismo a quem pretendesse empreender.

Muitos dos “empreendedores de palco” ganharam essa alcunha porque vendiam experiências que não tinham tido de verdade. Havia um bocado de gente falando com grande propriedade de coisas que desconheciam. Dando depoimentos sobre coisas que não tinham vivido. Ensinando a aumentar o faturamento sendo que a sua primeira nota fiscal tinha sido emitida justamente por conta do seu workshop sobre como aumentar o faturamento e-x-p-o-n-e-n-c-i-a-l-m-e-n-t-e.

Essa turma desafiava aquela máxima, atribuída a Einstein, de que ninguém consegue explicar aquilo que não entendeu. Boa parte dos “empreendedores de palco” vivia disso.

Então, para muitos observadores, havia naquelas iniciativas uma pitada de estelionato, de exploração do medo alheio – e da credulidade que surge do medo. Muita gente, diante do próprio desconhecimento sobre um determinado território que considera importante, procura uma solução fácil, busca um salvador que a tire o mais rapidamente possível daquela posição de fragilidade em que imagina estar.

(É curioso como às vezes as pessoas estão atrás de mentiras convenientes – e não das verdades, ainda que desconfortáveis, ou de enxergar a vida como ela é. Quando o mercado está demandando promessas estapafúrdias, quando há grande procura por enganação, o máximo que você pode fazer é se recusar a entregar bullshit, mesmo sabendo que muitos outros o farão.)

O MUNDO É COMPLEXO. NÃO HÁ RESPOSTAS PRONTAS. MAS A “IGREJA NEOPENTECOSTAL DO EMPREENDEDORISMO” QUER TE CONVENCER DO CONTRÁRIO

Desde a era do “empreendedorismo de palco”, a demanda por narrativas bonitas (mesmo que falsas) só cresceu. O mundo se tornou ainda mais complexo, o mercado se tornou, para boa parte dos profissionais, ainda mais ameaçador. E a busca por uma solução que simplifique as coisas, que crie a ilusão de que há respostas prontas para os nossos anseios, diante dos desafios de um mundo pós-industrial, cresceu na mesma proporção.

Como não existe demanda que fique por muito tempo desatendida no mercado, é claro que essa oportunidade rebrilhou para vários empreendedores que se ocuparam de entregar essa esperança, esse unguento, esse bálsamo que as pessoas estavam procurando.

E um bocado de gente não está em busca de compreender o novo mundo – mas de salvação. Essa turma não está à procura de ferramentas que lhe permitam realizar mais e melhor, mas sim de esperança.

Insegurança profissional diante de tanta novidade? Rivotril e evento para inspiração e networking. Medo de trocar o emprego por uma empresa e falhar? Lexotan e palestra motivacional. Ciclos curtos, novas tecnologias, consumidores trocando hábitos, mercado em convulsão? Valium – e por favor alguém que me tome pela mão e me mostre o caminho da verdade e da luz!

Foi assim que o “empreendedorismo de palco” se transformou na “Igreja Neopentecostal do Empreendedorismo”. A demanda por um elixir mágico cresceu e a oferta virou um culto. Desenvolvemos pastores carismáticos. Que professam o dogma, divulgam o evangelho da inovação segundo os gurus do Vale do Silício, e vendem o acesso ao reino dos céus dos negócios bem-sucedidos.

Mais: no palco, ou no vídeo do YouTube, vale qualquer coisa. Correr, gritar, tirar a camisa e pisar em cima, ser agressivo com as pessoas, chamá-las a darem as mãos e a urrarem junto. Virou catarse. Aleluia.

EM VEZ DE COMPARTILHAR APRENDIZAGENS REAIS, OS “SACERDOTES” DO EMPREENDEDORISMO VENDEM ILUSÕES ENVOLTAS NO ÚLTIMO JARGÃO

Diferentemente dos “empreendedores de palco”, na era da “Igreja Neopentecostal do Empreendedorismo” temos um bocado de gente experiente, com obra construída e anos de estrada, propondo essa conversa rasa. De modo deliberado, às vezes cínico, calculado em cima da demanda geral por sopa rala.

Em vez de dividirem suas verdades, os empreendedores que farejaram essa oportunidade contam fábulas. Em vez de exporem o que aprenderam de fato, na labuta, viram sócios do mito, insuflam essa falsa ideia de glamour que paira sobre os atos de empreender e de inovar.

Ao invés de se apresentarem horizontalmente, como pessoas com experiências importantes a dividir, ao invés de compartilharem suas reflexões mais sinceras, incensam suas personas fabricadas à luz daquilo que a média das pessoas deseja ouvir, e se postam como altos sacerdotes no altar do empreendedorismo.

Como resultado, os candidatos a empreendedores, os interessados em inovação, continuam participando de um show, na posição de público pagante eternamente sentado na plateia, milhas e milhas distantes de uma atividade de educação que vá lhes instrumentalizar de verdade.

Em vez de informação concreta e relevante, frases feitas e lugares comuns; em vez de conhecimento útil e prático, platitudes e mantras batidos. Em vez de respostas claras e diretas para questões reais, um inebriante palavreado envolto no último jargão do empreendedorês.

Como resultado, ao invés de aprender com os mais experientes, você acaba se iludindo com eles. Porque se é isso que você está procurando – ilusão, em vez aprendizagem –, é isso que vão lhe entregar.

A grande verdade é que empreender não é fácil. Empreender dói. E inovar não é simples nem rápido. Há muitos riscos. E não há nenhuma garantia. Essa é a única coisa honesta que se pode dizer a respeito dessa vida à margem do mainstream.

Não há caminho curto. Nem fórmula mágica. Nem receita de sucesso. É preciso conhecer os cases – os bastidores, o que aconteceu de fato, não só a parte bacana que querem lhe mostrar. É preciso estudar a trajetória dos outros empreendedores – a real, que inclui os tombos e os erros. É preciso entrar no jogo sabendo que suas maiores aprendizagens só acontecerão na trincheira, tomando tiro de todo lado, e não sentado num auditório, ajoelhado no genuflexório da “Igreja Neopentecostal do Empreendedorismo”.

Se você não souber disso, vai se sentir um lixo a cada final de dia em que não conseguir fechar uma venda ou em que uma entrega não sair conforme o planejado ou em que simplesmente você não souber o que fazer com o seu empreendimento e a sensação predominante ao colocar a cabeça no travesseiro for de isolamento e desamparo.

(Perceba como esse sentimento de fracasso só realimenta o ciclo todo. Perdido, ansioso, desesperançado, deprimido, o que você faz? Volta à “Igreja Neopentecostal do Empreendedorismo” em busca de conforto.)

A vida fora da caixa pode ter um bocado de recompensas. O Draft, há cinco anos, tem contado histórias que mostram como empreender pode gerar realização profissional e como inovar pode gerar felicidade no trabalho. Mas o caminho é longo e é acidentado. Exige estômago. Exige fígado. Exige coração.

E exige cabeça também. Qualquer pessoa que lhe disser que incorporar meia dúzia de palavras de ordem pela manhã vai aumentar a sua taxa de sucesso ao meio-dia estará mentindo. Muitas vezes com a sua aquiescência. (E muitas vezes essa pessoa é você mesmo.)

 

Adriano Silva é Fundador & CEO do Projeto Draft. Esse texto faz parte de uma série de artigos produzidos em comemoração ao aniversário de 5 anos do Projeto Draft, que teve seu primeiro post publicado em 29 de agosto de 2014.

 

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