Um clube da série A está atrás de startups para resolver seus desafios internos. A inovação aberta está chegando ao futebol?

Bruno Leuzinger - 19 out 2020
Felipe Ribbe, head de Novos Negócios da Enzima.
Bruno Leuzinger - 19 out 2020
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“Futebol” e “startups” não parecem ser temas que combinam. Pelo menos não no Brasil, onde o atraso e o amadorismo com frequência dão as caras na gestão dos clubes, mesmo aqueles da elite.

Essa percepção pode estar prestes a mudar.

Com inscrições até 16 de novembro, o Vozão Conecta se anuncia como “o 1º programa de inovação aberta do futebol brasileiro”. Trata-se de uma iniciativa conjunta do Ceará Sporting Club, da Enzima (venture builder do Grupo Pluri com foco em negócios de esporte e entretenimento) e da Outfield Capital. A ideia é atrair startups para ajudar a resolver desafios internos do clube.

Fundado em 1914, o Ceará é um dos dois times cearenses hoje na Série A do futebol brasileiro (o outro, claro, é o arquirrival Fortaleza). Atual campeão da Copa do Nordeste, o clube alvinegro tem como mascote um senhor idoso, o “Vozão” — daí o nome curioso do programa de conexão com startups.

O primeiro esboço do programa saiu da cabeça de Felipe Ribbe, 35, head de novos negócios da Enzima. Jornalista de formação, carioca hoje radicado em São Paulo, ele tem passagens pelo SporTV e, mais recentemente, pela NBB, a liga nacional de basquete.

A seguir, Felipe conta os bastidores da montagem do Vozão Conecta, fala sobre os desafios na mira do Ceará — e como o ecossistema de startups pode ajudar a resolver outros gargalos do futebol brasileiro.

 

Como e quando surgiu a ideia do Vozão Conecta?
Cheguei à Enzima em julho, e antes disso já tinha um planejamento de fazer um programa semelhante lá no NBB, mas acabei não tendo tempo para fazer isso lá. Na Enzima, vi que havia a possibilidade de fazer com os clubes de futebol, nos inspirando no que estava acontecendo lá fora.

Os clubes precisam diversificar suas fontes de receita, melhorar processos internos, performances de atletas, a prevenção de lesões, e não sabem como. Na cabeça deles, quando você fala em inovação, é sempre muito “caro”, “mirabolante”… 

Mas não é assim. Pelo contrário: clubes não tão grandes de fora [do Brasil] estão se tornando grandes laboratórios para startups justamente para ter contato com soluções inovadoras a um custo muito menor do que se fossem chegar em empresas consolidadas.

E como foi a abordagem para apresentar a ideia ao Ceará?
Eu apresento um programa duas vezes por semana no canal da Pluri [no YouTube], o Enzima Live Show, em que o foco é inovação, tecnologia, esportes eletrônicos, enfim, assuntos voltados para esporte e entretenimento. 

Convidei o Lavor Neto, diretor de comunicação e marketing do Ceará, e durante o papo ele disse que o clube tinha o planejamento de no futuro se abrir e ser um laboratório onde empresas poderiam sugerir ideias, testá-las… Quando a gente saiu do ar, comentei: “pôxa, a gente tem algo pronto para te apresentar, você tem interesse em ouvir?” 

Agendamos uma reunião na semana seguinte, e mostrei o que a gente estava pensando, ele viu valor… Dali a duas semanas tivemos outra reunião com responsáveis por todos os departamentos do clube, onde apresentarei de fato o projeto, disse que era importante que as áreas estivessem envolvidas naquilo, porque não adiantaria nada trazer startup e ela ficar três meses sem ter ninguém do clube para dar apoio. 

A partir daí, mandei o “dever de casa” para eles verem as dificuldade que encontravam no dia a dia. Sempre deixando muito claro que o objetivo não era nada mirabolante. 

Quando comecei a falar com eles, eles pensavam em coisas como “mandar um homem para Marte”. Não é isso. Quando você fala em inovação, basicamente é melhorar o que vocês [já] fazem hoje. Não precisa ser uma baita solução tecnológica… 

Então, nosso trabalho com o Vozão Conecta também é de abrir oportunidades dentro do futebol brasileiro. Abrir o clube para que startups consigam testar soluções num ambiente de alto desempenho — e a partir daí estimular que outros clubes façam o mesmo.

Quais são os desafios lançados pelo programa?
São oito desafios. Muitos são focados em comunicação e marketing. Por exemplo, automação de produção de conteúdo em vídeo: desde a produção em si, filmar treino de forma automatizada, filmar coletivas, até a edição desses melhores momentos de forma automatizada… Ainda na área de comunicação, [buscamos] soluções de engajamento de torcedor, o maior número de sportstechs [no país] hoje são voltadas para engajamento. 

Há outras soluções mais específicas [em vista]. Buscamos uma ferramenta de gestão de contratos de patrocínio. Hoje o clube tem uma grande dificuldade em saber o que já foi entregue, o que falta ser entregue de cada um dos seus contratos de patrocínio… 

Nesse caso específico, a gente acredita que, se resolver o problema do Ceará, essa startup vai conseguir atender diversos outros clubes — porque eles conversam entre si e esse é meio que um problema geral

Também buscamos ferramentas de gestão e análise de redes sociais; e ferramentas de comunicação interna entre todas as áreas — há uma certa dificuldade na troca de ideias e informações. 

Outros desafios são o Castelão Inteligente: soluções que tornem mais fácil a vida do torcedor, dentro e fora do estádio; e o CT Sustentável, que busca soluções de sustentabilidade para o centro de treinamento. 

Por último, buscamos soluções para o patrimônio histórico. O Ceará é um clube centenário, então estamos falando desde inteligência artificial para melhorar a qualidade de imagens superantigas que eles conseguiram recuperar, até realidade virtual, realidade aumentada… Para que o centro cultural do clube seja mais tecnológico — e o torcedor que está fora de Fortaleza tenha acesso a esse patrimônio de forma mais fácil [e digital].

Qual é o perfil das startups que vocês buscam? E como vai funcionar a dinâmica do programa?
Será um programa totalmente online. Primeiro por uma questão de distanciamento social, logicamente. Mas também [porque] quisemos abrir para startups de outros estados e países — ir a Fortaleza não é tão barato, ainda mais para empreendedores em fase inicial. E isso é uma tendência em programas ao redor do mundo, eles têm sido cada vez mais online.

Estamos buscando startups que tenham pelo menos um protótipo — ideias não estamos aceitando porque a gente acha que em [apenas] três meses uma ideia não vai se tornar algo interessante para o clube. 

Durante esses três meses, as startups vão trabalhar com o clube, cada uma com um responsável da sua área específica, do desafio para o qual ela foi escolhida. Elas vão poder usufruir dos dados do clube para refinar seus produtos, testar a solução já diretamente com a torcida ou com os profissionais do clube 

Depois, vamos ter um “demo day”, mas eu nem gosto de chamar assim, porque eles não vão ser avaliados, é muito mais uma apresentação do que foi desenvolvido. Não é uma competição.

As startups não vão receber por esse piloto — e também não têm garantia de que o clube vá fechar contrato com elas. Mas a gente acredita que é uma excelente oportunidade para demonstrarem valor e entrarem no mercado de futebol, que é tão difícil de ser acessado.

Daí, podem sair com um [eventual] contrato com o Ceará e um “selo” [chancela]: ó, minha solução está sendo aplicada no Ceará… Fortaleza, o que você acha? Bahia, Flamengo, Cruzeiro, o que vocês acham?

Quais serão os papéis da Enzima e da Outfield Capital?
A Enzima é responsável por operacionalizar todo o programa. Fazemos desde o básico, o site, a comunicação audiovisual, ir atrás das parceiras para atrair o máximo das startups possível… Vamos auxiliar o clube junto, com a Outfield, na escolha dessas startups. 

Em vez de deixar na mão da startup com o clube para marcar as reuniões, a Enzima fará esse meio de campo. Pelo menos uma vez por semana, elas vão ter encontros com o responsável pelo clube, entregas vão ter que ser combinadas, relatórios vão ter que ser preenchidos. A Enzima terá esse papel de facilitador

Durante o programa, vamos ter palestras sobre temas específicos. Por exemplo, aspectos jurídicos e financeiros, como captar investimentos… A Outfield será também responsável com a Enzima por essa questão [das palestras] dos investimentos — e, claro, se achar interessante, ao final desses três meses, fazer algum aporte nessas startups.

Tivemos uma preocupação de não fazer com que a startup tivesse que abrir mão de algo. Então, não estamos pedindo percentual, exclusividade na hora do investimento… Nosso objetivo é abrir as portas do clube para as startups.

Vocês se inspiraram em algum benchmark?
Principalmente três programas. Um é o Barça Innovation Hub. Que nem é um programa de inovação aberta apenas com startups: eles abrem o clube para universidades, hospitais… É algo bem maior, mas também trabalham com startups em alguma vertentes. E não é pontual: durante todo o ano você pode aplicar. Se houver interesse, o Barça Innovation Hub incuba a startup.

Outra referência foi um desafio de startups feito pelo City Football Group, grupo que é dono de uns dez clubes ao redor do mundo. Foi feito em Manchester, tendo o Manchester City como base, e com um desafio focado no Etihad Stadium. É um pouco diferente do nosso, porque é menor: selecionaram startups do mundo inteiro, mas o programa durou uma ou duas semanas, foi uma imersão total dentro do clube. Depois, escolheram algumas startups para trabalhar com os demais clubes do grupo.

O programa em que mais me inspirei foi o Werder Lab, iniciativa do Werder Bremen, da Alemanha. É muito parecido com o nosso. A diferença é que ele era [realizado] antes da pandemia, e as pessoas iam até a cidade, ficavam trabalhando diretamente com o clube; com a Covid tiveram que mudar isso. No caso deles foram apenas três desafios e dois meses [de duração], também sem receber por isso — mas com possibilidade de ter uma solução validada por um clube da elite do futebol alemão.

Para além do Vozão Conecta, que outros gargalos do futebol brasileiro poderiam ser resolvidos por meio de parcerias com startups?
O principal hoje, e acho que o mais urgente, é a questão dos clubes começarem a enxergar seus torcedores de forma pessoal, e não mais como uma “massa cinzenta” que você fala que tem dez milhões de torcedores, mas não faz ideia de quem esses caras são.

Outras indústrias já estão acostumadas com [a ideia de que] “os dados são o novo petróleo”… No futebol isso é muito “virgem”. Tirando o Athletico Paranaense, nenhum clube tem uma base de dados relevante para conhecer seus torcedores — e quando a gente fala “conhecer torcedores”, é poder não só entregar mais valor para esse público-alvo, mas também para os parceiros comerciais do clube.

Temos um gargalo muito grande também na forma como você lida e provê conteúdo a esses torcedores. Pegue o exemplo da Juventus de Turim: com um só login você tem acesso ao app do clube, pode ver vídeos de treinamentos, jogos ao vivo da base, do futebol feminino… O mesmo login serve para comprar ingressos, acessar o estádio, entrar na plataforma de e-commerce… É uma facilidade muito grande para a vida do torcedor.

Hoje o torcedor é muito mal tratado aqui no Brasil. E acho que esses programas, essas tecnologias, podem ajudar os clubes não só a conhecer melhor seu torcedor, mas principalmente a atender esses torcedores, melhorar a experiência deles

Tem também uma questão técnica, de performance: os grandes clubes do Brasil já trabalham com softwares de análise de performance, mas ainda há um espaço muito grande para melhorar a prevenção de lesões, por exemplo. 

E até em termos organizacionais, [há demanda por] soluções que ajudem os clubes a serem mais organizados como instituições. Por mais que a maioria sejam associações, não sejam empresas LTDA, deveriam ser geridas como tal. 

Essa aproximação com as startups dá [acesso] não só a soluções que vão melhorar a gestão, mas um contato com formas de gestão diferentes, mais ágeis… A convivência com as startups pode ajudar a abrir a cabeça das pessoas que trabalham no futebol, para que tenham uma percepção melhor de como gerir seus clubes.

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