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“A tecnologia é crucial para que governos percebam que dados são ativos da sociedade”, diz Miriam Chaves, da Lemobs

Julia Moioli - 6 dez 2021
(Crédito: CDC/Unsplash)
Julia Moioli - 6 dez 2021
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Identificar problemas da administração pública e lançar mão de soluções tecnológicas escaláveis para resolvê-los têm sido a missão da Lemobs nos últimos cinco anos, desde que a govtech nasceu, dentro do ecossistema do Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Basta observar o portfólio da govtech para entender a vastidão do trabalho: os serviços oferecidos pela Lemobs estão focados nas principais questões enfrentadas por gestores municipais: fiscalização, educação, alimentação, saúde e coleta de lixo.

Um desses produtos é o Alimentação Escolar, um software que permite a gestão da alimentação de acordo com as diretrizes do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), evitando desperdício e melhorando o cardápio oferecido aos alunos nas escolas. Além da gestão de estoque e precisão na hora da compra, o serviço permite, por exemplo, que o cardápio considere as alergias alimentares dos alunos.

Apesar de se tratar de um potencial enorme, com mais de 5 mil municípios só no país, Miriam Chaves, head de inovação da Lemobs, diz que os desafios também são grandes. O principal, destaca, é o tempo de negociação até a compra: ela estima uma média de 1 ano e 8 meses até a assinatura do contrato –o que pode ser uma eternidade quando o assunto é inovação.

A boa notícia é que a resistência ao uso da tecnologia é cada vez menor. “Os profissionais públicos e os cidadãos já esperam melhores serviços digitais”, diz Miriam. Leia a seguir trechos dessa conversa.

NETZERO: Como as soluções criadas pela Lemobs têm transformado tecnologicamente os municípios atendidos por ela?
MIRIAM CHAVES: O primeiro exemplo que posso dar, que é o mais recente, é a solução Alimentação Escolar. A estatística da ONU é que de 8% a 10% dos gases de efeito estufa são provocados pelo desperdício de alimento, e, em contrapartida, temos o problema de fome, não apenas no Brasil. Precisamos tentar resolver. Não quer dizer que o que você não desperdiçou vai resolver diretamente a fome, mas é claro que vai ter impacto ambiental também, vai diminuir o custo e vai aumentar a possibilidade de alimentar aqueles que têm fome. Já estamos indo para o terceiro ano de aplicação dessa solução num município com 30 mil alunos e 64 escolas, inclusive indígenas.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar é uma das políticas públicas muito bem construídas no Brasil e é um exemplo para outros países, com várias regras nutricionais. O Sistema que criamos é um assistente inteligente que ajuda a cumpri-las e auxilia o nutricionista com dados que normalmente não seriam processados por ele.

Um cardápio mensal que levaria 4 horas para ficar pronto e agora é feito em cinco minutos. Outro impacto é na diminuição dos erros na solicitação de alimento, o que afeta diretamente o desperdício de produtos. Era comum pedir 100 sacos de arroz em vez de dez.

Outros dois exemplos de soluções –que são, inclusive, gratuitas para os municípios, porque recebemos financiamentos de pesquisa, inovação e do governo– são o sistema Combate Aedes, que já fez mais de 300 mil vistorias, teve 8 mil focos efetivamente localizados e eliminados e contou com o cadastramento de 3 mil órgãos e instituições; e o Minha Saúde, que é uma auto-avaliação de Covid diretamente conectada ao município, utilizada por mais de 1 milhão de pessoas, em mais de mil municípios, em 12 países.

A Plataforma Alimentação Escolar levou a Lemobs à COP26. Como foi essa experiência para a empresa?
Participamos do desafio de redução de desperdício de alimentos da CivTech Alliance na COP26, que é uma instituição escocesa que une soluções privadas e a governos. No Brasil, ela é associada ao BrasilLab, ao IdeiaGov e ao Desenvolve SP. Infelizmente não temos uma visão federal dessa questão do ecossistema de inovação — ainda que o BNDES tenha várias iniciativas, não existe uma liderança.

Levamos à COP26 nossa solução Alimentação Escolar e foram cinco semanas intensas no que eles chamam de “safari”, com apresentação de “policy makers” e ecossistemas. Estávamos tratando de sistema alimentar escolar, mas percebemos que temos a possibilidade de trabalhar isso de modo mais amplo, completo em todas as suas etapas. Por exemplo, podemos ampliar a ajuda ao agricultor familiar e incluir também aproveitamento integral dos alimentos na escola em busca do máximo possível de nutrientes.

Os números do Brasil são muito impactantes e isso abriu nossa cabeça para investir mais no processo, pois uma melhora mesmo pequena provoca um impacto grande. Nossa participação abriu a possibilidade de ajudarmos países ricos também, preocupados com nutrição e obesidade.

Quais os desafios de ser uma govtech e vender soluções para órgãos públicos?
Na verdade, os desafios são específicos em ser uma govtech no Brasil. Temos um cenário de crise econômica, mas existe também uma realidade de pressão por melhorias em termos de tecnologia. São cobranças feitas por parte do cidadão, dos governos e dos próprios funcionários. Então, há um estímulo para ampliação do uso da tecnologia.

Mas o processo de compra é o nosso maior desafio. Esse processo é extremamente longo, para não dizer, às vezes, impeditivo de inovação. Têm sido feitos alguns esforços de mudança da lei geral de licitação, mas isso ainda não flui nos governos e nos órgãos federais.

A dificuldade para se contratar é enorme. Não há referências técnicas boas, e o processo é muito cheio de travas por conta da lógica de controle mais do que de resultado, que tem, claro, uma preocupação cabível. Nosso prazo –desde que começamos uma conversa até sermos contratados– é de cerca de um ano e oito meses. Não é fácil para uma startup.

Que fatores impedem ainda hoje uma transformação digital dos municípios brasileiros?
Nem sempre é possível fazer isso de maneira óbvia – fácil nunca é. Ao contrário do que as pessoas pensam, os sistemas não estão nas prateleiras, não está tudo resolvido. Muitas vezes o governo compra um sistema de prateleira e vê que não funciona. É preciso adequar o que você possui, sem ser impositivo. Além disso, normalmente existem vários pequenos sistemas no município e é preciso integrar esses dados e trazer aquilo que é inovador e que causa impacto o mais rápido possível.

Esse desenho não é uma coisa fácil. Mas a tecnologia é absolutamente crucial para os governos perceberem que os dados são ativos da sociedade, que têm valor para atender melhor e que devem ser protegidos e preservados. Mas o desafio maior está em facilitar a contratação por parte dos municípios.

Ao apresentar soluções a esses clientes, como em geral a proposta é recebida?
A tecnologia é absolutamente fundamental para a gestão pública. Então, quando a Lemobs se apresenta num município é porque existe uma demanda de transformação digital que já está colocada na sociedade e no município. Nesse sentido, eu acho que temos uma vantagem: esse cenário é consenso, não é algo que está sendo questionado.

Aquela resistência de 30 anos atrás, de “não quero usar computador”, não existe mais. Agora a tecnologia aumentou, e os profissionais públicos e os cidadãos esperam melhores serviços digitais. Os problemas estão cada vez mais complexos, a quantidade de dados é imensa e seu uso é muito relevante.

A Lemobs ganhou diversos prêmios, que reconhecem o poder dessa inovação em transformar as cidades. Qual é a solução mais disruptiva que vocês desenvolveram?
Quando falamos em disrupção, entramos em outra seara que não é a inovação. A disrupção é uma mudança completa da situação anterior para a nova. Eu acho que a disponibilização de um processo integrado de fiscalização, como acontece no Lixo Zero, foi uma solução impactante e disruptiva nesse sentido porque tinha todo um conjunto de tecnologias associadas à questão da coleta do lixo.

Foi uma tecnologia disruptiva colocar o GPS no caminhão de lixo para conferir a quilometragem rodada. Aconteceram até ameaças. Ainda nessa linha de gestão de frotas, colocamos GPS no odômetro do caminhão. Estamos pesquisando também RFIDs,“etiquetas” que emitem sinais eletrônicos e podem ser verificadas automaticamente, e verificamos a autorização delas para estimular a separação do lixo descartável, dos vários tipos.

E existe ainda a questão de disrupção, que é questionável academicamente, no sentido de introduzir a inteligência em processos que não tinham essa inteligência. Então volto ao exemplo da Alimentação Escolar, pela qual se oferece a oportunidade de olhar dados, analisá-los e indicar para a escola o volume de lixo gerado a partir de determinada forma de preparo.

O Projeto Draft já destacou uma plataforma de combate ao mosquito da dengue desenvolvida pelo Lemobs. Como vocês identificaram essa oportunidade de serviço?
A Lemobs saiu de um grupo de pesquisadores da COPPE/UFRJ, que tinha vários contratos com o Ministério do Planejamento. O governo federal tem o Serpro que fornece soluções, mas essas instituições são lentas para soluções inovadoras. Nesses casos, é realizada uma cooperação com universidades. Nesse ambiente, falava-se da dengue. Como já existia um sistema de vistoria de obras, surgiu a ideia de fotografar os possíveis focos de dengue. A oportunidade surgiu desses encontros.

Quando vocês iniciaram a incubação no COPPE, lá em 2015, qual era a ambição e como isso mudou ao longo desses anos?
Ampliamos nossa visão, sem dúvida. A Lemobs foi uma spinoff do programa de lixo da Conurb [Sistema de Controle Urbano], pelo qual era possível imprimir a multa na hora. Percebemos que essa era uma questão de todas as cidades e, assim, surgiu a govtech.

Começamos a ir para as cidades e a ter outras demandas. Nosso grupo é muito bom do ponto de vista de entender bem o problema e a dor do gestor, já que temos experiência acumulada na área e sabemos muito de tecnologia pelo contato com a universidade. Além disso, nossa arquitetura, construída desde o início, é uma arquitetura modular baseada em plataformas que se integram por API, então é muito fácil combinar produtos e gerar novos produtos.

Você tem uma longa trajetória profissional relacionada à interface com o instituições públicas. Como você avalia essa evolução tecnológica?
Eu trabalhei por 40 anos no Laboratório Nacional de Computação Científica. Comecei como estagiária e me aposentei recentemente. Ainda como estagiária, trabalhei na modelagem computacional de fenômenos físicos e participei de dois projetos ligados à [usina nuclear] Angra 3 e em avaliação de modelos de lago para hidrelétrica.

Eu me lembro, por exemplo, que se os macacos que iriam morrer numa determinada ocasião fossem coletados e vendidos, o valor cobriria metade do custo daquela obra. Eu já tinha essa atração pela Amazônia e me incomodava muito com essas questões, devo confessar.

Também participei de projetos com o Museu Paraense Emílio Goeldi, tive a oportunidade de fazer o planejamento estratégico do plano de sustentabilidade da Estacão Científica de Caxiuanã e atuei no processo de disponibilização do banco de dados da Escola Virtual da Amazônia, além de muitos outros programas de impacto social na parte de dados e de sistemas de gestão, inclusive o cadastro de trabalho escravo do Ministério do Trabalho e a implantação do Portal de Dados Abertos do Brasil e da lei de acesso à informação.

O que eu mais me orgulho foi ter ajudado a fazer o Processo Eletrônico Nacional, que eliminou o papel e instituiu processos eletrônicos. A digitalização das informações melhora o processo, dá mais transparência e dá mais eficiência à administração pública. Minha trajetória sempre foi alinhada a esses temas, como indivíduo ou no trabalho no governo.

Hoje, na Lemobs, temos a preocupação de garantir a diversidade, afinal, trabalhamos com governos e precisamos ter a visão de todos os aspetos. Também estamos dentro do Parque Tecnológico, então já herdamos essa preocupação de inovação e meio ambiente.

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