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“As corporações do Terceiro Setor têm uma relação colonizadora com as organizações de base. É um olhar que subjuga o outro”

Marina Audi - 13 ago 2025
Gabriela Yamaguchi, empreendedora do Terceiro Setor e especialista associada em projetos no Instituto Cidade Democrática (foto: Mayara Neves).
Marina Audi - 13 ago 2025
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Aos 52 anos, Gabriela Yamaguchi, paulistana crescida na Zona Leste, já é avó e está na segunda grande transição de carreira de sua vida.

Desde abril, ela se define como empreendedora do Terceiro Setor. Trabalha como especialista associada em projetos de participação social no Instituto Cidade Democrática, onde a dedicação é por projeto e a forma de atuar é mais fluida em comparação ao que ela viveu nos últimos anos.

Formada em jornalismo, Gabriela trabalhou 15 anos na Editora Abril, especializou-se na produção de conteúdo digital e migrou da função de repórter para o marketing e publicidade.

“Eu brinco que tinha uma causa a ser defendida: conseguir o financiamento publicitário para os projetos editoriais inovadores da época”

Nesse movimento, ela conheceu o universo das empresas e participou do Planeta Sustentável, projeto pioneiro de mídia multiplataforma que coletava, produzia e distribuía conhecimento sobre desenvolvimento sustentável na busca por mobilização corporativa e financiamento climático.

Foi natural que, a partir de então, surgissem oportunidades no Terceiro Setor. Gabriela foi indicada para o Instituto Akatu, que advoga a favor do consumo consciente e da economia circular. Aceitou o desafio e fez sua primeira grande transição de carreira, deixando para trás a aura de repórter. No Terceiro Setor, ela passou também pelo Purpose Climate Lab e WWF-Brasil, onde permaneceu sete anos.

Até que, em abril de 2024, o grande ecossistema global de financiamento e circulação de recursos financeiros passou a não fazer mais sentido para Gabriela. Ela se afastou do trabalho por um ano para cuidar de uma depressão gerada por esgotamento mental. E, em 2025, voltou com o coração aberto, cheia de entusiasmo e muitas provocações ao modelo que considera ultrapassado.

Confira a conversa de Gabriela Yamaguchi com o Draft:

 

Tenho uma hipótese sobre o que acontece com quem trabalha em jornalismo e se muda para o Terceiro Setor, veja se você concorda. No geral, os jornalistas são “paparicados” e procurados. No seu caso, quando fez a transição, em 2013, foi preciso promover um esforço grande para se aproximar e fazer a conexão com todos os atores? Algo muito maior do que o necessário como jornalista para se conectar?
Foi exatamente isso. A imprensa é vista como um espaço de poder, então sempre há um interesse grande em lidar com o jornalismo como um espaço a ser ocupado.

Esta é uma abordagem ultrapassada, mas as organizações continuam insistindo nisso. Têm um olhar muito controlador, uma relação bilateral e de dominação: “Vamos brifar a imprensa, vamos pautar o que a imprensa precisa falar para nos beneficiar”

Esses são os termos usados, não só pelo Terceiro Setor, mas por governos e empresas também! A visão nasce de uma relação muito equivocada com o jornalismo, um dos pilares do Estado Democrático de Direito.

Na minha transição para o Terceiro Setor, senti um estranhamento ao chegar. O Instituto Akatu é uma organização que transita muito também no universo corporativo e, principalmente, no filantrópico. Como a abordagem ali é com a mobilização do mercado de consumo, existia uma expectativa de usar o meu conhecimento do jornalismo e da grande mídia para essa abordagem: vamos pautar, mudar o comportamento do consumidor, porque é nas costas dessas pessoas que está a decisão de influenciar as empresas.

A dificuldade da transição foi justamente perceber que é tudo tão “monotrilho”, é sempre o de-para… que é uma maneira de pensar ocidental dos saberes, da compreensão e da colaboração.

O foco total da minha transição foi: “Você conhece imprensa, sabe como funciona a comunicação, vamos fazer grandes campanhas de mobilização.”

Cuidei de campanha que precisava entrar na TV aberta, campanha educativa, muito em cima de uma abordagem que classifico, hoje, como extremamente ingênua, de achar que a pessoa consumidora na sua casa tem o poder de mudar a história toda da sustentabilidade… E não tem a menor possibilidade disso acontecer!

É uma visão não só ingênua, mas um tanto quanto covarde, principalmente das lideranças corporativas e das organizações da sociedade civil, que ainda têm essa visão tacanha, limitada mesmo, do que é o universo de comunicação e a participação democrática.

Enfrentei uma barreira para explorar uma maneira diferente de trabalhar a comunicação a partir de outro lugar de sociedade civil, porque havia uma mimetização do universo corporativo das próprias empresas de comunicação, uma mimetização das estratégias de marketing e publicidade dentro de campanhas educativas.

Uma segunda dificuldade muito grande dessa transição foi lidar com um núcleo de pessoas que vinham trabalhando com o meio ambiente até antes da Eco 92, desde quando os primeiros conceitos de sustentabilidade e meio ambiente foram trabalhados no debate público.

É um clube fechado de pessoas que se acham iluminadas por terem entrado com pioneirismo. Com todo o respeito ao pioneirismo e ao engajamento a esses temas, mas não existe privilégio porque algumas pessoas foram as primeiras a entrarem numa agenda, principalmente numa agenda que diz respeito à sobrevivência de todos

A relação está em todas as comunidades. Existe uma história muito mais antiga, ancestral, do que apenas o que se conhece como “legislação ambiental”.

Existe uma resistência a quem vem de fora do métier do ambientalismo. Quantas vezes não fui mal recebida pelos próprios ambientalistas por não ser aquela pessoa que sempre trabalhou com meio ambiente: “Você nunca fez parte do mutirão X, nunca se engajou na campanha que jogou não-sei-o-quê contra tal empresa”. É uma comunidade que se isolou até para se defender, por serem tão poucos.

Havia pouco acolhimento ao que não era feito da maneira como foi feito pelos pioneiros – políticos, cientistas das universidades, não só do Brasil, mas do mundo, pessoas escritoras e artistas. Essas pessoas começaram com o que se conheceu como o movimento ambientalista do pós-ditadura, com um conhecimento maior dos movimentos de preservação florestal, lá nos 1970 até 80.

Foi difícil transitar nesse lugar de exclusividade. Tenho muito respeito aos profissionais, conheço vários deles e aprendi com muitos deles. E que bom que, hoje, a gente reconhece que não existe uma pauta ambiental [apenas] desde 1970. A gente tem uma pauta ambiental desde que a natureza existe! Os povos originários estão aí, a história do Brasil é muito anterior à “descoberta” [pelos portugueses].

O colonialismo é uma força e um legado histórico a ser enfrentado. E essa nossa relação com a natureza e os direitos à vida é onde tenho focado a minha atuação – são anteriores a um conhecimento com uma visão ocidental, norte-centrada e colonialista dos saberes e das relações com a natureza

Que bom que a gente está chegando no momento de deixar isso de lado e realmente falar de outros saberes e outros conhecimentos.

Hoje, depois de um pouco mais de 12 anos trabalhando em e com ONGs, você tem esse entendimento. Quando se deu conta de que esse formato de pautar a imprensa – algo equivalente, no mundo corporativo, a se falar em decisão top-down e não em colaboração e cocriação – não era efetivo? E o que acha que funciona hoje?
Aprendi da melhor maneira que é conhecendo as pessoas nos seus contextos, conhecendo as comunidades nos seus territórios, conhecendo outras maneiras de abordar esses temas, diretamente com as pessoas que vivem, no seu dia a dia, a defesa dessa pauta socioambiental no Brasil.

Isso começou no Akatu, ao conhecer organizações comunitárias de base menores, menos patrocinadas pelo mercado corporativo e filantrópico. Organizações que estavam, de fato, tentando achar soluções para serem mais escutadas e terem mais espaço de participação, principalmente no desenvolvimento de acordos sociais, políticas públicas, benefícios no investimento em educação e sobrevivência desses costumes e saberes.

Uma coisa que mudou meu coração, a minha história e até a minha relação com o universo da comunicação foi ter contato direto com as organizações de base comunitária 

E isso tem uma importância muito grande porque a gente teve um rescaldo, uma ressaca do pós-ditadura militar, que deixou um legado de reforço do colonialismo, de tentar sufocar a participação social, mesmo as organizações que, durante a ditadura, tentavam resistir.

No começo dos 1980, a gente ouvia falar das associações de bairro, as comunidades regionais das mais diversas matrizes religiosas. Essas associações comunitárias estavam tentando sobreviver e muitas foram desarticuladas, por isso temos hoje um universo de participação social muito menos inclusivo.

Vivemos o processo de diminuição do espaço de participação das organizações da sociedade civil. E a gente tem uma lição de casa gigante: a retomada dessa participação nesse momento de defesa da democracia, em âmbito global

Foi um tapa na cara da comunicação tradicional como eu a conhecia, entrar em contato com essas organizações – não só nesse trabalho mais de base no universo de cidades, de crise climática [no Akatu e na Purpose], mas também durante o período em que fui diretora no WWF-Brasil.

Rodei o Brasil inteiro e conheci organizações de povos indígenas; comunidades tradicionais e extrativistas dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre; comunidades quilombolas no Cerrado Brasileiro; comunidades periféricas em Belém – que estão enfrentando a construção da COP30 de uma maneira desrespeitosa; até grupos direcionados para a agenda de gênero e raça.

Ao conhecer e falar com todo mundo, vi que essa comunicação que muitas vezes ainda é levada na academia, nas universidades ocidentais é muito purista… Não acolhe que existem saberes e formas de se expressar, comunicar e de estabelecer justamente relações de debate e de troca muito mais saudáveis ao incorporar essas lições e a nossa história, a nossa cultura.

Não existe nenhuma outra maneira de fazer comunicação de uma maneira democrática no Brasil sem acolher história e cultura! E são muitas histórias diferentes, muitas culturas diferentes

Aqueles conceitos mais básicos da transição da cultura de massa das grandes corporações de mídia para o grande protagonismo das redes sociais, como a gente vê hoje, têm a lógica quebrada quando a gente chega nesse universo complexo e sistêmico das relações comunitárias.

Foi esse lugar que mudou muito não só o que eu entendia por comunicação, mas também as decisões de carreira que acabei tomando.

Você colocou sua carreira em pausa durante um ano. Foi por uma questão de saúde? Ou fruto de uma reflexão profunda?
É interessante compartilhar que foram quase sete anos como líder do WWF-Brasil, participando muito desse ecossistema grande de financiamento e circulação de recursos financeiros. Eu estava dentro de uma organização global que faz parte desse sistema de poder.

Reconheço que foi um período de aprendizagem, porque trabalhei com pessoas muito talentosas… Mas nas organizações que nascem dentro desse sistema de poder oligárquico e colonizador em sua essência, há uma dificuldade enorme de transitar para um novo formato.

Vi isso acontecer com empresas, organizações da sociedade civil e vejo acontecendo com os governos democráticos que acabam se equivocando e mantêm decisões centralizadoras e um modo de operar que não representa o momento que a gente está vivendo.

Dentro de uma organização que nasce como ambiental, como o WWF e tantas que existem no mercado, as pautas social, cultural e histórica acabam tendo um espaço pequeno. E tentar defender essas pautas dentro de uma estrutura antiga é muito desgastante

A organização tinha decidido ir para um caminho de manutenção de estruturas, de como é reconhecida no Brasil e no mundo. É uma organização enorme. Enquanto o meu compromisso se tornou, cada vez mais, estar perto das comunidades de base e perceber que a solução está muito mais lá. Se tem um lugar onde posso dedicar o meu esforço, a minha história e contribuir é principalmente junto com elas.

Então saí da diretoria de Engajamento do WWF-Brasil e passei um ano cuidando da minha saúde. Estava vivendo um processo de esgotamento mental com diagnóstico de depressão, num corpo com dores. Tive acompanhamento de médicos, psicoterapia, yoga e fisioterapia. A rede de apoio da família e pessoas amigas foi e tem sido a base desse novo momento.

Ainda me emociono quando falo, mas eu celebro esse processo de saída porque me permitiu fazer uma pausa, que foi essa reflexão profunda sobre o meu trabalho. A minha escolha profissional foi a de uma pessoa que quer continuar trabalhando por muito tempo.

Falo sempre que a ética do jornalismo é a minha base. A ética do que eu sou enquanto jornalista, do que eu fui durante todo o período que fui repórter, é a minha base para hoje tomar a decisão de que se eu tiver que contribuir com os meus saberes, com o meu conhecimento e construir algo, quero que seja algo mais coletivo e do qual eu faça parte

Eu não preciso mais ser C-level, não preciso ser mais a diretora de uma organização. Hoje, existem modos de trabalhar e de se relacionar no trabalho que são muito mais fluidos e orgânicos. E nessa jornada de ter dedicado um tempo para me recuperar, cuidar da minha saúde, virei avó. Cuidei da família e tive um olhar mais carinhoso comigo mesma, com a minha jornada.

Qual é a sua perspectiva sobre o Terceiro Setor no Brasil e a agenda ESG nas corporações? Você vê mais avanços ou mais confete? Me pareceu, pelo que você disse há pouco, que as organizações estão com a mentalidade aristocrática, autoritária querendo impor de cima para baixo um jeito de fazer, resolver e de conversar…
Assim como em todos os setores da sociedade, dentro do Terceiro Setor, existe um grupo de organizações que estão no sistema de poder acima das outras, por alguns motivos.

Primeiro, por um financiamento e uma dependência econômica de fundos ou de recursos internacionais. São os financiamentos que vêm principalmente da Europa, dos Estados Unidos, do Norte Global como um todo, os primeiros locais onde nasceram as grandes ONGs.

Vou usar o termo “corporações da sociedade civil” porque é assim que elas se comportam no mercado e no sistema de poder do Terceiro Setor. São organizações com redes gigantes, que têm uma representação internacional global e acabaram mimetizando o mesmo sistema de poder que está nos governos e nas empresas

Mimetizar era a coisa mais natural, porque o recurso vem do mesmo lugar. No caso do Brasil, o recurso filantrópico vem das famílias quatrocentonas, que são o legado da colonização e do genocídio brasileiro, e também das famílias muito ricas da Europa, que têm toda a sua riqueza baseada na exploração imperialista.

Então, o sistema de poder se mimetizou e as grandes corporações do terceiro setor têm uma relação colonizadora com as organizações de base. É um olhar que subjuga o outro, de ter mais razão quem tem mais recurso.

É por isso que se fala tanto em justiça social, ambiental e climática. Sem olhar para o legado dessa relação de poder baseada no colonialismo, para a invasão dos territórios do Hemisfério Sul, no mundo todo, e para todas essas relações dos países, a gente não consegue analisar bem o ecossistema e o que acontece hoje no Brasil.

Sei que existe boa intenção. Sei que existem profissionais muito competentes em todas essas organizações, mas é inevitável identificar [que] essa aristocracia do Terceiro Setor, onde existe uma concentração de poder nas organizações que representam sistemas globais, são as “multinacionais do Terceiro Setor”.

A gente precisa ter um momento de disrupção, precisamos enfrentar a crise climática. O grande debate hoje, no Brasil e no mundo, é o financiamento climático: quem paga a conta da adaptação e do enfrentamento ao aquecimento global e quem vai fazer a mediação dessas políticas?

Várias consultorias estão identificando um retrocesso da agenda ESG, vendo que corporações globais e empresas estão retrocedendo nos seus compromissos na agenda climática, na agenda ambiental.

Do ponto de vista declaratório, nenhuma empresa assume que isso está acontecendo, mas nada melhor do que identificar por meio do sistema de poder traduzido em recurso financeiro. É a política e o poder por meio do recurso financeiro… É o nosso Congresso Nacional. Para onde vai a política, onde está o domínio daquele recurso financeiro destinado por meio da política pública?

Seguindo o fio condutor do sistema de poder, do recurso investido, a gente percebe que sim, na prática, há um retrocesso. E não existe nenhum outro caminho de mudar essa equação – e a maneira como a tomada de decisões nas esferas das grandes corporações ou dos grandes governos é feita – sem diminuir o lucro. Não tem!

A maneira como o lucro é estabelecido, [como] o recurso é captado… se isso não for diretamente impactado e [não] houver um redirecionamento para a sobrevivência – não só das próprias corporações, mas de todo mundo que já foi prejudicado por tudo que já foi destruído –, não vai haver mudança real.

É muito claro que durante os últimos cinco, seis anos, quando a agenda ESG começou a ficar mais na moda, executivos passaram a se formar e ter cargos dentro desse olhar. E se lançou a esperança de que, ao incluir a governança, falava-se em mexer o sistema de poder…

Na prática, o que acaba acontecendo é: cria-se a diretoria de ESG, diretoria de combate à crise climática, ou uma diretoria de diversidade, equidade e inclusão, mas o recurso que está dentro dessa diretoria e o investimento de ação concreta que ela tem é zero diante de todas as outras áreas da corporação – e [isso acontece] até mesmo em uma organização da sociedade civil.

Isso equivale a dizer que é uma fachada estrutural. Existe uma preocupação, mas o poder de fato não está mudando de mãos. O poder de fato não está sendo redirecionado na sua possibilidade de mudança – que é o recurso financeiro – que traduz tudo que foi destruído nos últimos cinco séculos 

E na hora de montar os relatórios, apresentar os vários selos que as empresas colocam nas suas embalagens, na sua política, ao participar de eventos e falar sobre tudo isso, parece que tem uma estrutura… Mas é uma estrutura de palito de dente, vazia, que só tem os nomes dos cargos, os termos acolhidos, as falas e narrativas divulgadas.

É o que chamam de greenwashing. Já tem tantos “washings”: greenwashing, socialwashing, climatewashing… tem todos os tipos, hoje. Estamos no tempo em que tudo vira uma grande fachada de marketing, de imagem, sem ter, de fato, um direcionamento dos recursos para as mudanças que realmente importam.

No final desse processo, a gente tem melhorias e as pessoas querem olhar o copo meio cheio: “Pelo menos estamos acolhendo uma COP aqui no Brasil…” Independentemente disso, o fluxo de recurso e as decisões de investimento, de direcionamento de políticas públicas e as decisões econômicas ainda estão longe de acontecer.

A gente pode, deve e precisa ter esperança – mas a partir do protagonismo das forças legitimamente interessadas nessa mudança. E essa legitimidade não está hoje nas corporações e nem ainda na democracia representativa. Ela está na democracia participativa, quer dizer, no fortalecimento da base, das comunidades, de quem é diretamente impactado 

São essas vozes que precisam ser ouvidas, são esses relatos que precisam ser estudados e projetados para que haja a mudança nessa estrutura.

Pode parecer ingênuo mudar a partir da base, quando a gente pensa que o poder está todo dentro das grandes corporações e dos governos que protegem esses interesses econômicos. Como que a gente faz isso?

E é aí que eu acho que se você, como profissional, como cidadã, é uma pessoa que acredita na democracia, a gente precisa fortalecer a democracia participativa e  descentralizar esse poder econômico e político para que essa mudança aconteça.

Tem muita coisa ainda para ser feita e eu acredito que tem muita esperança também porque existem e estão ativas organizações de base comunitária e iniciativas no Brasil que são incríveis, fenomenais – inspiram não só pessoas como eu, mas inspiram o mundo inteiro.

São essas iniciativas, novas lideranças, maneiras de ser e estar trabalhando e sobrevivendo que trazem esperança para essa mudança acontecer.

Entretanto, você não é contra o financiamento ou a filantropia! É óbvio que essas organizações não governamentais que têm uma estrutura tradicional podem vir a se aproximar das organizações de base comunitária. Talvez você seja um canal para isso…
Acredito que estamos vivendo o momento da mudança desse sistema de poder de que a gente falou tanto. E essa mudança diz respeito a vários fluxos de transformação.

As organizações globais filantrópicas que existem há quase um século começam a fazer uma transição para ter relações diversas com as organizações de base. Instituições filantrópicas privadas de grandes riquezas globais que financiam muitos dos projetos de sociedade civil do Brasil e do mundo também buscam outras maneiras de se relacionar e de se posicionar na relação com as organizações de base.

Na prática, durante muito tempo houve quase que uma manutenção de intermediários desse fluxo de financiamento filantrópico global, por uma necessidade de um vocabulário comum sendo falado por tudo e todos.

Por conta de uma agenda que a crise climática trouxe de maior participação e inclusão das representações dos países mais impactados, naturalmente também está se construindo relações mais diretas. Relações que consigam acolher a necessidade de que esse investimento filantrópico global consiga chegar à ponta de uma maneira mais rápida.

Governança é uma chave essencial desse fluxo de recurso filantrópico. E a principal mudança é justamente não encarar a filantropia como caridade, que é um termo que a religiosidade cristã acabou deixando [como legado] de uma maneira negativa. Ela não é caridade, ela é responsabilidade

A filantropia, o financiamento climático que a gente está falando no âmbito de COP, no âmbito de patrocínios corporativos e governamentais para os projetos é parte de um papel social que precisamos fortalecer dentro do ecossistema que nós vivemos.

E acho que essa é a mensagem mais importante… A mudança na construção de mais espaços de diálogo para que essas transformações aconteçam é crucial nesse momento que a gente está vivendo.

Então, a gente tem que ficar muito atento a esse processo. Que haja mais processos de diálogo para possibilitar que a filantropia global se torne algo de maior responsabilidade e participação, que haja um reconhecimento da contribuição global do atual ecossistema – mas um compromisso desse atual ecossistema com essa transição e essa mudança.

Como você falou, dentro do ecossistema sou chamada para fazer a intermediação, a captação com esses fundos, o diálogo com o mercado corporativo. Como trabalhei em todas essas frentes, entendo quais são as dores de quem está dentro de uma corporação e passou por tantos formatos diferentes.

Sei o trabalho que dá fazer uma certificação ISO 14.000. Sei da importância das certificações e dos relatórios de sustentabilidade, de tudo isso que a gente viveu nos últimos 40, 50 anos do meio ambiente assim declarado, significou.

E é por isso que [é importante] a continuidade do diálogo e o estabelecimento de pontos de maior confiança entre esses vários participantes do ecossistema [para que] se reconheçam. Porque, no final, todos fazemos parte do mesmo ecossistema

Eu me posiciono e coloco a minha contribuição para que esses diálogos e conexões aconteçam de uma maneira respeitosa, inclusiva e mais participativa, principalmente do ponto de vista de participação das comunidades de base nesse sistema de poder.

Considerando o que você falou sobre a necessidade de haver uma evolução no diálogo entre as organizações estruturadas e as comunidades de base, você tem alguma expectativa em relação à COP30? Quando se fala de responsabilização e financiamento para combater a crise climática, é exatamente esse o nó que estão tentando deixar mais frouxo para, em novembro, chegar a um novo patamar…
Nesse momento pré-COP30, e praticamente às vésperas, muito do que podia ser negociado já foi negociado. As COPs, em geral, são esse momento midiático de divulgar ou anunciar algumas decisões que já foram tomadas…

Existe uma camada, como se fosse um véu sobre tudo que está acontecendo no debate da COP30, que é a insegurança do investimento maior sobre os projetos de enfrentamento de crise climática 

E apesar desse nome, na prática são projetos de enfrentamento à vulnerabilidade social, ambiental e econômica, que as populações mais vulnerabilizadas sofrem. Estamos falando em ter uma política compensatória contra a pobreza que se estabeleceu nos países que mais sofrem no mundo.

Sei que tem outras pautas muito em voga, como energia limpa, por conta da questão da produção de petróleo, óleo e gás; e transição energética, que é a palavra da vez. Sei que o Brasil está justamente protagonizando um debate enorme em relação a isso.

Mas gosto de olhar esse debate sob a perspectiva do combate à pobreza, porque quando a gente fala sobre as populações mais vulnerabilizadas indo à COP, os mais diversos países trazendo suas delegações, o que se chama hoje de crise climática é consequência da colonização global e da maneira como a gente está organizado política e economicamente.

O que acho que vai haver de legado é um chamado, é um pedido por um pacto de todos os detentores desse sistema de poder, que são as corporações e os governos, para que haja um compromisso na defesa dos direitos humanos, na defesa das condições mínimas de dignidade humana para todas as pessoas

Não tem como falar desse tema sem encarar esse legado histórico da colonização. Então, reparação histórica está imbuída nesse combate à pobreza. E não consigo deixar de pensar em relação à COP30 sem pensar nas eleições do ano que vem.

A gente está vivendo, na comunicação política, capturas de narrativas para viabilizar as eleições e os movimentos de democracia representativa. Porque os sistemas de poder estão em todos os lugares, nos mais diversos espaços.

Enquanto sociedade, precisamos ficar atentos a essas capturas das narrativas, não só das populações mais vulnerabilizadas, nos interesses das pessoas na sua maioria, mas também na captura e na transformação de narrativas corporativas e governamentais, olhando essa manutenção do sistema do poder 

O sistema do poder precisa mudar. A gente tem [visibilidade] grande da democracia representativa, mas precisamos olhar com muito carinho a democracia cidadã, a participativa, aquela da qual todos fazemos parte – e aquilo que a gente consegue fazer.

Tem um termo que se fala muito: a depressão [climática, por conta da] austeridade que a crise climática trouxe para nós, uma espécie de tristeza contínua… É tudo tão grande, enorme, difícil que a gente está adoecendo vendo tanto problema. A gente fica triste olhando as notícias, olhando o que o algoritmo traz pra gente dentro das redes.

Parte desse processo do fortalecimento da base, que eu tanto acredito, está no reconhecimento de que cada um de nós tem, sim, a possibilidade de mudar e transformar o que está ao nosso redor. E é isso que a gente tem que reconhecer como pessoa cidadã: a nossa cidadania faz diferença, sim

Não é que sozinha a pessoa consumidora vai conseguir mudar toda a gestão de resíduos sólidos. Mas acho que a gente precisa ter esperança de que o papel de cada um, dentro dessa história que a gente chama de Brasil, tem importância, faz diferença.

Precisamos tirar os olhares das telas e olhar mais para as pessoas ao nosso redor, com carinho e respeito e vontade de aprender, de estar junto, de se relacionar de uma maneira saudável, positiva e afetuosa.

O termo que aprendi de uma agricultora familiar de Brasília é que a gente precisa “esperançar” mais. Esperançar mais é olhar muito mais as pessoas ao nosso redor 

Que bom que a gente vai ter uma COP aqui, mas vamos ficar atentos para que esse universo todo de debates tão complicados consiga [fortalecer o] cuidado com as pessoas, com o outro.

 

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