Por Camilla Ginesi
Quando adolescente, Abel Reis, 53 anos, foi coroinha. “Eu estava encantado pela Teologia da Libertação, que tem como pilar a opção pelos pobres”, conta. Pouco tempo depois, Abel atuou no movimento estudantil pela União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas, a UMES. “O meu interesse em transformação me aproximou da esquerda”, diz.
Hoje, Abel é, ao mesmo tempo, CEO no Brasil da holding global de comunicação Dentsu Aegis Network e CEO na América Latina da agência global de marketing digital Isobar (braço da Dentsu Aegis). Entre os 11 negócios do grupo no Brasil, estão a agência de publicidade NBS e a empresa de performance digital iProspect. O coroinha virou cardeal.
Aos 18 anos, Abel começou a cursar Filosofia na UFRJ. Acabou estudando Tecnologia da Informação na PUC-Rio. Ingressou no mercado de trabalho como analista de sistemas. Voltou à UFRJ para fazer um mestrado acadêmico em Inteligência Artificial – nos primórdios dessa linha de pesquisa, em tempos pré-386 aqui no Brasil.
Abel trabalhou na área de computação educacional do Senac. Criou uma desenvolvedora de soluções de mídia interativa chamada ATR – um dos projetos mais significativos da empresa foi a criação do primeiro CD-ROM do Almanaque Abril – quando essa era uma tecnologia disruptiva.
Em 1992, Abel conheceu Pedro Cabral, atual CEO do fundo de venture capital Evolution Global Partners. “A ATR prestava serviços de consultoria multimídia para uma agência de propaganda chamada Propeg. O Pedro era diretor de informática da agência”, conta. Convidado por Pedro, Abel passou a trabalhar na Midialog, empresa de multimídia da Propeg.
Em 1997, o instituto de pesquisas Ibope comprou a parte da Propeg na Midialog. Dois anos depois, o Ibope saiu do negócio. Na sociedade, ficaram só Abel e Pedro. No mesmo ano, a Midialog recebeu um aporte do grupo de investidores NG9/Opportunity (uma parceria entre os publicitários Nizan Guanaes e Guga Valente e o banco Opportunity) e virou AgênciaClick. A internet comercial tinha dois anos de vida. “Nos definimos como a primeira agência de internet do Brasil”, diz Abel.
Depois de oito anos, a AgênciaClick foi vendida para a inglesa Aegis e ganhou o sobrenome Isobar – Agência Click Isobar. “Foi a primeira incursão do grupo Aegis no Brasil”, conta Abel. Em 2013, a japonesa Dentsu comprou a Aegis. Nessa época, Abel se tornou CEO da holding no Brasil e CEO da Isobar na América Latina.
As referências de sua vida pessoal e profissional são abrangentes – lê de The Economist a poesia, passando por filosofia e, claro, tecnologia e negócios. Fala de estratégia empresarial e das tendências em educação e em publicidade com a mesma propriedade. Transita por diversas áreas do conhecimento.
Abaixo, o papo que o Draft bateu com Abel sobre o futuro da internet, sobre o movimento unschooling e sobre a Nova Economia, entre outros temas:
Ainda há diferença entre o mundo digital e o mundo analógico, entre o online e o offline?
Eu acho que sim. As pessoas atuam e se movimentam numa clara separação entre o que é online e o que é offline. Para não falar de comunicação, negócios, empresas, eu falo de escola. Tenho duas filhas no Ensino Médio. A experiência de escola que elas têm hoje é a mesma que eu tinha há 40 anos, basicamente. As atividades, o modelo de ensino, a formação dos professores, isso tudo acontece como se não existisse mundo digital. Agora, a vida delas é muito mais intermediada pela presença do celular e do computador do que, evidentemente, era a minha.
Você construiu seu expertise – e uma agência – a partir dessa distinção. Você era digital enquanto os outros eram analógicos. Quando esse diferencial desaparece ou se torna commodity, como isso impacta a sua carreira e o seu negócio?
Eu me desapego de crenças e opiniões com facilidade. Desaprendo o que sei para poder aprender coisas novas. Eu planejo a minha obsolescência. Me sinto à vontade quando sou desafiado por novas fronteiras, por outras oportunidades, outras tecnologias, outra geração de talentos. Nunca tive problema em trabalhar com pessoas que me desafiam intelectualmente e que me obrigam a me reinventar. Hoje, meu trabalho é digital. Digital já é mainstream, não é mais alternativo. O desafio é que o digital virou mainstream subvertendo os modelos tradicionais de geração de receita e de criação de valor para os grupos de comunicação. O comissionamento de mídia costumava ser o principal elemento de remuneração e, hoje, em vários casos, não é mais. Ninguém pode imaginar que é possível para um grande anunciante prescindir do papel de uma agência, de um grupo de comunicação. Então, nós temos certeza de que somos importantes para os nossos clientes. Por outro lado, também sabemos que os formatos tradicionais de remuneração estão em crise. Qual é a saída? Qual é a reinvenção? Qual é o próximo passo? Não há uma resposta pronta nem para o nosso nem para os outros mercados.
Como é ser responsável por agências que têm tradição offline, você que sempre foi um dos campeões do online no Brasil?
As agências clássicas têm um expertise forte em técnica de mídia. Nós podemos concordar que, agora, os espaços naturais das marcas são as redes sociais. Mas quanto devemos investir? Mil reais, 1 milhão, 100 milhões? E como sabemos que estamos tomando a decisão certa, se estamos tendo retorno sobre o que investimos? Esse é o pensamento do anunciante – e isso envolve técnica de mídia, metodologia de pesquisa. As agências clássicas têm história, tradição e ferramentas nesse território. Por outro lado, as agências digitais têm um modelo de trabalho mais guerrilheiro, têm mecanismos de remuneração não-convencionais, têm um atrevimento ao contribuir e transformar o negócio do cliente. Há muita troca. Hoje, eu procuro estabelecer pontos e canais de comunicação entre esses dois mundos.
A web realmente vai morrer?
Eu acho que a web site-centric, browser-centric vai morrer. A cada dia que passa, isso fica mais evidente. O mundo dos apps existe e opera nos mais diferentes dispositivos, celular, notebook, televisão, eletrodomésticos. A rede, como nós a conhecemos, morreu.
Qual é o futuro da internet? Para onde vai a revolução digital?
A internet está se tornando uma utility da vida, como a energia elétrica, o sistema de encanamento de água – e não estou dizendo aqui nada de novo. Isso significa que o valor não está em entregar conectividade, está no adicional. Não está no portador, está nos aplicativos que vão disputar a interface com o consumidor final. Aí é que está a batalha. Não no hardware – mas nos softwares que vão rodar sobre esse hardware.
Qual é o futuro da presença digital de uma marca?
As marcas vão se metamorfosear em conteúdo. A Red Bull é um bom exemplo. O conteúdo é mais importante do que a bebida em si.
Que outras tendências relevantes você vê definindo o futuro?
O que está piscando no meu radar, hoje, são dados. Ou seja, essa quantidade espetacular de dados que conseguimos capturar das pessoas interagindo com diversos devices, apps e propriedades digitais. Como é que monetizamos isso? Como damos sentido e utilidade para isso e, ao mesmo tempo, preservamos a privacidade das pessoas?
O mobile vai realmente suplantar todos os outros meios em importância? A tela pequena é a que vai emergir vitoriosa da convergência das mídias?
Essa ubiquidade de conexão à rede é uma tendência, é inevitável. Mas não necessariamente a pessoa interage com a rede pelo mobile, pode ser pelo relógio, pelos óculos, pela roupa, pelo próprio corpo. Então, essa ‘cibridização” – esse hibridismo entre o corpo das pessoas e as redes – não necessariamente vai depender de um smartphone.
A agência de publicidade, como negócio, é sustentável?
Como negócio de intermediação, não. Como negócio de consultoria de serviços profissionais, sim. No futuro, as melhores agências de publicidade vão se parecer com as melhores consultorias de negócios.
Como vai atuar uma agência de publicidade no Brasil daqui a alguns anos?
As agências digitais, as consultorias de negócio e as consultorias de design estão começando a convergir numa coisa só. Empresas de consultoria clássicas como a McKinsey estão comprando empresas de digital, de design, de user experience. Agências digitais estão comprando consultorias de negócios. Essa tendência não é só no Brasil, é global.
O mercado de mídia vive uma crise de modelo de negócio. Como você vê o futuro dessa indústria?
Eu realmente acredito que a criação, a curadoria, o papel do jornalista e do editor são elementos cruciais para o sucesso das marcas no espaço digital. Agora, acho que os megagrupos de publishers vão enfrentar grandes desafios. O modelo de negócio tradicional de venda de inventário de mídia intermediado por agências de propaganda está em crise. Esses megagrupos vão precisar se reinventar para não serem extintos – e eu torço para que não sejam. A reinvenção tornaria essas organizações mais leves, mais dispostas em rede, mais fragmentadas. Essas empresas poderiam de fato oferecer para as marcas o que elas precisam, que é suporte, consultoria, orientação sobre como produzir grande conteúdo para o consumidor. Isso uma marca não sabe fazer, quem sabe fazer são os curadores, quem atua na mídia.
Que recado você daria para os novos publishers?
Quando nós pensamos em conteúdo, ainda estamos pensando no suporte do texto. Acho que vamos ter que passar por uma mudança de linguagem. O texto não necessariamente vai ser a linguagem dominante. Então, desde já, devemos planejar a obsolescência dessa hegemonia da palavra escrita e encontrar novos jeitos de falar com as próximas gerações de consumidores.
Onde concentrar a verba – na TV Globo ou na dobradinha Google/Facebook?
Essa é uma pergunta sacana. (Risos.) Quem fizer a distribuição ótima dos investimentos provavelmente vai descobrir que a Globo continua tendo um papel importante.
Essa resposta também foi sacana. (Risos.) Quais são as suas fontes de informação prediletas?
Além da obrigação profissional de ler os conteúdos que saem nos mais diversos meios – da The Economist ao Draft, passando pelo universo da blogosfera –, eu também procuro me abastecer de referências que não são óbvias. Estou saboreando, agora, um livro sobre as viagens de Marco Polo. O livro é uma delícia, me dá muitos insights. Marco Polo foi um inovador que conseguiu identificar numa cultura muito distinta da dele oportunidades de diálogo.
Livro em papel ou livro digital?
Eu leio livros técnicos no digital. Literatura e poesia, eu prefiro ler no papel.
O livro de papel vai durar para sempre?
Para sempre é muito tempo. Mas eu não vislumbro nas próximas décadas – cinco, seis, sete décadas – o fim do papel ou do livro de papel. No longuíssimo prazo, provavelmente o livro de papel vai ser um item exótico e raro.
Como você vê a emergência da Nova Economia? O que isso significa para as empresas – a maioria – que ainda atuam na lógica da economia industrial?
Nós estamos transitando de uma economia de propriedade de bens para uma economia de serviços. Não vai ser preciso possuir um purificador de água, uma geladeira, um carro. Vai ser possível assiná-los. O Jeremy Rifkin, economista e jornalista americano, escreveu há mais de dez anos um livro sobre isso, chamado “The Age of Access”. Então, para mim, a Nova Economia é a economia do acesso, em que o consumo de bens, serviços, conteúdo, entretenimento se dá numa lógica econômica que não é a da propriedade, é sob demanda.
É mais fácil operar um negócio próprio ou ser CEO de uma holding que tem várias empresas?
A minha resposta pode me render problemas, mas vou ser transparente e sincero. Quem está na direção de um negócio próprio só tem um ego para gerenciar: o seu próprio. Quem está liderando dez negócios tem dez egos para lidar. Todos nós temos ego. Quando falo de ego, falo de expectativas, de ambições, de frustrações, de conflitos. Então, o manejo das pessoas é provavelmente mais difícil do que fazer a transição do analógico para o digital. No fim do dia, é um trabalho de gestão de expectativas, de psicologia dos humanos. Liderar líderes não é fácil. Nessas horas, eu prefiro a psicologia das máquinas.
O que você acha do unschooling, o movimento de desescolarização que afirma que não é necessário passar pelo sistema formal de educação para se educar?
Uma das coisas admiráveis da cultura grega antiga era a difusão do saber em locais que não eram espaços formais de ensino, educação ou formação. Essa liberdade faz bem à oxigenação da mente das pessoas. Por outro lado, não sou tão cético quanto ao papel das estruturas e dos dispositivos formais. Acho que a produção do conhecimento científico precisa seguir certos protocolos, certos padrões. As escolas e universidades investem em uma escala que os modelos informais ou não-institucionalizados têm dificuldade de acompanhar. Eu entendo perfeitamente o poder, o significado, o valor do movimento do unschooling em prol da difusão do conhecimento na sociedade. Mas acredito que tanto o unschooling quanto a escola e a universidade institucional têm papéis a desempenhar.
Se você não estivesse em sua posição atual, o que gostaria de estar fazendo?
Eu gostaria de estar na vida acadêmica. Quem está na academia tem a oportunidade de estabelecer a própria agenda, de escolher os próprios temas de investigação. Talvez um dia eu ainda reencontre esse caminho – que foi por onde comecei.
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