“Biometria de bovinos pode ser usada para rastrear desmatamento ilegal e trabalho escravo”, aponta especialista da CNA

Julia Moioli - 14 jul 2023
Rafael Ribeiro, assessor técnico da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Foto: Wenderson Araujo
Julia Moioli - 14 jul 2023
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Presente em aeroportos, aplicativos bancários, urnas eletrônicas e até fechaduras de residências, a biometria já é parte do nosso dia a dia como (mais um) mecanismo de segurança. O que ninguém imaginava é que este sistema poderia ser usado também em animais. Pois, acredite se quiser, esta tecnologia de identificação individual já aterrissou nas fazendas. A ideia é rastrear os rebanhos, reforçando a segurança e garantindo que a procedência da carne não tenha nenhuma ligação com desmatamento ilegal – exigência cada vez mais frequente no mercado internacional.

No último mês, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) anunciou que ainda este ano começa a testar o uso da biometria facial em bovinos em fazendas-pilotos para que, no futuro, a tecnologia, inclusive, possa substituir brincos e marcas de fogo – métodos amplamente utilizados, mas que são polêmicos por causarem sofrimento nos animais.

Mas como um computador pode diferenciar o rosto de um animal para outro? Se o reconhecimento facial e de impressão digital funcionam como marcas únicas para os seres humanos, nos animais esses sinais são o focinho e certos padrões de distância facial. De acordo com a CNA, imagens desses traços com simulação de fisionomia do animal adulto têm nível de acerto de 90%.

Para entender como a biometria animal funciona e de que forma será este impacto nos negócios, NetZero conversou com o zootecnista Rafael Ribeiro, assessor técnico da CNA, que garante: “Quando as ferramentas de biometria animal estiverem funcionando de maneira redondinha, com garantia de acurácia e de que os dados não vão se perder, os benefícios serão inúmeros”.

NETZERO: Biometria de bovinos já é uma realidade?
RAFAEL RIBEIRO: Ainda estamos em um estágio diferente do que existe para humanos, que já conta com ferramentas avançadas, mas estamos em pleno desenvolvimento, crescendo. Faço a ressalva, no entanto, que a biometria animal ainda precisa avançar em certos pontos, especialmente nos aspectos de acurácia e operacional dentro da fazenda.

Como essa tecnologia funciona?

O princípio da biometria é identificar individualmente os animais, algo que hoje é feito com brincos, bottons e a própria marca de fogo. Os projetos em desenvolvimento hoje em dia, com algumas empresas já atuando na comercialização, são programas que utilizam uma foto do animal, registrada com informações como data e local de nascimento, raça, sexo e localização registradas. A partir delas, toda vez que aquele animal é exposto a uma máquina ou sensor, ele é reconhecido por parâmetros baseados no padrão biométrico do focinho ou de seu rosto.

E como este sistema pode ajudar na agenda ESG dos produtores rurais?

Se usamos o registro de uma imagem, podemos trabalhar com geolocalização. Ao fazer uma foto georeferenciada, temos o ponto marcado de onde o animal estava em determinado momento. Imagine que isso aconteça em todas as fazendas por onde o animal passar. Isso permite a realização de uma série de análises da situação dessas propriedades.

A biometria de bovinos pode associar o deslocamento dos animais a questões socioambientais, como desmatamento ilegal e trabalho escravo.

Com isso, facilitaria a obtenção de créditos e financiamentos, cada vez mais ligados a uma agenda verde?

Acredito que hoje ainda precisamos de mais certezas de que apenas aquela foto do focinho do bezerro feita pelo sistema. Mas, sim, a ideia é que a biometria possa aumentar as garantias na pecuária de corte e nos financiamentos e créditos rurais.

Por que as empresas ainda não aderiram em massa à tecnologia?

Ainda observamos um estágio inicial de desenvolvimento. É preciso avançar inclusive em questões operacionais. O registro dos animais, tanto no embarque quanto desembarque, precisa ser feito de forma ágil e instantânea. Não se pode gastar cinco ou 10 minutos por animal – imagine a chegada de um rebanho de mil cabeças! Outro ponto é que os próprios programas precisam ser leves, rápidos e rodar dentro do dispositivo sem problemas para que o funcionário tenha isso na palma da mão.

E, quando vamos para o campo, aí é que entram as dificuldades. Não temos animais paradinhos, às vezes há sombras, poeira no focinho e no rosto que dificultam a leitura no dispositivo. Então são uma série de questões que a tecnologia precisa aprender.

Então, como eu falei, eu não posso gastar 10 minutos por animal para fazer essa identificação. Precisa ser algo instantâneo e o mais rápido possível. Quando acontecer, poderemos, inclusive, pensar na retirada de brincos, de botton e até mesmo da marca de fogo, melhorando as questões de bem-estar animal. Acreditamos que nos próximos 10 anos essas tecnologias devem avançar bastante.

Como serão os testes da CNA?
Recentemente apresentamos ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) uma proposta para a criação de um sistema voluntário de rastreabilidade individual de bovinos e bubalinos. A ideia é que a adesão dos produtores seja voluntária, com um prazo mínimo de oito anos de adaptação, e, após esse prazo, a decisão ficará a cargo dos Estados. Vale lembrar que a tecnologia precisa ser homologada pelo Mapa e aprovada pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Associada a esta proposta, devemos rodar, entre o segundo semestre deste ano e o primeiro do ano que vem, um piloto para testar essas tecnologias disponíveis de biometria animal no campo. Queremos ver quanto tempo se gasta por animal, quais são os procedimentos necessários dentro do curral para fazer o registro da informação, qual é o mínimo de suporte que o celular ou outro dispositivo precisam apresentar – lembrando que, além do celular, algumas empresas também trabalham com câmeras fixas para captação da imagem.

Quem serão os principais beneficiados pela tecnologia?

Quando pensamos em produção animal pelo país, temos diversos sistemas, tamanhos de propriedades e níveis de tecnificação. A própria questão da internet, apesar de ter melhorado, ainda é um problema em muitas propriedades na área rural – isso precisa ser considerado e talvez seja necessário um programa que trabalhe offline, com upload em momentos de indisponibilidade de internet.

Por isso, há alguns pontos que precisamos considerar nessa transferência de tecnologia para o produtor: precisamos de sistemas simples e intuitivos (imagine que quem vai usar essa ferramenta provavelmente será um vaqueiro), rápidos e de custo acessível.

Hoje, o mercado-foco provavelmente seriam propriedades com certo nível de gerenciamento incorporado, com mão de obra capacitada. Não se trata de algo acessível a todos os produtores. O pequeno ainda tem muitas coisas pra resolver antes de pensar em instalar alguma coisa relacionada a biometria animal – nutrição, genética, sanidade. Pensar na biometria seria algo de ajuste fino de gerenciamento para ter controle individual de parâmetros reprodutivos desse animal e pensando também na questão da rastreabilidade.

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