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Bruno Capão: “Só a periferia pode ressignificar sua narrativa”

Paulo Vieira - 27 maio 2018
Bruno Capão e Adriano Silva, publisher do Draft: papo na laje para a gravação da série DNA: Nova Economia
Paulo Vieira - 27 maio 2018
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Seria preciso esperar umas duas horas para o sol dar cabo de todas as poças sobre a laje. A noite fora de chuva nos bairros centrais de São Paulo e também aqui, um dos pedaços mais emblemáticos da periferia: o Capão Redondo.

Apontada como área mais barra-pesada da capital paulista nos anos 1990, e local onde surgiu o Racionais Mc’s, o mais famoso grupo de rap brasileiro, o Capão é um daqueles bairros que crescem englobando outros distritos e acabam dando nome a uma enorme região. Por quilômetros, reproduz a paisagem padrão da periferia paulistana: casas sem pintura, poucos prédios, raras áreas verdes e, naquela manhã, um silêncio notável, só quebrado às vezes pela estridência elétrica de uma makita em uso numa casa ao lado.

Não é o metro quadrado mais valorizado de São Paulo. Mas é esse lugar que o empreendedor social Bruno dos Santos, o Bruno Capão, quer transformar em Patrimônio Cultural da Humanidade. É o que ele conta durante a nossa visita para a gravação de DNA: Nova Economia – série de entrevistas com a condução e a curadoria do Projeto Draft, apresentada pelo Sebrae, veiculada nos canais Globosat e produzida e dirigida por Bond Filmes e Storyland.

O Brasil tem poucos desses patrimônios, que são definidos pela ONU: apenas 14 (um terço do que tem a Alemanha), nenhum deles em São Paulo. A julgar pela lista, os curadores escolhem de olho no passado: plano piloto de Brasília, centros históricos de Olinda, Salvador e São Luís, Cristo Redentor, profetas do Aleijadinho… O que só torna mais inesperada a ambição de Bruno, bem como sua justificativa: “Aqui no Capão tem um potencial criativo incrível”.

Quando ele disse isso, nenhum de nós pareceu discordar. Éramos uma equipe de nove pessoas, todas mais ou menos jovens e pouco familiarizadas com a periferia, seus moradores, seus sonhos e mazelas. Havia em nós uma certa reverência paternalista pelo entrevistado, um sentimento que costuma surgir quando dois mundos economicamente tão diferentes se encontram.

Dali, da laje, nossos olhos alcançavam três ou quatro quilômetros, talvez mais, em uma perspectiva de 360 graus; numa das casas tremulava uma bandeira brasileira. Bruno pediu que evitássemos mirar nossas câmeras em uma certa direção, o que poderia incomodar o “comando do território” mais abaixo.

Ele cresceu na casa da avó, onde moravam mais vinte primos e sete tios, numa viela utilizada para descarte de lixo. “Eu achava mágico o caminhão levar a montanha de lixo embora”, ele contou ao Draft em outra ocasião. Daí veio o sonho, mais tarde alcançado, de um dia trabalhar como coletor de lixo.

Para quem vê de fora, parece um sonho modesto, especialmente nesses tempos em que sonhar virou estratégia corporativa. Para ele, porém, os lixeiros eram seus heróis de infância.

Na adolescência, sua vida seguiu a programação previsível de tantos jovens da periferia. Sem dinheiro para lazer e roupas da moda, acabou caindo no crime. Aos 16, apreendido, foi para a Febem (atual Fundação Casa). Fugiu, passou um mês na rua, até ser convencido pela família a voltar e terminar sua pena.

Terminou também os estudos. Fez supletivo e cursou Gestão Ambiental, com bolsa paga por um instituto. Como empreendedor social, quer formar agora outros empreendedores entre seus vizinhos. Seu instrumento é O Lado B do Capão, um “laboratório de inovação social” que abriga projetos de inserção e ajuda para crianças, e já incluiu e capacitou mais de 200 jovens da periferia.

Bruno estava à vontade no triplo papel de anfitrião, guia local e entrevistado. Não éramos a primeira equipe de filmagem que recebia em sua laje, e não seremos a última, provavelmente. Ele, contudo, parecia cheio de esperança de que aquele encontro significasse algo mais – e não apenas mais uma visita.

“A quebrada precisa conhecer o que tem fora da quebrada. Na natureza nada se perde, e vamos trazer pra cá o que a gente achar incrível por aí.”

Ele conta que ficou maravilhado quando esteve pela primeira vez no Beco do Batman (travessa famosa pelos grafites, que se tornou ponto turístico da Vila Madalena, bairro boêmio da cidade). E sonha com um galpão com half pipe, grafites e capacitação no Capão.

“Aqui é o Vale do Silêncio”, disse Bruno, em certo momento. Na hora, entendi que a frase era uma piada amarga: afinal, os moradores do Capão Redondo vivem sob uma “paz de cemitério”, à sombra da facção criminosa mais organizada do Brasil. Mas acho que me engano. Bruno devia estar mirando mesmo o Vale do Silício californiano, Cupertino e Palo Alto.

No Capão, lembrei de quando ouvi um garoto no Mar Paulista (um lugar pobre e triste, à beira da Represa Billings) repetir uns versos de “Homem na Estrada”, música dos Racionais: Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou. Numerou os barracos, fez uma pá de perguntas. Logo depois esqueceram, filha da puta!

Da laje do Bruno, porém, o Pico do Jaraguá é o mesmo que se vê da Pompéia, da Vila Madalena e de outras áreas nobres – e acho que ele sabe disso.

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