Com um botão de denúncia integrado a um aplicativo de ônibus, a NINA quer tornar o transporte público brasileiro mais seguro

Leandro Vieira - 18 maio 2021
Simony César, fundadora da NINA.
Leandro Vieira - 18 maio 2021
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Cerca de três em cada dez mulheres foram vítimas de algum tipo de violência ou agressão no Brasil, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública relativos a 2017. Além disso, 40% delas afirmaram ter sofrido assédio e 10,4% foram assediadas enquanto usavam o transporte público.

O medo do assédio e da violência já existia para Simony César, 28, desde que era pequena. Moradora da periferia do Recife, passava o dia esperando a mãe voltar do trabalho como cobradora de ônibus.

“Mainha saía de casa às 4 da manhã e chegava muito tarde. Meu vizinho também era cobrador e ficou em uma cadeira de rodas depois de ser baleado num assalto. A criança pode até não entender a dimensão do problema, mas eu percebia o risco que representava o trabalho da minha mãe”

Simony cresceu e transformou essa questão em motor de sua jornada empreendedora. Ela está à frente da NINA, uma plataforma de denúncia hoje disponível para mais de 1 milhão de usuários do transporte público em Fortaleza.

A ferramenta contabiliza quase 2 500 denúncias recebidas, das quais 10% deram origem a inquéritos policiais.

UM CASO DE ESTUPRO FOI O ESTOPIM PARA QUE ELA ABRAÇASSE A IDEIA

A vida de Simony sempre esteve ligada ao transporte público. Seu TCC para o curso de publicidade e propaganda na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), pela qual acaba de se formar, tratou justamente da história de sua família com a mobilidade. 

O avô foi cobrador, assim como um tio; o outro era motorista de ônibus; outro, ainda, chefe de plataforma no metrô; e uma prima, maquinista.

A própria Simony acabou fazendo estágio numa administradora de frotas de ônibus. 

“Eu trabalhava na garagem e via muita coisa absurda. Me sentia impotente enquanto filha de cobradora, usuária do sistema — e agora funcionária também”

Um dia, em 2017, ao chegar no campus, ficou sabendo que uma aluna tinha sofrido estupro após ser retirada do ônibus que circulava na universidade. Para Simony, foi a gota d’água. 

A partir dali, começou a investir no desenvolvimento de um sistema de alerta e coleta de dados, para garantir que casos como aquele não se repetissem. 

UM PILOTO NA UFPE REVELOU QUE UM APP NÃO ERA A MELHOR SOLUÇÃO

Sua primeira ação foi fazer rodar entre as estudantes um formulário do Google para entender a percepção das mulheres sobre a segurança no campus. 

Depois, Simony (que além de publicidade estudava design) se uniu a uma amiga, estudante de engenharia da computação, para criar o protótipo de um sistema de denúncia de assédio e violência contra mulheres nos ônibus do campus. 

O teste abarcou 100 estudantes. E revelou um insight importante:

“Deu muito errado porque a gente rodava a NINA como aplicativo. Descobrimos que não podia ser um app porque, se a mulher não baixar, não consegue usar na hora da necessidade”

Para aprimorar o projeto, ela decidiu expandir os horizontes e partir em busca de editais. Ainda em 2017, conquistou um apoio da Red Bull, no valor de 20 mil reais, para desenvolver o projeto ao longo de 18 meses. 

SEM RECURSOS, ELA RECORREU AOS EDITAIS PARA ALAVANCAR O NEGÓCIO

A jovem precisava dividir seu tempo entre a faculdade e o trabalho. Como ganhava um salário mínimo, aquele investimento inicial foi importante, mas mesmo assim insuficiente.

Ela conseguiu então uma bolsa de 1 mil reais concedida pela Red Bull empreendedores em situação de vulnerabilidade social. Essa entrada mensal deu mais tranquilidade para que Simony se dedicasse à NINA, já visando outro edital.

Durante seis meses, em 2018, ela esteve focada no Desafio InoveMob, promovido pela Toyota Mobility Foundation e pela WRI Brasil.

“Das cinco empresas escolhidas, a NINA foi a única de fora de São Paulo. No total, recebemos 20 mil dólares e uma ajuda na articulação”

Com o apoio e o dinheiro em mãos, ela partiu para Fortaleza, onde montou uma equipe para iniciar o projeto pela primeira vez em grande escala. 

Em vez de criar um aplicativo próprio para a NINA (seu erro inicial), Simony decidiu integrar o serviço ao app Meu Ônibus, já então adotado pelos moradores da capital cearense para checar horários de ônibus e recarregar o Bilhete Único.

O SISTEMA AJUDA A CRIAR POLÍTICAS PÚBLICAS EFICIENTES

Trabalhando em parceria com a Prefeitura de Fortaleza, Simony logo percebeu que a questão não era apenas de tecnologia, mas de construção de cultura e de gestão pública. 

Um dos principais objetivos do projeto era que os dados coletados garantissem a tomada de decisões mais embasadas e eficientes.

Além disso, a tendência à falta de mulheres em setores de planejamento urbano, infraestrutura e mobilidade, segundo ela, fazia com que ficasse mais fácil vender a ideia por uma questão prática do que pela perspectiva de gênero. 

“Na pandemia, ficou até mais evidente a questão da evasão de passageiros, mas mesmo antes a cidade já estava perdendo tarifa com a falta de segurança. Esse discurso era o que ajudava a convencer os gestores”

Em Fortaleza, a NINA aparece como um botão na interface do aplicativo Meu Ônibus. A vítima ou testemunha de assédio pode, através dele, enviar um formulário com detalhes da ocorrência (como local, horário e linha de ônibus). 

A partir desse envio, a gestão pública encaminha a vítima às autoridades para passar por uma assistência psicossocial e, se for o caso, prestar queixa. 

OS DADOS COLETADOS EMBASAM TOMADAS DE DECISÃO

O sistema está integrado às câmeras de segurança de Fortaleza. Após a notificação, a empresa de ônibus responsável tem até 72 horas para encaminhar as imagens à Polícia Civil. 

Os dados correspondentes às denúncias são disponibilizados aos gestores da cidade, que assim têm maior controle e informação sobre a ocorrência dos crimes.

“Existem picos de horário, sendo o maior entre 18 e 20 horas. Superlotação, desertificação e baixa iluminação também favorecem a ocorrência de assédio, um conhecimento que permite tomar uma série de ações” 

Os dados coletados pela NINA permitiram identificar, por exemplo, uma incidência de assédios na avenida Dom Luís, no bairro Aldeota, uma das regiões mais “nobres” da capital cearense. 

“Indicamos à prefeitura fazer uma visita técnica ali no horário de mais ocorrências.”

O PRODUTO TECNOLÓGICO É VENDIDO JUNTO COM O SERVIÇO DE CONSULTORIA

Ao atuar em Fortaleza, a empreendedora percebeu a necessidade de criar um serviço de consultoria, para guiar a construção de política pública, o uso e análise dos dados e o atendimento prestado pelos funcionários. 

Para ajudar a desenvolver e aplicar essas práticas, Simony convidou Ana Carolina Nunes, doutoranda em administração pública na FGV, a integrar o time (que tem oito pessoas, todas atualmente em home office). 

Hoje, esse treinamento dura de quatro a seis meses e ocorre paralelamente ao processo de integração da tecnologia. Os dois serviços são vendidos de forma casada. O cliente paga uma taxa de setup e uma mensalidade que varia conforme o tamanho da frota de ônibus.

Segundo a empreendedora, há negociações em andamento com Recife, Belo Horizonte e Medellín (Colômbia). A NINA também já vendeu seus serviços de consultoria em segurança de gênero na mobilidade para a EY (ex-Ernst & Young). 

UMA TENTATIVA DE ASSALTO REFREOU TEMPORARIAMENTE A EXPANSÃO

Em 2019, quando a operação engrenou em Fortaleza, Simony precisou deixar de lado, por um tempo, a ideia de expandir o raio de atuação.

O motivo foi a violência que ela própria sofreu no transporte público: vítima de um assalto numa parada de ônibus no Recife, foi esfaqueada e perdeu parte dos movimentos da mão esquerda. 

“Voltei [ao trabalho] dois meses depois. Como estava tudo focado em mim, nesse período a parte comercial, de pensar em novos produtos, praticamente não andou”

Após o retorno da empreendedora ao batente, a NINA foi aprovada no processo seletivo da MAN Impact Accelerator, da Volkswagen. No fim de 2019, ela viajou à Alemanha para aprimorar o produto digital na fábrica da empresa. 

A partir daí, decidiu transformar o software da NINA numa inteligência artificial que captasse mais informações a partir de um fluxo conversacional com o usuário. 

O desenvolvimento desse novo produto ganhou impulso com a entrada da In3citi, gestora cearense que investe em negócios de impacto e adquiriu 15% da NINA.

“O produto está pronto. Era para termos subido ano passado em Fortaleza, só que, com a pandemia, essas políticas de restrição de deslocamento e o período eleitoral, achamos mais estratégico subir a nova versão neste ano.”

A EMPREENDEDORA FAZ QUESTÃO DE NÃO ROMANTIZAR SUA TRAJETÓRIA

Em 2020, Simony entrou para a lista da Forbes Under 30 Brasil. O reconhecimento não apaga os solavancos do caminho.

Ela diz ter enfrentado preconceito por ser uma das poucas mulheres nordestinas em vários ambientes que frequentou como empreendedora, o que chegou a abalar sua confiança.

“Não falo de forma romântica da minha trajetória. Sei o que passei, tenho cicatrizes, tenho traumas… Mas se nós simplesmente entrarmos dentro de um carro — ou erguermos muros –, nunca vamos construir uma cidade segura”

Enquanto o transporte público é menosprezado no Brasil, na Europa “é bonito viajar de trem”, diz. 

“Lá existe um planejamento urbano que promove os espaços compartilhados. Temos que trazer essa consciência para os tomadores de decisão do Brasil. Infelizmente, muitos ainda vêm da elite, e poucos do povo.”

Agora, Simony planeja investir mais no modelo B2B, mirando aplicativos de mobilidade e empresas de ônibus como clientes em potencial. Atualmente, afirma, a NINA passa por um processo de rebranding. 

“Estamos nos colocando como uma resolução de fornecimento de dados, tornando as cidades mais humanas e inteligentes.”

DRAFT CARD

Draft Card Logo
  • Projeto: NINA
  • O que faz: Sistema de denúncia de casos de assédio no transporte público
  • Sócio(s): Simony César
  • Funcionários: 8
  • Sede: Recife
  • Início das atividades: 2017
  • Investimento inicial: R$ 20 mil
  • Faturamento: R$ 200 mil
  • Contato: [email protected]
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