Comida sem frescura – e sobre rodas

Bruno Leuzinger - 26 ago 2015
Dupla dinâmica: o paulista Marcio Silva e o americano Jorge Gonzalez, os amigos no comando do Buzina Food Truck
Bruno Leuzinger - 26 ago 2015
COMPARTILHE

Filho de cubano, nascido em Nova Jersey (de frente para Manhattan), Jorge Gonzalez largou Nova York e a publicidade depois do Onze de Setembro. Era como se estivesse esperando um chacoalhão para mudar de vida. Se mudou para Buenos Aires, fez cursos de gastronomia, se apaixonou – e quando ela recebeu uma proposta para trabalhar em Londres, ele foi junto. Lá, estranhou a frieza do povo (“não é que nem brasileiro que você conhece e logo está marcando um churrasco”) e ficava enfurnado até 80 horas por semana na cozinha de restaurantes top-de-linha como o Fat Duck. Mal via os filhos. Após cinco anos, revolucionou de novo a sua história e veio com a família tentar a sorte em São Paulo. Estagiou no Arturito (de Paola Carosella, do Masterchef) e comandou a praça de peixes da cozinha de produção do D.O.M., de Alex Atala. Mas ainda não era aquilo que ele queria.

Marcio Silva tem uma história parecida: nasceu em Guarulhos, na Grande São Paulo, morou 15 anos em Nova York e também largou a publicidade para seguir o sonho de ser chef. Foi abrindo espaço em restaurantes como Bouley, Café Boulud e Falai. “Comecei como pia, ajudante de garçom, garçom até chegar a cozinheiro”, afirma. De volta a São Paulo, resolveu se arriscar e montou o Oryza, com receitas especializadas em arroz. O restaurante não decolou e fechou em setembro de 2012, um ano e pouco após a abertura. Marcio então foi para a Espanha e arrumou um estágio no Mugaritz, o ultrabadaladíssimo restaurante contemporâneo do País Basco, cujo menu é um festival de esferas e espumas. Fora do expediente, ele curtia os pintxos, versão basca das tapas, em endereços tocados por gente que havia migrado da alta gastronomia para servir comida boa e sem frescura.

Marcio, 46, e Jorge, 38, são amigos desde 2010 (se conheceram na cozinha do Marcio, cuja esposa trabalhava com um amigo do Jorge). São também a dupla dinâmica responsável pelo Buzina Food Truck, veículo pioneiro do movimento de comida-de-rua-sobre-rodas no Brasil. Não quer dizer que eles tenham “inventado a roda”: food trucks já existiam lá fora, claro. Mas os dois abriram um mercado que não existia por aqui, aproveitando um momento (2013) em que a crise já levava as pessoas a procurar opções mais baratas de alimentação. E, de quebra, o Buzina foi a deixa para que Jorge e Marcio pudessem desentalar o grito de liberdade da garganta. “A ideia surgiu da realidade sócio-econômica do país, junto com a fome das pessoas por algo a mais nas ruas”, diz Marcio. “Mas, acima de tudo, o Buzina nasceu da nossa vontade de independência”.

 

 

COMO MONTAR UM FOOD TRUCK

Quem vê hoje a profusão de food trucks apinhados em galpões e estacionamentos rebatizados de “food parks”, onde gregos e troianos, hipsters e coxinhas se acotovelam sob o sol por um falafel ou um acarajé, não imagina que até bem pouco tempo atrás era impossível encomendar um veículo desse tipo. Jorge e Marcio, por exemplo, recorreram a um fabricante de ambulâncias, sem sucesso. “Fomos de fornecedor em fornecedor e todo mundo dizia ‘não, a gente não tem escala para isso’”, diz Jorge. O “sim” veio de uma empresa de Guarulhos que fabricava carrocerias para caminhões-baú e aceitou a tarefa de transformar um furgão em food truck. Que, por sinal, quase se chamou Soul Food Truck. A tempo, a dupla entendeu que precisava de uma marca mais solta e divertida.

Com seu visual simultaneamente sóbrio e despojado, a pintura marrom e o logo de uma buzina old-school (daquelas que fazem “fon-fon”), o Buzina ganhou as ruas em fins de 2013, movido a biodiesel. No começo, a estratégia era procurar regiões com escassez de comida boa e barata e, é óbvio, vaga para estacionar o truck. Havia ainda a preocupação de não se distanciar do Brooklin, onde fica a cozinha de produção – assim economizavam no combustível. Marcio e Jorge começaram a descolar parceiros e o primeiro, olha só, foi uma agência de publicidade no Paraíso, que cedeu espaço ao Buzina. O hype cresceu e a dupla já se dá ao luxo de filtrar as propostas. Hoje são dois trucks, um de 6 metros quadrados e outro ligeiramente maior. Em cada um desses cubículos se espremem em geral cinco pessoas: o caixa, o chapeiro, o montador dos lanches, um assistente meio de curinga e mais um na “janela”, sempre Jorge ou Marcio, que fica responsável por “cantar” os pedidos.

 

Hora do rango: não importa onde, há sempre uma fila em frente ao Buzina

Hora do rango: não importa onde, há sempre uma fila em frente ao Buzina

 

PERRENGUES PELO CAMINHO

Ao todo, os dois amigos já investiram cerca de R$ 220 mil no negócio. A recompensa vem não só no faturamento mas também no prazer de trabalhar sem rotina, em contato com o público. Mas a liberdade costuma trazer embutida alguma dose de perrengue. Você pega trânsito para chegar ao trabalho? Quem pilota food truck, também. A chuva espanta a clientela e faz o dia escoar pelo ralo. No calorão, a chapa fica realmente quente e eleva a temperatura interna do veículo. E mesmo quando dá tudo certo, quando bomba de gente, depois tem a hora da faxina – higienizar tudo para em seguida começar tudo de novo.

A legislação às vezes também atravanca o caminho. Em maio do ano passado, com o objetivo de regulamentar a venda de comida de rua, um decreto da prefeitura determinou cerca de 900 pontos na cidade que poderiam ser ocupados por barracas, tabuleiros e food trucks. Os donos de cada negócio precisaram pleitear um Termo de Permissão de Uso (TPU) – e, atenção, cada estabelecimento ambulante poderia ocupar um e apenas um único ponto. “Não faz sentido nenhum, a gente tem rodas…”, diz Jorge. De fato, o ponto fixo pode ser bom para o dogueiro-do-trailer-de-pneu-murcho, mas não tem a menor graça para quem pilota a cozinha de um truck reluzente, todo bonitão.

Desde o começo de 2015, a Subprefeitura de Pinheiros tem tentado flexibilizar essa medida implementando um rodízio em dez pontos de sua região administrativa, que se expande por bairros como Itaim Bibi, Jardins, Brooklin e Vila Madalena. A ocupação obedece uma grade formulada em conjunto com os proprietários. Aí sim: mobilidade é a alma do negócio. E com seus dois trucks, o Buzina consegue a proeza de estar em dois lugares ao mesmo tempo: em uma das TPUs permitidas e, simultaneamente, no terreno de alguma empresa parceira ou em um dos food parks da cidade (para conferir o roteiro basta checar o Facebook).

FELICIDADE NA BOCA
O Buzina já pegou estrada: Campinas, Indaiatuba, Ribeirão Preto, até Rio de Janeiro e Curitiba. Em eventos dedicados a food trucks, num espaço de tempo maior que o habitual, Marcio e Jorge chegam a servir mil pessoas em um dia. Em semanas normais, aqui em São Paulo, de terça a sexta saem de 120 a 160 refeições por dia. Nos fins de semana, o número sobe e varia entre 200 e 250. O cardápio pode incluir sugestões light, como frango orgânico com cuscuz marroquino, mas o hambúrguer representa 30% das vendas. É feito de carne bovina (uma mistura de acém e peito de boi) e pesa 150 gramas. O Buzina (R$ 22) leva linguiça moída, aïoli (maionese de alho) e fritas entuchadas dentro do lanche. O X-Buzina (R$ 25) ganha o incremento de cheddar. “Aí, dá felicidade na boca”, afirma Jorge.

Felicidade que é anunciada pelo som de uma buzina – afinal de contas, “o Buzina chegou para fazer barulho!”, afirma Marcio. Mas essa não é uma buzina comum: toca uma melodia estridente, bem-humorada, que parece saída de um desenho animado. Em uma loja especializada, Jorge e Marcio testaram quatro ou cinco em busca da mais divertida. Quando decidiram montar o segundo truck, o fabricante não tinha mais a buzina que eles queriam no estoque – apenas uma última, pendurada na parede (e arrematada no ato). “Espero que ele faça mais”, diz Jorge. “Vai que a gente monta outro.”

SOL_bannerdraft

COMPARTILHE

Confira Também: