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Como falar com as crianças sobre mudanças climáticas e outros temas urgentes? Ela aposta na literatura para construir esse diálogo

Dani Rosolen - 11 nov 2025 Renata Rossi, idealizadora do projeto Clima de Literatura.
Renata Rossi, idealizadora do projeto Clima de Literatura.
Dani Rosolen - 11 nov 2025
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A literatura infantil pode salvar a humanidade? Talvez não no sentido estrito, mas livros infantojuvenis que abordam temas sensíveis ao desenvolvimento sustentável têm, sim, o poder de inspirar reflexões, apontar caminhos e sugerir novas soluções para velhos problemas.

É essa a aposta de Renata Rossi, 45, “jornalista por formação e mediadora de leitura por paixão”, como se define. Ela é autora de dois livros (incluindo o infantil Seu plano era cruzar o oceano) e idealizadora do Literatura & Desenvolvimento Sustentável, projeto que conecta leitura, infância e sustentabilidade em uma jornada sobre os grandes temas da Agenda 2030, com foco em crianças de 6 a 12 anos. O objetivo? Plantar sementes de consciência e ação — dentro e fora das páginas dos livros.

“Tem muita gente que acha que precisa proteger a criança, que não pode falar de determinados temas. Mas a questão é que as crianças estão nesse mundo, permeado por guerras, que sofre os impactos da crise climática, da violência e muitas delas vivendo essas situações”

Vencedor de um edital do ProAC, o projeto, com o nome simplificado de Clima de Literatura, estreou em agosto de 2025 na Biblioteca Hans Christian Andersen, no Tatuapé, Zona Leste de São Paulo, e vai durar dez meses. Com uma equipe diversa de mediadoras, curadoras, especialistas e artistas (99% do time é de mulheres; há integrantes negros, PcD e LGBTQIA+), Renata conduz rodas de leitura que envolvem escolas, educadores e famílias.

ELA COMEÇOU A SE ENVOLVER COM A MEDIAÇÃO DE LEITURA QUANDO ESTAVA GRÁVIDA

Renata construiu carreira em veículos como Veja, Portal Lunetas e Revista Crescer, além de ter trabalhado no Hospital Albert Einstein e na B3 Educação. Mas a leitura sempre foi sua paixão.

Em 2011, fez um curso de storytelling e se encantou pelas narrativas. Foi atrás de outros cursos na área, como o de contação. “Mas senti que esse universo da performance não era o meu lugar.”

Enquanto ela estava grávida da filha Clarice (hoje com 9 anos), um amigo pediu indicações de José Saramago. Renata recomendou e emprestou O conto da Ilha Desconhecida e depois que o amigo devolveu o livro, resolveu reler. 

 “Me dei conta naquele momento que não estava mais sozinha. Minha filha estava ali naquele barrigão, então decidi ler em voz alta. Aquilo mudou a minha vida e a minha carreira”

Depois disso, Renata mergulhou no universo da mediação de leitura com bebês. Em 2018, ofereceu seu primeiro projeto à biblioteca que hoje abriga o Clima de Literatura. “A Elis, que é a bibliotecária, estava grávida na época e na hora topou, me chamou para começar no mês seguinte.”

A experiência, que durou 25 meses, inspirou o seu perfil Primeiras Leituras, no Instagram. Renata tocava essas atividades “como um hobby” enquanto ainda trabalhava como jornalista. Até ser convidada, em 2020, para atuar em A Taba, clube de assinatura de livros infantis. “Pensei: é agora. Ou eu vou experimentar esse mundo ou vou ficar sempre no ‘e se…’.” Depois de dois anos como mediadora ali, ela decidiu seguir carreira solo.

ONDE A SUSTENTABILIDADE ENTRA NESSA HISTÓRIA

Em trabalhos como freelancer, Renata colaborou com o FALA Estúdio de Impacto, ajudando a criar uma incubadora de projetos de comunicação com foco na Amazônia.

Os projetos precisavam dialogar com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU:

“Fui estudar mais a fundo, porque tinha uma visão macro do que eram esses objetivos e aí quando comecei a mergulhar no tema me veio um estalo de que não tinha ninguém falando desse assunto na literatura de infância”

Durante a pesquisa, ela descobriu o Clube de Leitura ODS, criado pela ONU, com indicações de obras infantis relacionadas à temática produzidas em vários países — inclusive 175 (nacionais e internacionais) publicadas aqui no Brasil entre 2016 e 2020. “Ninguém conhecia esse clube… Acho que a primeira barreira é explicar o que é a Agenda 2030. Imagine relacionar isso com educação e literatura…”

Esse foi o ponto de partida do que viria a ser o Clima de Literatura. Para se preparar, Renata se inscreveu como aluna ouvinte em uma disciplina da USP sobre Estudos Culturais Ambientais. “As aulas me deram muita base para formatar essa proposta, que virou minha pesquisa de mestrado.”

Hoje, o projeto reúne 41 livros — entre indicados pela ONU e outros garimpados por Renata e pela equipe do projeto, que levam em conta obras publicadas após o corte temporal do clube –, entre eles Chupim (Todavida), de Itamar Vieira Júnior, com ilustrações da artista plástica Manuela Nava.

O PROJETO É DIVIDIDO EM TRILHAS TEMÁTICAS — E A PRIMEIRA FOI SOBRE OS POVOS ORIGINÁRIOS

Cada trilha do projeto tem dois encontros: um com educadores e outro com famílias — e, claro, sempre com a presença das crianças. A mediação de leitura é a base, seguida por conversas e dinâmicas (alguns encontros também contam com oficinas e especialistas convidados). A trilha dos povos originários foi a de estreia, em 30 de agosto.

“Se a gente ia começar essa conversa, nada mais justo do que iniciar com quem já estava aqui antes”

O livro escolhido foi Canção do amor, escrito por Txai Suruí, jovem liderança indígena do povo Paiter Suruí, e ilustrado por Fernando Zenshô (Elo Editora). Os versos são uma ode ao direito de ser e de existir no mundo de florestas, e também trazem histórias de guerreiros e caçadores.

“Quando li com as crianças, elas ficaram enlouquecidas. Depois que terminamos a roda, estava todo mundo no Instagram da Txai olhando quem era ela, o namorado, a família.”

DE UMA DAS TRILHAS NACEU UM MANIFESTO PELOS RIOS QUE CHEGARÁ À COP30

Inspirada pelo Dia Mundial dos Rios, comemorado no último domingo de setembro, Renata escolheu o mês para a trilha das águas. O primeiro livro da mediação, Um dia, um rio (editora Pulo do Gato), narrativa de Leo Cunha e ilustrações de André Neves, fala do rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, que afetou a cidade mineira de Mariana. Já o segundo, A mancha (FTD), escrito por Guilherme Gotik Flores e ilustrado por Daniel Kondo, reconta o maior desastre ambiental do litoral brasileiro.

Um dos encontros do CLima de Literatura (foto Ivete Siqueira).

Uma das oficinas do encontro sobre rios do Clima de Literatura (foto: Ivete Siqueira).

Desses encontros de setembro nasceu o “Manifesto pelos Rios”, a partir de uma provocação: “Será que se a gente encarasse os rios como nossos avós, trataria eles assim?”. Essa ideia de rio como avó é apresentada pelo ambientalista e filósofo Ailton Krenak em Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras). No livro, ele diz: O rio Doce, que nós, os Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo”.

As crianças foram instigadas a pensar sobre isso e a responder a seguinte pergunta: “Se eu fosse um rio, o que eu gostaria e o que eu não gostaria?. A partir daí criaram o manifesto, que será enviado a autoridades presentes na COP30 por meio de um parceria com a plataforma Donos do Planeta, criada pelo jornal Joca (dá para ouvir o manifesto aqui).

UM DOS LIVROS DE OUTUBRO ABORDOU O IMPACTO DA VIOLÊNCIA DIAS ANTES DA OPERAÇÃO NO MORRO DO ALEMÃO

Em outubro, mês das crianças e dos professores, a trilha teve a educação como tema. Um dos livro mediados com as famílias foi Eu devia estar na escola (editora Caixote), escrito e ilustrados por crianças e jovens moradores de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, que relatam o que é viver a infância impactada pelas frequentes e violentas operações policiais. Dias depois, ocorreu o massacre nos complexos da Penha e do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em uma operação que deixou 121 mortos (incluindo quatro policiais). 

Uma mãe que participou do encontro resumiu o impacto dessa roda de leitura, como relembra Renata:

“Ela disse que tinha vindo para uma atividade cultural, em busca de um respiro, e se deparou com esse assunto do qual nem queria ouvir falar… Mas depois percebeu a importância e ficou agradecida de participar”

Outra obra lida no encontro com as escolas foi Se os tubarões fossem homens, de Bertolt Brecht (edições Olho de Vidro, tradução de Christine Röhrig e ilustração de Nelson Cruz), uma fábula que reflete sobre questões sociais. E o terceiro livro foi o já citado Chupim: vencedor do BRAW Amazing Bookshelf, da Feira Internacional do Livro de Bologna de 2025, a obra trata do trabalho infantil.

COMO FALAR COM CRIANÇAS SOBRE TEMAS TÃO DIFÍCEIS

Em novembro, mês de realização da COP30, o Clima de Literatura se programou para abordar as mudanças climáticas. Gigi e Napoleão (Cortez Editora), de Claudia Ramos, foi o livro lido no encontro do dia 8 para as famílias e traz a história de dois amigos, uma girafa e um cachorro, que gostam de observar a natureza, mas estão preocupados com a forma como as pessoas estão cuidando (?) do mundo.

Roda de leitura com as família na Biblioteca Hans Christian Andersen (foto: Thais Lazzeri).

Roda de leitura com as família na Biblioteca Hans Christian Andersen (foto: Thais Lazzeri).

Além da chuva (FTD), de Michel Gorski, com ilustração de Fernando Vilela, será a obra utilizada no encontro do dia 13 e fala dos danos causados por temporais nas cidades. Os temas são difíceis e, por isso, ainda em outubro, Renata reuniu representantes dos movimentos Mães pelo Clima e Escolas pelo Clima na biblioteca para debater como abordar a crise climática com os pequenos:

“Não trazemos esse discurso de que o planeta está acabando, porque só serve para a gente entregar os pontos… Mas trabalhamos com convites para mudar de perspectiva, olhar de outras formas para esse mundo que a gente quer construir”

Por outro lado, afirma a idealizadora do projeto, é inviável despejar um monte de termos técnicos nos ouvidos das crianças. “Não vamos falar de emissão de gases de efeito estufa, isso aí fica com a escola”, diz. “Como mãe de uma menina, que é muito questionadora e que às vezes faz perguntas que me desnorteiam, o caminho que vejo é usar sempre a linguagem simples, sem ser simplória.”

O OLHAR ESPANTADO E CURIOSO DAS CRIANÇAS TEM MUITO A NOS ENSINAR

Apesar dos temas complexos trazidos pelo projeto, as crianças, diz Renata, costumam surpreender e sabem, sim, o que está acontecendo: “Nas discussões sobre Além da chuva em outras mediações que fiz, as crianças começaram a sugerir possibilidades, como um guarda-chuva que guarda a chuva para usar depois”.

Com a COP no Brasil, a mediadora vê uma chance única de dar voz às crianças ao tratar sobre mudanças climáticas, afinal são elas as mais afetadas por esse problema (99% já vivem expostas a riscos climáticos, segundo a UNICEF). 

“Todo mundo vai estar falando disso, mas será que vão estar falando sob a perspectiva da infância — e principalmente com a infância?”

O projeto segue até maio de 2026, com trilhas que abordarão temas como pessoas em situação de refúgio, cidades, passarinhos, mulheres e criatividade. Os livros do projeto que não são usados diretamente no encontro podem ser encontrados expostos na biblioteca e são indicados por Renata no seu perfil Primeiras Leituras.

Pensando sobre os ensinamentos adquiridos ao longo do projeto, ela reflete: “Será que quem tem que aprender somos nós ou eles? As crianças já têm esse olhar aberto para se espantar, para se alumbrar pelo mundo; a gente perdeu isso. E aí temos que nos abrir também para poder promover essas conversas e diálogos”.

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