Em dezembro do ano passado, Tatiana Campello, advogada carioca, sócia do Demarest, se permitiu algo novo: coordenar a escrita e edição do livro Inteligência Artificial e Tecnologias Inovadoras: a nova era da Propriedade Intelectual.
Tatiana já tinha participado de outras obras – capítulos e artigos – como coautora. Mas pelo entusiasmo com que fala a respeito, percebe-se que este projeto mais recente foi especial.
Foram seis meses trabalhando junto com outras 24 coautoras, especialistas em tecnologia e nas formas como ela se intersecciona com os negócios inovadores e a propriedade intelectual – diretrizes que protegem as criações humanas, garantindo ao autor, pessoa física ou jurídica, o direito de utilizá-las para gerar lucro.
O resultado desse esforço são 18 artigos que debatem uma fronteira desafiadora e extensa, abordando exemplos reais. São casos em que se discute, por exemplo, o direito autoral sobre invenções produzidas por um robô; ou conteúdos de entretenimento produzidos em um sistema de Inteligência Artificial Generativa; e até os desafios jurídicos de influenciadores virtuais.
O momento é propício, uma vez que as discussões sobre o Marco Legal da Inteligência Artificial no Brasil estão a pleno vapor. E, segundo Tatiana, nenhum dos capítulos tem a pretensão de trazer uma solução definitiva.
Na conversa com o Draft, ela fala também sobre sua visão de negócios (e de como iniciou sua trajetória até se tornar especialista em inovação), tecnologia, LGPD, cibersegurança e, lógico, propriedade intelectual:
No seu LinkedIn, você afirma que enxerga a propriedade intelectual como uma ferramenta de negócios para empresas. De onde vem a sua visão? Como você chegou neste caminho profissional?
Entrei no direito e logo comecei a trabalhar bem no início da faculdade, até para ver se realmente era isso que eu queria.
Comecei dentro do grande contencioso [área que resolve conflitos entre partes por meio de disputas judiciais], no comercial, e adorei. Era feliz fazendo isso.
Ainda como estagiária, fui trabalhar no escritório do falecido advogado e jurista carioca Denis Borges Barbosa, que sempre foi uma referência na área de propriedade intelectual.
Naquela época, era uma área que as pessoas pouco falavam; a gente nem tinha na faculdade essa matéria. Tve a sorte de trabalhar num escritório que tratava dessa área. Quando entendi a matéria, me apaixonei e pensei: “É isso que quero fazer da minha vida”
Passei a fazer muito contencioso de propriedade intelectual. Comecei ali como estagiária, continuei como advogada formada e assim fui seguindo. Eu me casei e fui morar fora por conta do meu marido. E quando voltei de viagem, depois de morar fora dois anos, fui para São Paulo.
Naquele momento, quis uma coisa diferente – trabalhar com contratos em propriedade intelectual, porque eu queria já dar um enfoque diferente na minha carreira. Queria trabalhar num escritório que tivesse contato com vários clientes internacionais, uma coisa mais empresarial, com uma visão de negócios bem focada mesmo em transações.
Eu queria justamente fazer contratos em propriedade intelectual para já trabalhar mais com negócios usando a propriedade intelectual nas transações comerciais. E assim foi.
Em 1996, cheguei no Demarest, onde estou há 28 anos, numa trajetória bem longa. Paulatinamente, criei, montei e cresci junto com a área de propriedade intelectual [do escritório]
E o uso da propriedade intelectual que, muitas vezes, as pessoas não sabem explorar ou exploram mal, porque não têm a consciência ou não fazem o link correto de que o que se está fazendo é uma propriedade intelectual. É você usar aquele ativo intangível, o direito que você tem de uma forma que possa trazer, para quem desenvolveu, um benefício econômico ou trazer oportunidades.
Então, é o uso da propriedade intelectual como uma ferramenta de negócio, seja através de um licenciamento, uma colaboração, um desenvolvimento conjunto… são múltiplas formas de fazer isso.
Esse é o carro-chefe do que venho fazendo ao longo dos anos.
Alguns anos atrás, entrei também na área de privacidade, que passou a ser uma área nova. Então, também trabalho com essa área em paralelo.
Você comentou sobre as pessoas não fazerem o link correto entre propriedade intelectual e o que ela pode gerar de negócio ou como ela pode se tornar um negócio. Você concorda que para leigos, propriedade intelectual (PI) tem a ver com direito autoral de obra artística, invenção científica e não com o negócio? Isso teria a ver com a história dos negócios no Brasil, com a entrada da tecnologia e dos softwares?
Eu acho que falta conhecimento. É um processo educativo de uma forma geral. Dou várias aulas e palestras, é um pouco do meu sacerdócio, como eu brinco. Na área de PI, a gente precisa fazer isso… e por amor e vocação, porque precisamos disseminar a propriedade intelectual.
Quanto mais se dissemina a propriedade intelectual, seja pela proteção, conhecimento dos seus direitos ou como você a usa como uma ferramenta de negócio, mais você desenvolve a área.
Falta as pessoas terem consciência e saberem o que elas têm nas mãos, as oportunidades que elas têm e como podem ser usadas. Muitas vezes, as universidades desenvolvem invenções, registram patentes e, a partir daí, fazem o quê…?
Então, falta esse conhecimento e prática do negócio, no sentido de ter uma oportunidade de licenciamento, como negociar isso? Como achar o melhor parceiro? Como amarrar esse contrato, fazer uma boa negociação? Como cuidar dessa relação contratual?
Falta amadurecimento de mercado tanto para quem cria a propriedade intelectual, quanto para quem eventualmente quer receber ou fazer negócios com quem criou aquela PI.
É importante a discussão que está havendo agora sobre o marco legal da inteligência artificial, em discussão no Senado. Existe algum tipo de compara entre esse debate e a legislação de proteção de dados?
Existem alguns paralelos, mas a discussão do projeto da Inteligência Artificial é muito profunda, porque impacta vários campos e temáticas.
E a gente precisa ter um balanceamento muito bem feito dessa discussão. Qual o modelo que vamos adotar? O que vai ser seguido?
Para termos certeza de que vai ser aplicado um modelo vitorioso, que faça sentido no nosso arcabouço jurídico e, ao mesmo tempo, sem frustrar o investimento, ou como vai ser a realidade prática de aplicação dessa legislação.
Esse balanceamento é um ponto muito importante e sensível que tem de ser observado.
Antes de a discussão sobre o marco legal da IA pegar fogo em 2023, o Demarest lançou, em 2021, o Guia de Boas Práticas em IA. Vocês já enxergavam a necessidade dessa discussão mais profunda?
Sim, a gente acompanha muito o que é feito no exterior e, principalmente, na Europa porque percebemos que as discussões no Brasil seguem muito o que vem de lá.
A ideia desse guia foi, justamente, trazer um pouco de informação, colocar de uma forma didática, sem ter a pretensão de ser um livro. Ele é um guia informativo, um material de fácil leitura, para colocar ali boas práticas, que independem de haver ou não uma legislação.
Essa é a beleza da história, porque as medidas que a gente menciona ali podem ser adotadas com uma boa governança, pela instituição.
Dos cinco princípios do Guia – Beneficência (bem-estar para seres humanos); Não Maleficência (não pode causar prejuízos); Autonomia (não pode enfraquecer ou aniquilar a autonomia humana); Justiça (diminuir desigualdade de autonomia na sociedade); e Explicabilidade (inteligibilidade e accountability pelo funcionamento do sistema) –, quatro têm como base a ética e com balancear todos os combinados de convivência da sociedade. Muito se debate sobre 100% de explicabilidade de sistemas de IA não ser factível, quando a questão parece ser de alto custo e não de impossibilidade técnica. A quantas anda este debate?
Esse é um dos pontos dessa questão do balanceamento que tem de ser feito. Temos a possibilidade de ter um mínimo de explicação, mas ao mesmo tempo, o quanto você vai conseguir esticar essa corda. E o quanto será razoável esticar dessa corda em termos de investimento em tecnologia, do que tem de ser feito para também não afastar os investimentos e nem também a vida prática.
Ou seja, você tem de ter algo aplicável e viável. Não adianta também exigir algo que seja completamente fora de um padrão mínimo. Aqui é uma linha tênue, na qual as contas precisam se equilibrar.
Houve outro momento no Direito em que foi preciso definir princípios parecidos com estes? Algum momento que se equipara ao que estamos vivendo com a IA? Porque tem o AI Act na Europa, nos EUA, vemos cada estado tentando definir uma coisa, porque ali o sistema é diferente daqui. Houve algum outro momento ou tema em que foi necessária uma discussão em que, além de ética, se pensasse em aplicabilidade e custo de desenvolvimento?
A própria discussão da legislação de privacidade passa um pouco por isso, porque também teve a discussão de princípios e prestação de contas versus investimento. Tem também as diferenças de como os países têm as suas próprias legislações — ou no caso dos EUA, os estados têm as suas legislações e vão aplicá-las.
O que eu acho muito interessante é que a discussão da IA vai em temas profundos e interessantíssimos de ética, direito, tecnologia e propriedade intelectual. Ela permeia muitos campos e concentrou, num mesmo momento, várias discussões complexas por si só — e você não tem uma resposta certa ou errada
Você tem uma discussão profunda… e é uma realidade. Então, você não pode dizer: “Peraí, vou parar aqui no tempo e no espaço, vou esquecer esse assunto e visitá-lo lá na frente”. Não! Já aconteceu. Você precisa também correr contra o tempo e pensar como vai conviver com tudo isso.
Como surgiu a ideia de reunir em um livro as possibilidades e visões sobre a Propriedade Intelectual relacionada à IA, tanto de desenvolvimento de software quanto de influenciadores virtuais? E como foram os bastidores da escolha dos temas e das autoras?
A Leticia Provedel, que é a outra coordenadora da obra, teve a ideia de fazer um livro com temas de propriedade intelectual só com mulheres. Isso surgiu numa das reuniões de um fórum de mulheres da própria ABPI – Associação Brasileira da Propriedade Intelectual, no ano passado.
Aí no final de 2023, em dezembro, Leticia me ligou para perguntar se eu coordenaria a iniciativa junto com ela.
Propus fazermos um livro que tivesse visões diferentes. Fizemos questão de convidar advogadas de escritórios diferentes e também trazer visões de empresas, porque convidei advogadas que atuam in-house
Fiz questão de convidar alguém do Judiciário, não porque a pessoa fale em nome do Judiciário, mas por ser alguém que está no Poder Público trabalhando, que tem uma experiência como juíza e que é interessante. E outra pessoa que vem do INPI – Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
Pensei também que tinha duas pessoas que não poderiam faltar no livro, porque na área de propriedade intelectual, existe um respeito enorme pela doutora Juliana Viegas. Ela é uma referência, a grande patrona da área. Fiz o convite para escrever o prefácio e ela aceitou. Outra pessoa que tem muito tempo de experiência é a Elisabeth Fekete. Ia ficar esquisito não ter as duas no livro.
O livro tinha como viés a propriedade intelectual e novas tecnologias, aí cada uma das autoras pensou num artigo que elas se sentissem confortáveis e gostariam de compartilhar.
Fizemos o lançamento em junho, em São Paulo e no Rio, num formato que eu inventei, uma coisa um pouco diferente. Não queria um negócio na livraria, em que todo mundo autografa o livro e vai embora para casa. Coloquei as autoras para fazer como se fosse um pitch do seu próprio artigo
Cada uma falou um pouquinho do seu artigo e foi interessante, porque despertou o interesse de as pessoas lerem todos!
Para se aproveitar bem o livro é preciso partir do princípio de que a propriedade intelectual é algo reconhecido em todos os países, mas não de forma igual. De acordo com tudo que você reuniu nos 18 artigos do livro, quais as consequências dessas diferentes visões num mundo tão hiperconectado? Muitos artigos trazem exemplos de fora. Nesse sentido, eu queria ouvir de você, por que essa discussão é tão rica e tão profunda ao mesmo tempo?
Os artigos não têm pretensão de trazer uma solução final. Eles têm a pretensão de trazer conhecimento sobre temas como a própria Inteligência Artificial, que acabou sendo muito falada, tanto que foi parar no título do livro.
No início, era um livro mais focado em propriedade intelectual, mas acabou virando um livro com muitos artigos de IA, o que foi ótimo
Dentro dos temas relacionados à inteligência artificial, a ideia das autoras foi trazer quais são as discussões atuais – inclusive algumas já têm coisas para atualizar, porque depois do livro ser lançado, já teve movimentações.
Até ficamos naquela coisa, “será que segura o livro e atualiza para depois lançar?” Eu falei: Não, vamos lançar, porque vai estar sempre mudando.
A gente queria trazer uma visão global de quais são as discussões lá fora, algumas coisas de como [o tema] é visto no Brasil… Porque não tem uma resposta, “é isso ou é aquilo”. Não sabemos ainda. Então, [o livro] é muito mais uma provocação do que uma conclusão final
O livro traz também alguns artigos muito práticos, que eu acho também muito interessante, porque eu quis muito dar essa tônica no livro, de ele ser prático.
No capítulo 18, “IA como ferramenta no fator tecnológico para estratégia de ESG”, coescrito com Camila Garrote, vocês fazem a correlação da tecnologia para superar desafios climáticos, sociais e desigualdades. Parece que a letra G ficou um pouco mais discreta no artigo. Que tipo de governança é possível sobre a IA, hoje? Talvez daqui dois meses seja diferente porque a legislação pode surgir…
O que quisemos provocar ali foi o seguinte: a gente não pensa na propriedade intelectual relacionada ao ESG; é como se elas fossem pautas distantes. E, na verdade, não deveriam ser.
Quando a gente fala do E, de ambiental, podemos pensar em patentes verdes, as tecnologias limpas. Então, a relação é mais direta.
Quando a gente fala do S, podemos pensar que a marca da empresa é um posicionamento de como ela se expressa, como socialmente – lato sensu [em sentido amplo] falando – é aceita, vista e reconhecida. Você pode relacionar a marca à empresa.
E justamente o G de governança é: que políticas e índices a empresa deveria ter para alcançar e medir como uma usa a propriedade intelectual de uma forma estratégica. E dividimos a coisa da seguinte maneira…
Passamos rapidamente sobre a questão da inteligência artificial ser usada para se medir os índices e ver se as performances e as ações de ESG estão sendo atingidas corretamente – o que é uma das grandes dificuldades, e a IA pode ser uma grande aliada nisso
Outro aspecto é: se você utiliza uma ferramenta de IA ou outra tecnologia qualquer relacionada à propriedade intelectual, [consegue avaliar] como aquela empresa poderia estar melhor qualificada ou melhor engajada dentro da política de governança.
Hoje, não existe uma relação de, se a empresa investe em tecnologias limpas ou se a empresa tem uma política interna de governança, por exemplo, para inteligência artificial ou uma política interna de governança para investimentos num determinado tipo de inovação. Não se tem, de fato, uma medição ou uma avaliação se aquilo está relacionado com uma boa política de governança ou com os índices de uma forma geral da empresa. As coisas estão muito separadas.
O nosso artigo é uma provocação para começarmos a perceber que o mundo do ESG não deveria estar desconectado do mundo da propriedade intelectual, porque ele não está desconectado do mundo da inovação. Esse é o link que a gente tentou costurar.
Tem um caso curioso no capítulo 8, “O Inventor Robô: como proteger a propriedade intelectual nas criações da IA”. Como você disse, nenhuma das autoras quer propor uma solução única, então, são listados três caminhos possíveis: a patente pertencer ao ser humano que “apertou o botão da máquina”; dar a patente ao desenvolvedor do sistema de IA responsável pela invenção; ou se criar um regime legal específico para criações de IA. É ingenuidade sugerir que para criações espontâneas da IA – em que nenhum ser humano pede uma solução –, pudesse haver um outro caminho… um em que criações das máquinas fossem de domínio público?
Aí você tem de olhar a legislação país por país, como é aplicada. Essa é a dificuldade.
Por exemplo, no Brasil, atualmente, para ser considerado inventor, você tem de ser uma pessoa física, uma pessoa natural.
Essa é a grande discussão. Não dá para ter uma coisa geral, porque cada país tem a sua legislação.
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