“Considero uma grande bênção o diagnóstico de câncer ter chegado depois que superei a crise existencial”

Gabriela Gasparin - 26 jul 2019 Gabriela Gasparin - 26 jul 2019
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por Gabriela Gasparin

– Peço que você feche os olhos e imagine que está descendo uma escada. Pare no último degrau e me diga o que vê.
– Não vejo nada, está tudo preto.
– Então visualize uma porta ao final da escada. Abra-a e descreva o que há do outro lado.
– Vejo uma sala vazia.
– Não há nada na sala?
(Percebi que era para ter alguma coisa e fiz aparecer um baú em um dos cantos.)
– E o que há dentro do baú?
– Honestamente, está vazio.
– Vazio?
(Me senti novamente pressionada e fiz aparecer umas folhas de papel.)
– Ótimo! E o que há nessas folhas?
– Estão em branco…

Esse diálogo aconteceu em uma tarde no início de 2014, no consultório de um psicanalista que logo abandonei por falta de afinidade com a linha terapêutica.

Aos 28 anos, quando já fazia quase dez que eu havia entrado para o mundo do jornalismo, uma sensação de não pertencimento à realidade em que havia me inserido começou a tomar conta de mim

O exercício da escada ilustra perfeitamente a proporção do vazio que tomava conta do meu ser. Retorno de Saturno, dirão uns, “mimimi”, sentenciarão outros. Seja qual for sua versão, a psicologia denomina o que passei de “crise existencial”. O que começou com uma leve inquietação culminou com um pedido de demissão em busca de, literalmente, procurar o sentido da vida, à la Into The Wild (Na Natureza Selvagem, em português).

Abandonei o emprego, desfiz a compra de um apartamento, vendi o carro e troquei por uma bicicleta, passei a viver com um terço da renda mensal, fiquei um ano sem comprar uma única peça de vestuário, passei oito meses sem fazer qualquer trabalho remunerado. Considerei viajar de mochilão pelo mundo, mas relutei com medo de voltar mais perdida do que tinha saído.

Para onde quer que fosse, levaria minha crise junto. Entrei para um mestrado e parei em seis meses, pois a vida acadêmica não era para mim. Cheguei, inclusive, a cogitar comprar uniforme e luvas cor de rosa e me tornar uma faxineira “descolada”. Reavivei um sonho antigo de fazer artesanatos e estive na Rua 25 de Março comprando tintas e caixinhas para pintar e vender (o que nunca se concretizou).

Eu me recusava a voltar a trabalhar com jornalismo porque significaria ter fracassado na missão de encontrar um trabalho que fizesse verdadeiro sentido para mim

Quando larguei o emprego, havia pronunciado o clichê dos que se arriscam: “Se tudo der errado, coloco o currículo debaixo dos braços de novo”. Só que, convenhamos, a última coisa que eu queria era ter que colocar o rabinho entre as pernas e fazer isso.

Me formei em jornalismo em 2007. Passei pelas redações do Diário do Grande ABC, Jornal da Tarde, Agora São Paulo e, em 2014, trabalhava no G1 havia cinco anos. Tinha feito uma pós-graduação e escrevia para o noticiário econômico. Minha vida se enquadrava no que é considerado por muitos como “encaminhada”.

Porém, não estava mais realizada nem feliz. Deixei de acreditar no meu trabalho e me sentia um robô dando scrolls automáticos na tela do computador, usando os comandos Ctrl+C e Ctrl+V. Não exercia a criatividade e nem era desafiada. O destino daquele caminho não me agradava. Repudiava os objetivos e interesses políticos e comerciais por trás do que era produzido e sonhava em sair da “Matrix”.

Abro um parênteses para dizer que o mercado jornalístico encontra-se em profunda crise desde o advento das mídias digitais e do marketing de conteúdo, com frequentes demissões em massa. Somada a essa triste realidade, fui pega por outro dilema atual: o de encontrar um propósito no que se faz.

Por mais que eu tenha críticas à ode ao empreendedorismo dos novos tempos, pois resulta em frustrações e precarização de mão de obra, acredito que os moldes antigos também não nos servem mais. Não nos contentamos em apenas ceder nosso tempo em troca de salário. Buscamos envolvimento em causas maiores, superar desafios, criar, inovar, pesquisar e desenvolver soluções.

Ainda na redação, a primeira válvula de escape que tive foi produzir algo no meu tempo livre. Pensei: “Será que sou a única pessoa que não vê sentido na vida? O que os outros pensam a respeito disso?”. E assim, em 2013, criei o blog Vidaria, em alusão a uma “livraria de sentidos da vida”

Em cerca de dois anos, realizei quase 150 entrevistas perguntando sobre o sentido da vida. Falei com pobres e ricos, religiosos, pessoas que enfrentaram situações difíceis, como doenças graves e lutos. Até em prisão consegui entrar para conversar com detentas.

O primeiro livro de Gabriela, Vidaria, foi um apanhado de relatos do que as pessoas consideravam o sentido da vida.

Ouvi as mais diversas respostas. “O sentido da vida é Deus”, “É a família”, “É fazer o bem”, “É aproveitar cada instante como se não houvesse amanhã”, “É amar e ser amado”, “É trabalhar”, “É correr atrás dos sonhos”, “É simplesmente viver”, “Eu também não sei qual é o sentido da vida”, “A vida não tem o menor sentido”.

Recebi o convite de uma editora para publicar um livro com as histórias do blog e, em 2015, foi lançado o Vidaria, uma coletânea de sentidos da vida (Editora Autografia).

O pedido de demissão aconteceu nesse meio tempo. Saí da empresa com o romântico plano de escrever o livro. Foi aí que a coisa piorou. Pela primeira vez desde os 4 anos, quando entrei no Jardim de Infância, eu não tinha um roteiro a seguir. Sabe aquela frase do Antonio Abujamra: “Enforque-se nas cordas da liberdade”? Então…

A cada nova sessão de choro, a psicóloga tentava me convencer a ir ao psiquiatra, o que eu resistia por não concordar. Porém, a coisa piorou.

Vivi momentos de profunda sensação de solidão. Era difícil encaixar a “nova eu” nas antigas relações sociais. Quando tentava falar dos meus dilemas com amigos e família, me sentia incompreendida e desconectada.

Não conseguia fazer novas amizades; relacionamentos amorosos eram insustentáveis. Ninguém cabia nas minhas incertezas. Acabei cedendo e fui diagnosticada com distimia (uma espécie de depressão dos mal humorados). Encarei antidepressivos por alguns meses, mas nunca aceitei isso muito bem e, assim que tive ferramentas internas, substituí os medicamentos por exercícios físicos e meditação.

Durante todo esse tempo, não passei perrengues financeiros porque tinha economias. Me permiti não trabalhar. Algo dentro de mim dizia que teria que fazer como ouvi uma vez do psicanalista Flávio Gikovate: “Não saber o sentido da vida nos dá a liberdade de criar nossa própria forma de viver”.

Uma ideia não saía da minha cabeça: escrever livros de não ficção sob encomenda. Afinal, as entrevistas do blog eram o que eu mais tinha gostado de fazer nos anos anteriores e na redação meu forte sempre foi escrever reportagens especiais

Montei, então, o site Vidaria Livros sozinha, fiz cartões de visita e cursos de empreendedorismo. Ingenuamente, mandei imprimir 2 500 panfletos, mas nunca saíram da caixa. Os clientes chegam pela internet. Quando a ansiedade baixou, consegui fazer trabalhos como freelancer. Em um desses, entreguei meu cartão a uma empresária que, coincidentemente, queria escrever um livro sobre a história de sua bisavó. Foi a primeira publicação da Vidaria Livros.

De lá para cá, já escrevi mais de dez obras. Outras estão em produção ou na espera para serem escritas e publicadas. Recebo e-mails diariamente de gente do Brasil inteiro e exterior querendo informações para escrever e publicar um livro. Também dou consultorias literárias e oficinas de contação de histórias.

Há três anos vivo única e exclusivamente das obras, que considero minhas “filhas”. Escrevo biografias, autobiografias, livros técnicos e institucionais (como ghost writer ou não). Entrego-me completamente a cada nova história. Saber que sou uma ponte de comunicação entre o autor e leitor me move profundamente. Lancei uma editora e também publico os títulos. Com o tempo, consegui ter o mesmo padrão, financeiramente falando, da época da carteira assinada.

Cheguei a escutar que minha jornada funcionou como uma preparação para o que estava por vir. Não acredito muito, mas quando recebi o diagnóstico de câncer de mama, em maio de 2018, me senti efetivamente preparada para encarar o desafio

Após tanto sofrer por dilemas existenciais, eu já sabia como acessar minha força interior para não desabar ante as incertezas e percalços da vida. Existe uma frase de Nietzsche que gravei em meio às inúmeras leituras que fiz: “Quem tem por que viver suporta quase qualquer como [viver]”.

Sou grata à vida por, nessa altura do campeonato, já ter descoberto o meu “porquê”. Havia aprendido a me conectar comigo mesma e entrado em contato com minha espiritualidade. A sabedoria budista de que “nada é fixo nem permanente” me guiava.

Eu já tinha lido inúmeros livros de autoajuda, autoconhecimento e neurociência para saber como ensinar meu cérebro a ser otimista por meio da meditação e prática de pensamentos positivos. Coisas sombrias passam pela mente de todos nós; compreendi que cabe a mim “dar trela” para elas ou não. Posso escolher com qual tipo de pensamento quero conviver.

Escolhi encarar o tratamento confiante de que tudo daria certo. Apesar da fraqueza física que os quimioterápicos causam, emocionalmente eu estava sustentada

Tive sorte porque o câncer de mama é o tipo mais comum entre as mulheres, então há um protocolo médico estabelecido ─ diferente da crise existencial, quando encontrar uma solução dependia única e exclusivamente de mim.

Gabriela e a mãe prontas para o último dia de tratamento.

Nunca achei que fosse morrer, porque os médicos diziam que as chances de cura eram altíssimas (meu estágio era o 2). Foram nove meses indo ao hospital. Após a cirurgia para a retirada do nódulo, congelei meus óvulos, já que a quimioterapia pode causar infertilidade. Para finalizar, passei por 28 sessões de radioterapia. Hoje estou curada e faço um tratamento hormonal para evitar recidiva.

Nunca recebi tantas visitas, contatos e mensagens de amigos e familiares. Senti o amor incondicional que meus pais têm por mim ─ minha mãe, fiel escudeira, esteve ao meu lado praticamente todos os dias no hospital.

Fui muito sortuda em ter ao meu lado um namorado super amoroso e parceiro, que se entregou completamente à situação e fez eu me sentir a pessoa mais especial do mundo.

Uma vez, assisti a um vídeo da Monja Coen, grande mestra zen, em que ela diz: “Você é capaz de agradecer pela doença que chega até você?”. Depois que passou, é mais fácil agradecer. Aprendemos muito com o sofrimento. O meu grande aprendizado, por mais óbvio, é valorizar a vida, em seus altos e baixos.

Às vezes parece não fazer sentido, mas estamos vivos. É bom aproveitar e fazer da existência algo útil enquanto é tempo pois, cedo ou tarde, partiremos. Considero uma grande bênção o diagnóstico de câncer ter chegado depois que superei a crise existencial.

Nada é pior do que se sentir sozinha e perdida na vida, nem mesmo a quimioterapia. Comigo foi assim. Passados os percalços, estou tão mais plena com minha nova versão que, sim, sou eternamente grata por tudo o que me aconteceu

Lembra daquela folha em branco do meu inconsciente? Ter refletido sobre o sentido da vida me ajudou a segurar a onda durante o tratamento, mas não só isso: fez também eu entender que está sob nossa responsabilidade dar o significado para a nossa existência.

Hoje eu vivo, literalmente, de preencher arquivos de Word com histórias reais, assim como acabo de escrever um capítulo da minha. Que venham as próximas páginas em branco!

 

Gabriela Gasparin, 33, é jornalista, escritora e fundadora da Vidaria Livros, uma editora de livros de não ficção. É também criadora do blog Vidaria, autora do livro Vidaria, uma coletânea de sentidos da vida (Autografia, 2015), e de uma dezena de outros títulos que escreve sob encomenda ou como ghost writer. Já trabalhou nas redações do Diário do Grande ABC, Jornal da Tarde, Agora São Paulo e G1.

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