Da Amazônia para as passarelas: o Sioduhi Studio, de Manaus, cria moda sustentável inspirada nos povos originários

Maisa Infante - 25 mar 2024
O estilista Sioduhi (foto: Alexandre Cruz Noronha).
Maisa Infante - 25 mar 2024
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Foi em um apartamento na Zona Leste de São Paulo, uma das regiões mais áridas da cidade, que o estilista Sioduhi, 28, desenvolveu a primeira coleção da marca que leva seu nome.

Lançada em 2020, a coleção “Dabucurí” tem cores que remetem a peixes (acará verde, jandiá), frutos (burití, urucum, açaí do igapó e açaí verde), alimentos e fibras do Rio Negro (bejú puba, tucum), uma referência à cultura do seu povo – os piratapuya do Alto Rio Negro, no Amazonas. 

O nome da coleção, explica o estilista, remete a uma cerimônia milenar que ocorre na região do Alto Rio Negro. Durante o Dabucurí ocorrem trocas de saberes e conhecimentos como cantos, dança, bebida, alimentos e histórias. 

Desde o fim de 2022, Sioduhi está baseado em Manaus (as peças são vendidas principalmente pelo site). Ele diz que se inspira não só em suas origens, mas em outras comunidades, como povos ribeirinhos, quilombolas e extrativistas. 

“Eu ligo mais para a temática e pesquisa do que para tendências. Lanço uma coleção por ano sem ter preocupação com as estações, ainda mais que estou em Manaus e, aqui, o ano todo é quente. Quando comecei a pensar um pouco sobre o lugar de onde eu venho, acabei me afastando mais ainda da tendência”

Hoje, o Sioduhi Studio tem mais três coleções no portfólio (“ManioQueen”; “Pamɨri 23: Cápsula da Resistência e Transformação”; e a mais recente “Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã”). Conta, também, três edições do Brasil Eco Fashion Week, plataforma dedicada à moda sustentável e inovadora. 

FORMADO EM ADMINISTRAÇÃO, SIODUHI SE MUDOU PARA SÃO PAULO E TRABALHOU EM OUTRAS ÁREAS ANTES DE CRIAR A SUA GRIFE

Nascido em Mariwá, comunidade no Médio Uaupés, Sioduhi cresceu em Iauaretê, um distrito de São Gabriel da Cachoeira, município a 850 quilômetros de Manaus, junto à fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. 

Até os 6 anos, quando aprendeu a falar português, ele se comunicava apenas em tukano, língua nativa do seu povo (mais tarde, já adulto, procurou acompanhamento fonoaudiológico para se comunicar melhor).

A mandioca brava é matéria-prima para o pigmento natural usado na coleção MandioQueen (foto: Alexandre Cruz Noronha).

Quando desembarcou em São Paulo, Sioduhi já era graduado em Administração pela Uninorte (Centro Universitário do Norte). Antes, fez curso técnico em Administração, Negócios e Marketing no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas.

Na capital paulista, estudou alguns semestres de modelagem de vestuário em uma escola técnica, fez um MBA em Gerenciamento de Projetos pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) – e trabalhou muito. 

Ele atuou em uma empresa de odontologia e uma construtora até outubro de 2020, quando parou com tudo para se dedicar ao propósito que o fez trocar a região Norte pelo Sudeste: empreender no mercado da moda e criar a sua própria marca. 

UMA TIA COSTUREIRA E UM TIO ALFAIATE SERVIRAM DE REFERÊNCIA E INSPIRARAM A SUA JORNADA NO MUNDO DA MODA

A inspiração para trabalhar com moda veio de uma tia costureira com a qual ele conviveu durante toda a infância. 

Além disso, em 2021, ele descobriu que um tio (falecido em 2017) havia sido alfaiate e recebeu um kit de lembranças com régua de madeira, anotações, cálculos e desenhos de modelagem. 

“Meu interesse veio desse olhar que eu tinha para a minha tia costurando e acabou interligando com o meu tio, que foi alfaiate por longo período, e com a nossa manualidade com artesanato. A gente nasce nesse meio considerado ‘arte’ pelo branco, mas pra gente não é arte: é o nosso dia a dia, o jeito de lidar com as fibras, fios, linha de pescar e artefatos”

A preocupação em não exaurir a natureza faz parte da cultura indígena. Assim, a sustentabilidade aparece de forma natural no trabalho do Sioduhi Studio. O estilista usa algodão e viscose certificada, normalmente composta com algum outro elemento, como fibra de bananeira e cânhamo. 

Ele também busca inserir nas suas coleções elementos tradicionais do Alto Rio Negro, como a fibra do tucum (palmeira típica da região), fornecida pela Associação das Mulheres Indígenas do Distrito de Iauaretê.

A PARTIR DA CASCA DA MANDIOCA BRAVA, O ESTILISTA DESENVOLVEU UMA ALTERNATIVA NÃO-POLUENTE AOS CORANTES SINTÉTICOS

Uma das missões de Sioduhi é incluir nos processos criativos as manualidades que fazem parte da tradição de povos originários e com as quais ele conviveu na infância. 

Ele conta que cresceu com a preocupação do primeiro benzimento, tomou banho com breu, acompanhou a mãe na coleta de tucum para artesanato e viu o pai fazer tipiti (prensa feita com palha), peneiras etc. 

“Sou muito grato por ter nascido em uma comunidade indígena, onde essas atividades eram muito fortes. Mas, hoje, o nosso conhecimento está em um local de risco, de perda iminente…” 

Sioduhi acredita que mostrar a potencialização das tecnologias originárias e amazônicas é uma das formas de envolver os jovens nessa jornada. 

Nesse sentido, ele desenvolveu uma tecnologia chamada Maniocolor, a partir de um pigmento da casca da mandioca brava (cultura tradicional no Alto Rio Negro para fazer farinha, biju, goma). O projeto teve o apoio do programa Inova Amazônia, do Sebrae.

“Muitas pessoas pensam que a tecnologia indígena ficou no passado com a rede, tapioca, maniçoba… Mas nada impede que nós, indígenas do século 21, possamos continuar criando outros produtos, outras tecnologias, desde que respeitem o meio ambiente” 

Sem produtos químicos, a Maniocolor é uma alternativa sustentável aos corantes sintéticos, que poluem as águas; além disso, ajuda a fortalecer o sistema agrícola tradicional do Rio Negro, considerado patrimônio imaterial pelo Iphan desde 2010. 

A coleção “ManioQueen”, de 2022, reverencia, segundo Sioduhi, o processamento da mandioca e foi totalmente desenvolvida utilizando o Maniocolor. 

“Nas minhas palestras, quando falo da tecnologia Maniocolor os olhos das pessoas brilham. Mas é muito importante falar que não é qualquer tingimento natural que é sustentável. Basta olhar para o passado” 

Ele chama atenção para o fato de que o pau-brasil, árvore que deu nome ao país, “foi exaurida para fins têxteis”. 

“Temos que olhar que tipo de inovações são essas, até que ponto são escalonáveis, até que ponto respeitam o meio ambiente também.” 

PARA NÃO SE PERDER, SIODUHI PRECISOU RESGATAR AS SUAS ORIGENS E RETORNOU À AMAZÔNIA

Quando, em outubro de 2022, Sioduhi fez uma visita ao distrito de Iauaretê, onde cresceu, decidiu que era hora de deixar São Paulo e voltar para mais perto das suas origens. 

Em dezembro daquele ano, ele embarcou para Rio Branco, no Acre, para recomeçar. Chegou juntamente com as enchentes históricas e ficou ilhado durante 30 dias sem acesso aos materiais de trabalho, que não tinham como ser entregues. 

Na capital do Acre não conseguiu formar equipe e decidiu ir para Manaus, onde chegou em meio à seca histórica e sentiu na pele a cidade coberta de fumaça. 

“A partir daí comecei a refletir sobre o meu posicionamento e o que chamo de ‘embolhamento’. Tudo que a gente vive em São Paulo é um mundinho, uma ilusão que foi criada para as pessoas se acomodarem e dizerem que estão ‘fazendo’…” 

Esse olhar crítico alcança também a indústria da comunicação, que na visão de Sioduhi só tem olhos para o Sudeste.

“Quando aconteceu a enchente em Rio Branco e a seca histórica no Amazonas, a indústria da comunicação virou as costas para a Amazônia. A partir disso comecei a ficar com mais vontade de me juntar às lutas coletivas do Amazonas.”

ELE AGORA PLANEJA ABRIR UMA LOJA FÍSICA E BUSCAR INVESTIMENTO, SEM PERDER DE VISTA O SEU PROPÓSITO

“Amõ Numiã: Ontem, Hoje e Amanhã”, a coleção mais recente do Studio Sioduhi, foi totalmente desenvolvida em Manaus. O nome se refere às primeiras mulheres, filhas do criador do universo, que fundaram um matriarcado e lideraram o manejo do território e do universo por um período na história primordial. 

A coleção homenageia essas mulheres e o que estilista chama de “mulheridade” ao usar tecnologias manuais das mulheres do Alto Rio Negro, como tranças e tear com fibra de tucum, e por meio da colaboração de mulheres como a Associação das Artesãs Indígenas de São Gabriel da Cachoeira e da marca Ínaru Éyawa, que trabalha com tear e é composta por sua tia e suas primas.

“A minha missão com o Sioduhi Studio em Manaus tem sido trazer a pauta da moda para que as pessoas olhem – não no sentido de romantização e glamourização, mas sim como é um trabalho sério, com profissionais que estudam, pesquisam, estão dedicados e como isso gera emprego na cadeia e não apenas no final do processo com os desfiles e editoriais”

Com uma equipe de cinco pessoas, Sioduhi estuda agora abrir uma loja junto ao estúdio, em Manaus. Esse plano vem junto com a ideia de buscar um investimento para fortalecer a marca, que fatura atualmente entre 80 mil e 100 mil reais por ano. 

Nessa jornada, o importante é não perder de vista o propósito. E seguir em frente levantando a pauta, através da moda, não só dos povos originários, mas de outras populações da região, como ribeirinhos, extrativistas e quilombolas.

“Enquanto o Amazonas está se tornando o centro do mundo, não estamos pensando nas pessoas que estão mantendo a floresta de pé”, diz Sioduhi. “Não adianta nada a gente falar que os indígenas são guardiões da floresta se não considerarmos a diversidade das populações amazônicas.”

DRAFT CARD

  • Projeto: Sioduhi Studio
  • O que faz: Roupas e acessórios inspirados na tradição indígena
  • Sócio(s): Sioduhi
  • Funcionários: 5
  • Sede: Manaus
  • Início das atividades: 2020
  • Investimento inicial: R$ 5 mil
  • Faturamento: R$ 100 mil/ano
  • Contato: [email protected]
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