Depois de mais de vinte anos de trabalho, minha mãe foi demitida por causa da internet; a necessidade do trabalho dela ficou obsoleta.
Ao mesmo tempo, aos 17 anos, eu estava para entrar na faculdade e também queria ter um carro, pois completaria 18 e assistia às pessoas ao meu redor tendo ambas as coisas.
Foi quando minha mãe me chamou para uma conversa e jogou a real: “Filho, eu só tenho condições de te dar a faculdade ou o carro. Não consigo te dar os dois, você precisa escolher”
Essa conversa aconteceu na nossa sala, que tinha somente dois sofás velhos, paredes verdes descascadas pelo tempo, um rack baixo de madeira e um aparelho de som três-em-um da minha tia, prateado, da década de 90, em que eu simplesmente amava colocar minhas fitas cassete falsas compradas com o ticket-refeição que minha mãe às vezes me dava.
Nesta casa, na quebrada da zona norte de São Paulo, morávamos eu, minha mãe e avó, meus tios e dois primos. Um lugar simples, quase sem móveis, além das camas e televisões que ficavam nos dois quartos que cada família tinha para ter sua privacidade.
A grande verdade é que minha mãe não conseguiria pagar nenhuma das coisas que ela falou – mas estava tentando mostrar-se presente, como sempre fez, por ser mãe solo. E, sim, eu também trabalhava, em três lugares, para ajudar em casa.
A decisão de abrir mão do carro e fazer faculdade foi o que proporcionou esta conversa aqui, entre nós dois.
Dezoito de fevereiro de 2002, segunda-feira, 19h10, sala C210, curso de Publicidade e Propaganda, UniSant’Anna, aula de Português do professor Rodrigo.
Foi lá que eu conheci três caras que ficariam na minha vida para sempre: Jônatas Guedes, Luciano Raso e Diego Verde.
Ali nasciam não somente laços profissionais, mas uma amizade que tem histórias que envolvem bandeiras brancas da paz, passando por conquistas profissionais, perdas de pessoas queridas, vulnerabilidade, choros, brigas, gratidão, e toda sorte de presepadas – chegando até a invenção de um kung-fu mexicano
Eu, Jônatas e Verde tínhamos a mesma idade, éramos os caras que organizavam as festas da faculdade, ao mesmo tempo que conseguíamos boas notas. Cada um de nós era muito bom em algo específico e dava suporte ao outro; conseguíamos quase que ler o pensamento uns dos outros, pois convivíamos juntos praticamente 24 horas por dia.
Fazíamos faculdade, trabalhávamos, treinávamos karate, viajávamos e organizávamos festas como DJs aos finais de semana, sendo sócios em uma empresa de eventos que, na verdade, era uma maneira de participar das festas e nos divertir sem ter que gastar – e ainda sobrava um pouco de dinheiro para as viagens.
A situação econômica de cada um era diferente no âmbito familiar, mas, na essência, éramos duros ao ponto de colocar 50 centavos de gasolina no carro emprestado da irmã do Jônatas para passear, além de ficarmos nas baladas segurando um copo com água de torneira que pedíamos aos bartenders para parecer que estávamos bebendo algo
Mas e o Luciano? Aos 27 anos, ele já tinha passado por agências de marketing e estava fazendo a sua segunda faculdade. Ele meio que adotou a gente compulsoriamente, pois era o mais velho, responsável, estava para casar, enquanto nós… Festas.
Ele chegava todas as noites na sala de aula com seu cinto de fivela de cowboy e um ar professoral meio de mosqueteiro; não teve jeito: ele virou o “tio”. Absolutamente não tinha como isso ser etarismo, pois a gente tinha 18 anos e ele, 27! Era vontade de sacanear ele mesmo, o que acontece até hoje.
Mas nem por um minuto atreva-se a duvidar do eterno carinho que nós três temos por ele, não só por nos dar nosso primeiro estágio em uma agência de propaganda, a Latina MSG, mas também por ajudar a nos manter no rumo durante quatro anos e terminarmos a faculdade. O Luciano é uma mistura de mestre Splinter, Senhor Miyagi e Johnny Lawrence.
Após o término da faculdade em 2005, o contato diário com o Luciano acabou diminuindo um pouco pela etapa de vida de cada um.
Ele já estava com um cargo “bacanudo” no Santander, enquanto nós três ainda buscávamos crescer na carreira individualmente, mas sempre juntos, trabalhando quase sempre pelo menos dois de nós em alguma agência
Nós três trabalhamos na Latina MSG, eu e o Jônatas juntos na Ogilvy, já o Verde e Jônatas trabalharam na Central Business. E, no meio desse caminho, colocávamos nossos jovens pescoços em risco como DJs e animadores das festas dos diretores dessas agências
Chegamos ao ponto de organizar toda a estrutura de som e iluminação da festa de final de ano da Rapp Brasil, uma agência multinacional onde somente eu era estagiário e o risco era bem claro: se a festa ocorresse bem, a gente faria uma graninha boa e eu mostraria que era responsável. mas, se desse ruim, eu sabia que precisaria procurar outro estágio…
Ainda bem que deu tudo certo, mas admito que quase colocamos fogo na festa inteira com a “brilhante” ideia de apertar uma lata de inseticida com um isqueiro na frente debaixo de um teto de palha…
Sorte que ninguém percebeu na hora e fui efetivado duas semanas depois, trabalhando na gestão de projetos digitais – ou seja, a mesma tecnologia que um dia fez a minha mãe perder o emprego trazia de volta a oportunidade da nossa família
Na época eu nem me liguei nisso: é o tipo de situação que só faz sentido quando você olha a história toda e reflete como às vezes a mesma coisa vai te afetar diretamente de maneiras diferentes, de acordo com a conjunção de fatores de cada momento.
Lá pelo final da década, o Verde foi o primeiro a deixar o Brasil, indo morar na Austrália, deixando seu emprego de diretor de arte e indo tentar uma vida diferente.
Nós sabíamos que essa poderia ser a última vez em que estaríamos os três juntos, então fomos visitar o Luciano e conhecer a filha dele que havia nascido e demonstrar nosso carinho.
Dois anos depois, era a minha vez de ir passar um tempo fora, deixando uma carreira com direito a prêmios internacionais e um bom salário, e acabei ouvindo os conselhos do Verde e indo para o outro lado do mundo
Eu não tinha ideia do que aconteceria com a minha vida, mas sabia que daria um jeito de me virar, como sempre fiz.
Depois de um tempo vivendo em Melbourne, decidi passar alguns meses na mesma cidade em que ele estava morando, ao norte da Austrália, e trabalhamos juntos novamente, com ele me arrumando uma vaga, mas em um local um pouco diferente: um cassino.
Quando o gerente do bar perguntou a ele se eu sabia trabalhar no bar, ele respondeu: “No bar eu não sei, não. Mas nunca vi alguém que gosta de trabalhar tanto quanto ele. Até demais”.
Consegue adivinhar quem foi morar lá depois? Bingo. Porém, o Jônatas acabou indo morar em outra cidade perto da nossa, também escolhendo guardar em uma “caixinha” a profissão de redator junto com o prêmio Profissionais do Ano que havia acabado de ganhar.
A correria da vida não permitiu nos encontrarmos na Austrália; só que, numa quarta-feira, lá pelas duas da tarde, enquanto eu e o Verde esperávamos por uma pizza que seria nosso café da manhã e almoço após ter trabalhado de madrugada no bar do cassino, meu telefone tocou com o Jônatas dizendo que seria pai
Como previsto, aquela visita à casa do “tio” Luciano foi a última vez que eu veria meus amigos fisicamente reunidos; a parte triste é que eu não imaginava que eles iriam se falar tão pouco nos anos seguintes.
Acabei sendo o elo entre nós. Almoçando de vez em quando com o Luciano em algum restaurante da Faria Lima, trocando mensagens esporádicas com o Jônatas, mantendo uma comunicação mais que semanalmente com Verde – para falar sobre política, rir de alguma piada sem graça ou com ele viajando da Austrália só para ser meu padrinho de casamento.
Eu e minha esposa mudamos para a Califórnia depois de nos casarmos, em 2017, e o Jônatas também estava com toda a sua família no Texas. Foi quando, no ano retrasado, o Verde resolveu vir me fazer uma visita.
Eu sabia que os dois não haviam conversado nos últimos anos, então não tive dúvidas e mandei um áudio assim: “Jônatas, o Verde chega em três dias. Acho que você deveria dar um pulo aqui em casa”.
E não é que ele veio com o filho dele? Filho esse que acabou sendo cuidado pela minha esposa, pois mais legal do que reencontrar seus amigos após dez anos e parecer que vocês tinham se visto ontem é ver essa ligação entre passado e presente acontecendo em um lugar e de uma maneira totalmente inesperadas
Durante esse final de semana que passamos juntos, percebi o quanto nós mudamos e evoluímos. Só que a nossa essência e conexão eram exatamente as mesmas, pois rimos das mesmas piadas de vinte anos atrás, ao mesmo tempo em que criamos novas histórias e emoções com quem, agora, também faz parte dessa história.
Quando ambos voltaram para as suas casas, eu sabia que o nosso potencial em conjunto ainda estava lá, talvez somente esperando os elementos da equação vida proporcionarem que ele viesse à tona uma vez mais.
Depois do meu último emprego, na agência Monks, em São Francisco, decidi colocar à prova minha ideia de ter uma empresa focada na gestão de projetos de marketing.
Comecei a planejar e estruturar tudo, e, explicando a ideia para o Verde numa das nossas conversas semanais, percebi que ele já estava de saco cheio do seu trabalho na Austrália e bem interessado no que viria a se tornar a Waymaker Projects
Eu prontamente o convidei para fazer parte da empreitada, e ele se juntou à equipe. Ao começarmos a divulgar a criação da nossa empresa, um belo dia me liga, do Brasil, nosso mentor, me parabenizando pela iniciativa, dizendo que estava orgulhoso e que sentia saudade da época em que trabalhávamos juntos, dividindo também seu momento de vida atual.
Mal sabia ele que eu e o Verde já tínhamos falado em diversas reuniões internas que precisávamos de um “Luciano” no time, que alguém com o perfil dele seria ideal; uma semana depois, ele já estava “pitacando” em tudo.
Lá estávamos novamente, quase completos, quando precisei ir a São Paulo para acertar alguns detalhes, parcerias e tirar fotos com toda a equipe para divulgação para a imprensa e criação de materiais internos da empresa.
Foi quando o Jônatas começou a conversar comigo e, menos de meia hora depois, já estávamos vendo como ele daria um jeito de fazer um “bate-e-volta” Dallas-São Paulo-Dallas em um único dia para participar da sessão de fotografia com toda a empresa…
A partir dali, nosso grupo da C210 estaria completo e a todo vapor, mais maduros, usando a internet para trabalharmos juntos novamente.
Hoje, a nossa empresa tem outras pessoas trabalhando conosco, e, de alguma forma, elas têm essa mesma essência de camaradagem e trabalho em grupo para alcançarmos o mesmo objetivo de forma leve, mesmo mantendo o alto nível de profissionalismo.
Independentemente de criarem laços de amizade, é vital que tenham uma boa conexão entre si para que nosso DNA continue forte, e faço questão de encorajar isso, principalmente por estarmos em diferentes partes do mundo.
Muitas pessoas são contra misturar amizade e trabalho, e esse tópico vem sendo estudado cada vez mais em pesquisas, com alguns resultados mostrando o quanto isso é benéfico em vários aspectos. Mas tenho que dar o braço a torcer: não é para todo mundo
É necessário ter confiança mútua para, depois de ter uma discussão acalorada no ambiente profissional, mudar para um assunto bem-humorado ou pedir um conselho sobre a vida.
Afinal de contas, discussões e brigas vão acontecer no trabalho, seja com amigos ou não. Então, eu prefiro que, pelo menos, seja com alguém em quem eu confie.
Publicitário com mais de 20 anos de experiência, Marcos Valeta hoje vive entre São Paulo e o Vale do Silício. Em 2024, fundou a Waymaker Projects, empresa de gestão de projetos em marketing e comunicação.
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