“Dá um trabalho do cão colocar um monte de ser humano diferente para funcionar coletivamente”

Priscila Cotta - 22 out 2015
Priscila Cotta viveu uma experiência intensa de trabalho com gestão horizontal e conta a real sobre o que é sonho e o que é verdade no desafio de realizar projetos coletivos e engajar pessoas (foto: Leonardo Pacheco)
Priscila Cotta - 22 out 2015
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por Priscila Cotta

De toda a minha vida profissional como comunicadora, que tem aí seus 16 anos, por apenas cinco eu tive emprego. No restante do tempo, empreendi. E a cada empreendimento, um novo passo em busca de relações de trabalho mais horizontais e humanas.

Aos 24, abri uma agência de assessoria de imprensa ao lado do meu marido na época, o também jornalista Mauro Hossepian. Não foi intencional. Fechamos contrato com as casas da Cia Tradicional de Comércio (na época eles tinham Pirajá, Original, Astor e pizzarias Bráz) e fomos tão bem que começamos a ser procurados por outros da área de gastronomia: Carla Pernambuco, Charlô, Olivier Anquier, Escola Wilma Kovesi de Cozinha, Carole Crema, Obá, só para citar alguns. À medida em que os clientes iam chegando a gente ia se organizando: inventamos um nome, alugamos um espaço, começamos a contratar colaboradores e acabamos nos tornando referência na área sem quase nunca ter prospectado ativamente.

Desde essa época — a Anexo Comunicação nasceu em 2003 — eu pensava sobre um formato de trabalho mais horizontal. Percebia que, sendo uma empresa de serviços, a gente não era mais que a soma de todos os talentos. Nós, os sócios, éramos como regentes de uma orquestra, mas cada instrumento era igualmente importante na música que encantava as pessoas. Eu perdia noites pensando em como reter os talentos e extrair o melhor de cada um. Não numa visão de lucrar às custas deles, mas de lucrar mais junto com eles. Tinha até um sentimento controverso: na minha cabeça, o fato de a responsabilidade pela entrega final ser só nossa também era injusto. Esse tipo de relação possibilitava que o cara enrolasse o dia inteiro sabendo que a gente tinha um grande evento para divulgar. Por outro lado, quando a gente conseguia um super resultado, um case, era um ganho de imagem para a marca e não para eles.

Comecei a procurar alternativas jurídicas condizentes com essa realidade, conversando com advogados, contadores e outros empresários. A única ideia que lembro hoje foi a de um formato parecido com o de escritórios de advocacia, em que as pessoas entravam como sócias minoritárias e podiam ir crescendo sua participação com o tempo, de acordo com combinados entre as partes. Não fomos em frente por dois motivos: 1) A gente vivia com lucro muito apertado e era oneroso mudar o contrato social a cada entrada e saída, que eram muitas e 2) As pessoas que estavam ali não pareciam se empolgar tanto com a ideia quanto a gente. Parecia mais simples ter um emprego comum.

Optamos por começar oferecendo essa sociedade para apenas dois dos colaboradores e, depois de um processo que envolveu uma viagem de imersão e utilização de ferramentas de business coaching (a gente não tinha grana para pagar um coach, então estudamos um pouco, pegamos dicas com amigos e fizemos um processo autodidata), percebemos que os sonhos e metas não estavam alinhados. Não só não rolou com eles, como me separei pouco tempo depois e vendi minha parte da empresa (a separação não foi por conta do business coaching =)). Foi aí, ainda em 2009, que tive primeira lição sobre trabalho horizontal:

Para dar certo, é preciso que os sonhos e metas dos envolvidos estejam muito alinhados. É como casamento, só que sem sexo e com 5, 10, 15 envolvidos na mesma relação.

E bom… e nem um casamento feliz necessariamente dura para sempre.

Meu último grande job na Anexo foi a divulgação dos dois primeiros anos da Campus Party Brasil (2008 e 2009), o maior evento de tecnologia e cultura digital do mundo. Mudou minha vida. Acabei migrando totalmente para o digital e fui liderar a equipe de Social Media na agência CUBOCC em 2010. Depois, tive minha primeira passagem pela Garage IM, com o mesmo cargo, de 2012 a 2013.

Fui funcionária de novo por quase três anos mas, trabalhando no mundo digital, a coisa nunca é totalmente tradicional. Nesse período fui refletindo cada vez mais sobre a sociedade em rede, sobre como todas relações, inclusive as de trabalho, estão caminhando pra ser tão descentralizadas quando a informação. O projeto Nova Cara da Terceira Idade, que ajudei a fazer na Garage, me trouxe ainda uma perspectiva sobre como a comunicação é importante para, se não resolver, no mínimo problematizar questões da sociedade.

Em 2013, decidi apostar nisso de corpo e alma: pedi demissão na Garage e comecei a trabalhar na criação de um hub de profissionais que funcionaria de forma horizontal em projetos que pudessem melhorar o mundo de alguma forma. Escolhi chamá-lo de Agência Fervo e convidei para a empreitada a Denize Guedes, minha colega de faculdade, ex-funcionária da Anexo e a jornalista que havia dado pouco tempo antes uma matéria no Estadão sobre o projeto Nova Cara da Terceira Idade.

A gente tinha uma inquietude muito parecida, uma afinidade muito grande, talentos complementares, e vivemos um processo intenso de pouco mais de um ano tentando reinventar os modelos à medida em que os jobs iam entrando sem parar. Ou seja, numa ponta havia as entregas dos serviços de PR, Redes Sociais e Assessoria de Imprensa não-tradicional para projetos que contavam com a gente e não permitiam erro, e, na outra, a nossa necessidade de rever cada pedacinho dos processos pra não cair na armadilha de fazer tudo igual com nome diferente.

Sem chefe nem hierarquia, fizemos trabalhos de que me orgulho muito. Foram várias campanhas de crowdfunding bem sucedidas — Fica Brincante, Você Fiscal, A Conta da Copa é Nossa —, além de projetos para clientes como Antonio Nóbrega, Instituto Brincante, Instituto Alana, RodAda Hacker, a autora Andy de Santis e o Prêmio Abril de Publicidade.

Outras pessoas foram chegando e saindo, exatamente como a gente previa, pois a premissa básica da Fervo era/é o movimento e a transitoriedade. Hoje o grupo inclui Beatriz Poiano, Nara Lacerda, Mariana Leite, Carol Almirón e Jhony Arai, além de mim e da Denize com menos intensidade: a Denize foi totalmente para o lado disruptivo e hoje se dedica mais a projetos como Mordenize, Deslixe-se e vive principalmente de alugar seu apê no Airbnb) e eu…

De volta ao emprego

Confesso que há alguns meses comecei a sentir a mesma coisa que me desmotivou a buscar modelos alternativos de trabalho lá na Anexo. Por mais que as pessoas que a gente convidava para tocar os jobs com a gente estivessem cientes de que a ideia não era ter hierarquia e que as tarefas e processos só existiam para serem descumpridos à medida em que outras alternativas melhores e mais pessoais fossem se apresentando, isso não acontece de forma natural e indolor.

Dá um trabalho do cão colocar um monte de ser humano diferente pra funcionar coletivamente, de forma horizontal e em busca de um objetivo comum, quando se tem prazo pra entregar o trabalho, meta pra cumprir, conta pra pagar e filho para criar

A gente não está justamente reconhecendo que somos seres humanos com necessidades e habilidades diferentes? Então as coisas têm processos e timings diferentes e lutar contra isso seria aquele nosso maior temor: “fazer o mesmo com nome diferente”. E se para mim entregar na data combinada é fundamental e para o outro, dependendo do caso, dá para negociar? E se para ele desistir do trabalho no meio não é tão grave assim, já que tem um monte de gente para cobrir? O problema de quem é maior? De quem é a responsabilidade?

Muitas vezes os próprios clientes não entendiam: “não quero reunião com a sua assistente, quero me reunir com você, que foi quem eu contratei”.  E se eu dissesse que não existem assistentes na Fervo? Poucos estão realmente interessados no nosso modus operandi, os clientes estão geralmente comprando o resultado que oferecemos e a proximidade com a pessoa que fechou o contrato. Demos sorte do lado dos clientes, em geral eles entendiam, mas como tudo na Fervo a gente tinha que explicar, construir junto, ter paciência.

Foi então que me encontrei com o Max Petruccci, CEO da Garage, e com o Gus Borrman, VP de Criação, inicialmente pra contar em que pé estava a Fervo e pensar em possibilidades de parcerias. Vi que a Garage estava caminhando no mesmo sentido que eu com relação a buscar fazer cada vez mais comunicação com propósito – existe um nome pra isso lá que eu adoro ,“Shift Happens!”, uma provocação à mudanças que beneficiem a sociedade – e, ao final da conversa, percebi que existia ali uma possibilidade pra eu voltar a um emprego porém alinhada com os meus ideais. Senti que era a hora e fui, sem nenhuma sensação de fracasso. Ao contrário, com muita experiência pra agregar a uma empresa que está procurando “hackear” a propaganda.

Pelo que tenho visto, isso também trouxe um ganho para a Fervo. Sem a minha presença constante, que, na tentativa de organizar uma horizontalidade acabava verticalizando, o grupo finalmente pode existir organicamente. Deixei processos, cases, conectei pessoas e o caminho segue… mas agora, ah, agora sim o “Quem Somos” do site está correto: “Para nós é claro que não existe a entidade Fervo: somos uma rede de pessoas. Somos bolhas que se agitam, crescem, diminuem, incorporam-se, explodem… feitas da mesma matéria, ocupando a mesma panela, mas distintas e em constante movimento”.

 

Priscila Cotta, 37, é formada em jornalismo e usa as habilidades em comunicação para estratégias de social media, assessoria de imprensa, relações públicas e mobilização de comunidades. É mãe, feminista e praticante do zen budismo. Atualmente é Diretora de Comunidades e PR na agência Garage, do IMS Group, e uma das integrantes do coletivo Agência Fervo.

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