“Decidimos ouvir as crianças e descobrimos que elas não estão nada contentes com o mundo que estamos deixando”

Giuliana Bergamo - 5 abr 2024
Giuliana Bergamo (foto: Pablo-Saborido).
Giuliana Bergamo - 5 abr 2024
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Os analistas costumam ser categóricos: encontrar nossa criança interior tem um poder revolucionário no processo de autoconhecimento.

Qual seria o tamanho do impacto, então, se toda a sociedade se reconectasse com a infância?

Crentes de que ele é gigantesco, quatro adultos (um grupo do qual tenho orgulho de fazer parte) partiram para uma jornada ambiciosa: perguntar às crianças o que pensam sobre o mundo de hoje e, a partir das respostas, abrir um diálogo entre elas e nós.

Nascia, assim, em uma mesa de reunião do escritório da agência Bebok, o projeto “O mundo que sei”.

Nosso plano é, desde então, trazer a criança para o centro dos debates políticos e sociais. Queremos ouvir genuinamente o que têm a dizer e levar as mensagens para o maior número de pessoas, fazendo com que elas realmente transformem não só o mundo de hoje, mas o futuro que estamos construindo.

NUNCA ME AFASTEI DA MENINA QUE FUI E O UNIVERSO INFANTIL SEMPRE ESTEVE PRESENTE NA MINHA VIDA COMO MÃE OU JORNALISTA

Pessoalmente, acredito que tive poucos momentos na vida em que me afastei da menina que fui. Tenho sempre por perto meus cadernos e desenhos do tempo de escola e, na estante de livros, mantenho um espaço especial para meus infantis prediletos.

Recorro a Flicts, do Ziraldo, quando bate aquela sensação de desajuste. A Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, dediquei parte de uma pesquisa de mestrado. E aposto que A parte que falta, de Shel Silverstein, deixaria Freud com inveja

Também sou mãe de duas crianças, o que me obriga, há 13 anos, a mergulhar nas tendências, gostos, linguagem e tudo mais que envolve e compõe o mundo das crianças.

Além de tudo isso, como jornalista, já produzi reportagens e muitos outros conteúdos sobre infância, parentalidade e afins. 

Ainda assim – ou justamente por isso – quando recebi a mensagem de Paula Guedes para saber se eu toparia bater um papo a respeito de um projeto sobre infância, já imaginava que a tarefa não seria exatamente simples.

CONVERSAR COM MENINAS E MENINOS NÃO É SIMPLES. EXIGE UMA POSTURA MUITO ESPECÍFICA

Não nos conhecíamos, mas meu nome havia sido indicado a Paula pela educadora Ana Paula Yazbek, fundadora da escola espaço ekoa (escola de Educação Infantil) e minha fonte para reportagens há anos.

Ao telefone, Paula me contou sobre seus planos. Ao lado do sócio e irmão Fabio Guedes e do parceiro de trabalho Henry Grazinoli, sócio da produtora Social Docs, queria fazer um grande levantamento sobre a criança de hoje em dia e, a partir dele, produzir alguns conteúdos: um documentário e um podcast, no mínimo.

Precisavam de uma jornalista para cuidar da metodologia da pesquisa que daria o estofo para o projeto e da criação desses produtos baseada nos achados. 

Apesar da complexidade, a construção dos conteúdos não me pareceu nenhum monstro. É meu dia a dia, afinal.

E eu já sabia que estaria ao lado de gente mais do que preparada para isso. O desafio estava em abordar e ouvir as crianças.

Entrevistá-las não é tarefa para qualquer pessoa que se dedique a pesquisa ou reportagem. Ainda que estejamos falando de excelentes profissionais, com décadas de carreira, conversar com meninos e meninas exige uma postura muito específica

Nas vezes em que precisei fazer isso, até que me saí bem, mas mantive uma insegurança incomum a outros trabalho e uma certeza de que, se tivesse um preparo especial, o resultado poderia ser melhor.

Era preciso, portanto, encontrar quem realmente soubesse o que estava fazendo. 

A METODOLOGIA “ESCUTA SENSÍVEL”, DE ADRIANA FRIEDMANN, NOS AJUDOU A CAPTAR A VISÃO DE MUNDO DOS PEQUENOS

Já durante o período de criação do projeto, tínhamos claro que precisaríamos de um time de especialistas por perto, para nos dar amparo técnico.

Foi durante a composição do conselho que chegamos ao nome de Adriana Friedmann. Antropóloga, ela é especialista em infância com mais de quatro décadas de experiência. Desenvolveu a metodologia chamada escuta sensível.

Trata-se de uma versão da pesquisa etnográfica, em que o pesquisador ou a pesquisadora mergulha no universo do grupo a ser pesquisado. Só que, com crianças, em vez de fazer entrevistas ou perguntas objetivas, propõe ou apenas observa atividades, brincadeiras e outras experiências espontâneas do mundo infantil

Com Adriana, idealizamos um modelo específico para “O mundo que sei”. Durante mais de dois meses, uma equipe formada por quatro pesquisadoras e um pesquisador se dedicou a visitar cinco grupos de crianças em cinco regiões de São Paulo.

NOSSO PERCURSO OBEDECEU UMA ESPÉCIE DE ESCALA DE ACESSO A DIREITOS BÁSICOS

A ideia era ter um retrato o mais diverso possível. Eu e Adriana fomos a todos os locais pelo menos uma vez.

Não foi uma escolha pensada, mas, ao final das minhas visitas, percebi que meu percurso obedeceu uma espécie de escala de acesso a direitos básicos, como saneamento, saúde, educação.

Comecei no local de maior vulnerabilidade, a Aldeia Indígena Guaraní Tekoa Pyau, no Jaraguá, e terminei naquele onde as crianças esbanjam privilégios, a escola privada Wish School, no Tatuapé

Entre os dois territórios, passei pelo Horizonte Azul, no Jardim Ângela, seguido do Lar das Crianças, no Alto da Boa Vista, e, então, pela Escola Municipal de Ensino Fundamental Amorim Lima.

OUVIMOS AS CRIANÇAS FALAREM DE LUTO, VIOLÊNCIAS E ABUSOS EM GERAL

Em todos esses lugares, ficou claro para mim que, em um processo de escuta, é impossível escapar das dores. Elas se destacam em qualquer situação.

É como se, ao estarmos disponíveis para ouvir, as crianças corressem para contar aquilo que as aflige. Como se encontrassem em nós pessoas neutras, que não fazem parte do círculo social, familiar ou escolar em que elas estão inseridas e, portanto, parecem ouvidos seguros.

Para nós, falaram de luto, de violência, de abusos em geral. Ficou claro também que, não importa a condição socioeconômica, nossas crianças estão conscientemente expostas à violência

Paralelamente à pesquisa etnográfica com crianças, construímos junto a um parceiro, o Studio Ideias, uma pesquisa quantitativa com mil cuidadores (pais, mães ou o principal adulto responsável pela criança) de todo território nacional.

O levantamento incluiu uma etapa qualitativa que incrementou as bases para a construção do formulário distribuído aos participantes.

Nossa ideia foi não só entender qual a percepção das famílias sobre a infância atual, mas tentar identificar até que ponto o diálogo entre criança e adulto está funcionando dentro das casas pelo Brasil.

NA SEQUÊNCIA, PRODUZIMOS UMA SÉRIE DOCUMENTAL E UM PODCAST ABORDANDO NOVE GRANDES TEMAS

O processo foi além. A escuta infantil não se encerrou com o trabalho da equipe de Adriana. Como projeto, encaramos a produção da série documental como a segunda fase que derivou desta primeira.

Foram os temas trazidos pelas crianças que participaram da pesquisa etnográfica, afinal, que deram o norte para a produção do roteiro e da direção da série.

A partir deles, agrupamos em nove grandes temas os assuntos trazidos por elas. Cada um deles se tornou o argumento para os episódios da série e, mais tarde, para o podcast em que debati os depoimentos das crianças com especialistas. 

Em entrevistas individuais, discutimos os achados de todo o projeto com nosso conselho de especialistas. A análise criteriosa de todo o material que produzimos faz parte do relatório de pesquisa.

A versão editada está disponível gratuitamente no site de “O mundo que sei”.

NOSSAS CRIANÇAS NÃO ESTÃO NADA CONTENTES COM O MUNDO QUE ESTAMOS DEIXANDO PARA ELAS

Em síntese, chegamos a uma conclusão preocupante: nossas crianças precisam de atenção. E são elas mesmas que nos dizem isso.

Querem ser ouvidas e têm opiniões fortes e surpreendentes sobre os principais assuntos do nosso tempo. Não estão, por exemplo, nada contentes com o mundo que estamos deixando para elas. Têm consciência do que vem causando desastres ambientais, desigualdade social, guerras e a violência que permeia nossas relações

Também são críticas quanto à escola que é oferecida para elas e sabem que exageram no tempo que dedicam à internet e aos eletrônicos em geral.

E talvez o mais preocupante: elas têm muita clareza dos impactos negativos que tudo isso causa a elas e ao futuro da humanidade. “A infância está sendo amputada”, disse o pediatra Daniel Becker na entrevista que gravamos para o podcast.

Se isso não é um grande chamado para nós, adultos, sobre o mundo que estamos deixando para nossos descendentes, eu realmente não sei o que seria.

QUEREMOS APROVEITAR ESSES ACHADOS PARA CONSTRUIR UM PLANETA MAIS TRANQUILO, SAUDÁVEL E JUSTO

Para nossa felicidade, o projeto começa a ganhar a atenção que desejamos. Canais de televisão, streamings e outros possíveis parceiros têm nos procurado interessados no que nossas crianças têm a dizer.

Enquanto projeto, continuaremos nos dobrando para diminuir a estatura do ouvinte e elevar o nível do debate. Estamos atentos, preocupados e, sobretudo, motivados a usar tudo isso para continuar o trabalho de escuta

Temos também a ambição de aproveitar nossos achados para abrir diálogos familiares, escolares e em outras esferas públicas.

Desejamos ainda que essas conversas ganhem amplitude e contribuam para a criação de iniciativas capazes de construir um planeta mais tranquilo, saudável e justo para todos e todas.

E esperamos, com muito otimismo, que mais gente entre nessa conosco. 

 

Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em literatura e crítica literária. Já passou por redações dos principais veículos de imprensa do Brasil, como Veja, UOL, Claudia e BandNews FM. Há uma década, dirige grandes projetos de conteúdo. Foi responsável pelos prêmios femininos Claudia e Inspiradoras, pela pesquisa e roteiro do Museu da Natureza, no Piauí. É diretora de conteúdo de O Mundo Que Sei, um panorama do Brasil contemporâneo pela voz das crianças.

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