Ela não se deixou paralisar pela crise: escreveu e lançou (em 19 dias) o primeiro romance sobre a pandemia no Brasil

Gisele Mirabai - 3 jul 2020Gisele Mirabai é autora de cinco livros, entre eles "Ana de Corona" e "Machamba".
Gisele Mirabai é autora de cinco livros, entre eles "Ana de Corona" e "Machamba".
Gisele Mirabai - 3 jul 2020
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por Gisele Mirabai

Quando a quarentena chegou e com ela a necessidade de ficar em casa 24 horas por dia, sete dias na semana, 31 dias por mês, eu me perguntei: mais?

A sensação não era de ruptura, mas de continuidade, afinal eu já fazia home office há sete anos, desde o nascimento da minha primeira filha.

Sinto que esse foi o grande facilitador para eu conseguir escrever, editar, publicar e divulgar o Ana de Corona, o primeiro romance sobre a pandemia do Brasil, em plena quarentena. Eu me sentia totalmente preparada para enfrentar o isolamento

Desde que me tornei mãe, fiz a opção de me dedicar com exclusividade à escrita e ao ensino remoto, para poder trabalhar em casa.

Troquei uma vida profissional agitada que contava com produção de cinema, viagens pelo Brasil, expedições de filmagem pela Ásia e atuação em sets de televisão por uma vida no sítio, em que eu amamentava, dava aulas por Skype e, sobretudo, escrevia, escrevia, escrevia.

Durante esse período, aprendi a fazer ghost writers (quando você escreve o livro para que outra pessoa assine), traduzir roteiros de desenhos animados do inglês para o português, dar consultorias de texto para mestrandos, doutorandos, pessoas que querem se tornar escritores ou apenas escrever melhor.

Aprendi também a publicar meus próprios livros. De fato, eu já vinha fazendo essa transição há algum tempo. Gravei novelas da Globo dos 23 aos 28 anos e, entre uma cidade cenográfica e outra, lá estava eu mostrando para os colegas de elenco o primeiro livro que eu tinha publicado, Guerreiras de Gaia, uma história de fantasia sobre proteção ambiental.

Quando a gravação acabava, ao invés de socializar com os amigos de elenco, lá ia eu pegar duas horas de trânsito mais uma balsa para Niterói, onde fiz minha pós-graduação em Literatura pela Universidade Federal Fluminense.

Assim, quando a minha filha nasceu, o cenário para essa vida bucólica e 100 por cento online já estava montado. Acontece que nem tudo são flores, nem mesmo em uma vida de sítio.

Comecei a sentir falta de trabalhar com gente ao vivo e a cores, de calçar sapato, até de andar na rua para pegar o metrô

Nesse meio tempo tive outro filho e, mesmo voltando a morar em um apartamento em São Paulo, a rotina de trabalhar em casa parecia ter vindo para ficar e durar longos anos, ainda que meus filhos estivessem amamentados, crescidinhos e frequentando a escola.

O home office pode ser muito produtivo, mas também traz a sensação de se tornar inexistente. Lembra da máxima do filme Na Natureza Selvagem, “a felicidade só é real quando compartilhada”?

Sentia falta de dividir ideias, ambientes de trabalho e xícaras de chá com outras pessoas. De vez em quando, marcava um café com uma amiga da escrita e me aprontava como se fosse para a festa.

Resolvi então alugar uma salinha e trabalhar fora de casa, mas de nada adiantou. Pegava trânsito e quando chegava no escritório, lá estava eu, sozinha de novo com o meu computador.

Percebia cada vez mais que a questão não era sobre onde, a casa, o home office, mas sobre quem, sobre estar perto das pessoas

Comecei a desenvolver projetos de roteiro audiovisual com autores parceiros, além de um trabalho de pesquisa e escrita com um grupo que se encontrava pessoalmente uma vez por semana. Finalmente! Tudo parecia no rumo certo e a sensação do isolamento poderia se isolar de vez da minha vida.

Foi então que, três dias após uma viagem ao Rio para uma reunião de roteiro, quando aquela vida mais agitada com viagens e sets e conversas de pé em frente à máquina do cafezinho parecia voltar, a quarentena chegou.

Os projetos foram paralisados.

Os contratos suspensos.

As reuniões adiadas.

Lá estava eu de novo, em casa de pijama o dia todo, com meus dois filhos sem escola. Levada pelo medo em massa, comecei a ler notícias sobre a pandemia em disparado, até chegar em um artigo da USP dizendo que o vírus pode permanecer no ar por um bom tempo, nas partículas mais leves dos aerossóis, e serem levados pelo vento.

Aquilo me chocou. Não bastava estar em casa de novo o tempo inteiro, ainda tinha chance de um vizinho espirrar pela janela e eu ficar doente?

Depois de uma noite sem dormir, obcecada com essa simples imagem hipotética, eu me levantei para escrever um texto. Ou eu passava o dia todo letárgica, ou eu me sentava para compartilhar com as pessoas alguma ideia sobre o que estava acontecendo. Precisava com urgência comentar, trocar, conversar e, principalmente, estar junto. Mesmo de longe. A ideia era escrever um blog, mas o texto já veio com cara de romance.

“Ana de Corona” está à venda na Amazon por 39,90 reais.

Nesses anos de “isolamento da escrita”, publiquei o meu primeiro romance, Machamba, vencedor do 1º Prêmio Kindle de Literatura e finalista do Jabuti. Dei início a um outro romance e escrevi algumas narrativas longas, em nome de outras pessoas.

Durante todo esse tempo debruçada no computador, orientei tantos textos, aprendi tantos assuntos, fiz tantas pesquisas, que cada palavra virava uma página, cada tema, um capítulo, cada vírgula, um ponto de virada.

Ao final daquele primeiro dia de escrita, eu já tinha um arquivo com o resumo de trinta capítulos e, o principal, uma personagem, Ana, uma ambientalista que tem sua bolsa de pesquisa cortada pelo governo.

Ao abrir a janela em busca de inspiração para escrever sua tese, ela pega coronavírus dentro da própria casa, é claro, através do vizinho do andar de cima que espirra pela janela. A partir do contágio, Ana é levada de carona por um planeta já há tempos contaminado, em termos sociais, políticos e ambientais.

Todas as informações que eu aprendi nos últimos anos foram aproveitadas no livro, os conteúdos, as práticas e as técnicas de escrita.

Até mesmo a chuva de dados sobre a pandemia não me paralisou, pelo contrário, me incentivou a abordar a realidade de um jeito literário, ficcional, criativo e em tempo real. Mas minha principal ferramenta nesse empreendimento foi ter aprendido a trabalhar dentro de casa, e por tanto tempo.

O livro em si foi escrito em nove dias. Doze leitores beta leram os originais e emitiram suas opiniões. Com mais uma semana de escrita, acatei as sugestões, fiz uma nova edição, seguida de mais duas leituras cuidadosas e três processos de revisão profissional.

Contratei o revisor, o capista e eu mesma fiz o e-book. Após exatos dezenove dias – desde aquela primeira manhã em que eu me sentei para escrever – o romance foi criado, editado, publicado e lançado na plataforma da Amazon, com milhares de downloads, repercussão na imprensa e uma ótima recepção dos leitores.

Os anos de home office aprendendo a me virar deixaram ainda uma lição valiosa: publicar os meus próprios livros, não apenas no digital, mas também no mundo físico.

De forma remota, contratei a diagramação e a impressão pela gráfica. O envio do livro? Pelos correios, autografado e direto para as mãos dos leitores, que não precisam sair de casa.

Durante a quarentena, o Ana de Corona me manteve tão ocupada que nem precisei lamentar a ausência da rua. Toda essa longa experiência de isolamento voluntário dos anos anteriores serviu para me fazer agir rápido, à distância e com qualidade.

Como disse um leitor, fiz do limão uma limonada para matar a minha sede de comunicação e contribuir para refrescar os leitores com uma história de ficção, em meio a tantos acontecimentos difíceis.

Agora, conto os dias para que a gente possa finalmente brindar juntos essa limonada. Sonho em escutar o tim-tim dos copos. Mas, definitivamente, não tenho pressa. Ficarei de quarentena o tempo que precisar. Só espero que não sejam mais sete anos.

 

Gisele Mirabai é escritora e roteirista de cinema e tevê. Tem cinco livros publicados, dentre eles, Machamba (Ed. Nova Fronteira), romance vencedor do 1º Prêmio Kindle de Literatura e finalista do Prêmio Jabuti, e Ana de Corona, o primeiro romance do Brasil sobre a pandemia.

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