“Eu não me arrependo de nada do que fiz na minha vida. Eu faria tudo de novo porque foi uma questão de coragem. Todo mundo me acha um herói corajoso. Não, Não sou.”
A declaração acima – de João Nery, homem transexual pioneiro na cirurgia de redesignação sexual no Brasil – abre o primeiro episódio de uma websérie também pioneira, disponível gratuitamente no YouTube: LGBT +60: Corpos que Resistem.
Por trás das lentes, do roteiro e da ideia da série está o jornalista Yuri Alves Fernandes, 30. Mineiro de Ipatinga (a cerca de 200 quilômetros de Belo Horizonte) e noveleiro assumido desde criança, ele sempre soube que o audiovisual seria o seu futuro.
Na infância, mesmo quando parecia entretido com outras brincadeiras, internamente Yuri imaginava folhetins:
“Com 8 anos de idade, eu ia brincar sozinho de bola – mas, na minha cabeça, estava criando novela, série, reality show, programas… Sempre tive essa cabeça de criar personagens”
Na escola, em certo momento, Yuri começou a sofrer bullying. Certamente não por causa de sua tendência à imaginação, e sim por outro aspecto de sua identidade. Aos 13, ele se entendeu gay.
“As pessoas sempre me chamavam por apelidos pejorativos, mas eu ainda não entendia aquilo. Era uma coisa que não estava tão clara. Mas aos 13 anos vem despertar. Aí eu entendo e penso: olha, realmente sou isso que as pessoas falam…”
Dos 13 aos 16, Yuri viveu um triste período de negação. Foi quando decidiu, de fato, ficar com outro garoto e iniciar a vida sexual.
Em paralelo, havia o contexto familiar. Único menino da casa, com duas irmãs mais velhas, Yuri foi se dando conta do desencontro entre os seus desejos e as expectativas da mãe.
“Era meio que um tabu, mas ela dava indícios até com palavras fortes, como ‘filho meu é homem, filho meu não vai ser gay’… Eu pensava que não podia ser gay, cresci com isso”
A falta de uma conversa franca dava a Yuri a certeza de que sair do armário seria algo muito difícil, e não só para ele. “Para a minha família seria um choque.”
Assim, a possibilidade de fazer faculdade fora de Ipatinga acabou sendo decisiva para o ponto de virada na vida de Yuri. Aos 18, ele foi cursar jornalismo na Universidade Federal de Juiz de Fora.
Na faculdade, Yuri começou a dar vazão, em trabalhos e artigos, a seu interesse pela pauta LGBT+:
“Até em artigos acadêmicos eu unia minhas duas paixões, novela e diversidade. Falei sobre o impacto do Félix [personagem de Mateus Solano que protagonizou o primeiro beijo gay masculino numa novela da Globo] de ‘Amor à Vida’ na vida de pessoas LGBT”
No meio do curso, Yuri se candidatou ao Programa Estagiar, da Rede Globo. E foi aprovado.
No Rio de Janeiro, estagiando na Globo, Yuri passou pelos programas Bom Dia Brasil e Fantástico. Depois, foi trabalhar no extinto site Ego, que tinha como foco a cobertura de celebridades.
Em 2017, ele deixou o Ego mas resolveu permanecer no Rio (mesmo com o custo de vida mais alto em relação à terra natal). Pegou o dinheiro da rescisão e fez um curso de roteiro na Academia Internacional de Cinema.
E, como em todo bom roteiro, estabeleceu seu próprio turning point, abrindo um novo arco dramático em sua caminhada.
Para se manter no Rio, Yuri alugou, por 550 reais por mês, um canto – separado por uma cortina na sala da casa de Dudu, um amigo gay 60+. (Mais tarde, Dudu e o marido, Flávio – cada um morava no seu próprio apartamento – estrelariam um episódio na segunda temporada da websérie.)
No mesmo ano, Yuri entrou para a plataforma #Colabora – Jornalismo Sustentável, onde deu continuidade, por meio do jornalismo, ao interesse pelas pautas LGBT+ que já demonstrava desde a faculdade.
O OLHAR CARINHOSO PARA OS MAIS VELHOS VEM DESDE A INFÂNCIA E SE REFLETE NA WEBSÉRIE
No #Colabora, em uma reunião de pauta, Yuri sugeriu uma reportagem abordando idosos LGBT+. Aquela ideia, claro, seria a semente para a websérie “LGBT +60: Corpos que Resistem” – a primeira temporada foi produzida em 2018.
Yuri conta que seu olhar atento para os mais velhos foi moldado pela relação carinhosa com as avós. Aos 14 anos, ele costumava ligar para a mãe, mais “avoada”, para lembrá-la de que estava na hora do remédio da avó.
“Juntou esse carinho, acho que até inconscientemente, com a própria vivência como homem gay. Lembrei de coisas que minha mãe falava no passado como ‘tudo bem você ser gay, mas não seja um gay velho; depois você muda’…”
Segundo o IBGE, 2,9 milhões de brasileiros se declararam homossexuais ou bissexuais em 2019 (ano da pesquisa, divulgada em 2022). O número equivalia a 1,8% da população maior de 18 anos; e, dentro dessa amostragem, 0,2% tinham 60 anos ou mais.
Entrevistar essas pessoas e ouvir como eles e elas vivem a sua sexualidade na terceira idade é a proposta da websérie. Para produzir a primeira temporada, Yuri recorreu a grupos de Facebook para chegar aos personagens.
PARA TIRAR A PRIMEIRA TEMPORADA DO PAPEL, FOI PRECISO OUVIR ALGUNS “NÃOS” E INSISTIR NO PROJETO
No início, João Nery era o único personagem que Yuri tinha em mente. A partir daí, seguiu com suas pesquisas, vasculhando a internet atrás de reportagens sobre o tema e ONGs ligadas à causa.
As entrevistas eram editadas em vídeos curtos, com cerca de 6 minutos. Havia, no mix de pessoas entrevistadas, uma preocupação em refletir a diversidade, ouvindo gays, lésbicas, transexuais masculinos e femininos.
Convencer as pessoas a se abrirem foi um desafio:
“Na primeira temporada, ouvi alguns nãos, do tipo ‘Eu já tive uma vida de tanto preconceito e agora eu tô sossegado…’, ‘não quero me expor porque eu já consegui o nível de estar em paz comigo mesmo’…”
Na segunda temporada, o foco foram os casais. Yuri conseguiu contratar um cinegrafista que tinha uma pequena produtora para auxiliar na captação de imagens, enquanto seguia cuidando, pessoalmente, das etapas de pesquisa, produção e edição do material.
A verba do #Colabora bancava o projeto. Se Yuri precisasse viajar para realizar uma entrevista, procurava se hospedar na casa de amigos.
A iniciativa rendeu reconhecimentos, como o Prêmio Longevidade Bradesco Seguros, na categoria Jornalismo Web (2019); o 20º Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade LGBT+, na categoria Audiovisual e Artes Cênicas (2021); e uma Menção Honrosa na Mostra Cine Diversidade Rio de Janeiro (2021).
Com a pandemia de Covid-19, a série foi suspensa e retomada apenas em 2023. Na volta, Yuri já almejava algo diferente, com orçamento maior e que representasse uma virada do jornalismo para o cinema.
Ele inscreveu o projeto na categoria de websérie do edital da Rio Filmes e foi contemplado. Para encarar a nova linguagem, contratou a produtora do amigo Gab Meinberg, um homem trans:
“Podemos pensar em outras locações, sair desse modelo apenas da entrevista e o entrevistado para ir em outros lugares façam sentido para ele. A gente consegue ter verba, equipe e estrutura para deixar mais atraente”
No hiato pandêmico, Yuri foi reunindo nomes que gostaria de entrevistar. Caso da drag queen Luiza Gasparelly, que fecha a terceira temporada. Houve também uma preocupação em abraçar a pauta racial; logo, o jornalista procurou pessoas pretas LGBT+ para contar suas histórias.
Enquanto projeta escrever um livro e realizar um documentário em torno do material coletado, Yuri revelou, em primeira mão ao Draft, que “LGBT +60: Corpos que Resistem” acaba de quebrar uma nova barreira e chegar à televisão.
“A série será exibida no Canal Futura, em maio, para casar com o Mês de Combate à LGBTfobia”, festeja o jornalista. “Minha meta é chegar ao Globoplay [serviço de streaming do grupo Globo].”
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