Nos últimos anos, os jogos de apostas online vêm proliferando no Brasil. As chamadas “bets” hoje patrocinam desde programas de TV e influenciadores a grandes clubes de futebol e os principais campeonatos do país.
Se por um lado a atividade (regulamentada desde o início do ano) vem sendo popularizada na esteira desse investimento pesado em patrocínio, por outro acumulam-se relatos de gente que perdeu dezenas ou mesmo centenas de milhares de reais jogando online.
Mestre em psicologia e especialista na área da dependência de games — que a Classificação Internacional de Doenças, da Organização Mundial da Saúde, define como transtorno dos jogos eletrônicos —, o psicólogo clínico Gabriel Nobre, 30, passou a tratar cada vez mais do assunto por demanda de seus pacientes.
“Foram surgindo mais problemas relacionados a isso. E aí fui conhecendo mais esse mundo.”
O próprio Gabriel tem uma história de dependência em videogames, que ele resolveu cortando o seu acesso aos jogos. A partir da experiência, enxergou nesse tipo de transtorno um campo atraente para sua pesquisa e atuação.
Hoje, além de atender em consultório, Gabriel comercializa online um curso e um ebook para pessoas que querem lidar com o vício. Ele também colabora com o Aposta Legal Brasil, uma plataforma de origem europeia que faz análises sobre a segurança e a conformidade com a lei de alguns dos sites de apostas que atuam no país.
O Aposta Legal Brasil prega algo na linha do “jogo responsável”. Na plataforma, Gabriel escreve, por exemplo, sobre como identificar um possível transtorno, quando buscar ajuda — e como jogar de forma mais segura.
Mesmo avaliando que jogos de apostas são um risco em qualquer situação, o psicólogo defende o que vê como a importância de estar num espaço que promove o hábito de jogar. “[As pessoas] precisam ter consciência de onde estão se metendo, dos problemas que podem acontecer e talvez até tentar manter isso de forma segura.”
Apostar em plataformas não regulamentadas, diz, é ainda mais arriscado. Diferente das bets, que funcionam com cota fixa, em sites como o “Jogo do Tigrinho” o usuário não tem como saber quanto pode perder. E como muitas dessas plataformas estão hospedadas fora do Brasil, regulamentar e investigar os responsáveis são tarefas complexas.
Na entrevista com o Draft, Gabriel Nobre conta como identificar se você tem um transtorno ligado aos games e a sua visão sobre a regulamentação ideal para combater a dependência dos jogos de apostas:
Vemos cada vez mais casos de pessoas viciadas em jogos e apostas. Como a chegada das plataformas de apostas esportivas e cassinos online impactaram esse panorama?O vício em games começou a ser debatido no meio acadêmico junto com o surgimento da internet e do computador, ali na década de 1990.
A questão das apostas, hoje, tem se intensificado bastante porque aqui no Brasil houve uma abertura, ou seja, as empresas podem chegar e abrir uma casa de apostas sem muita regulamentação.
(A lei que visa regulamentar os jogos foi sancionada pelo presidente Lula só no fim de dezembro de 2023.)
Isso se alastrou de um jeito que, em qualquer celular, você instala um aplicativo e começa a apostar
Apostas são bem antigas, com casas lotéricas, jogo do bicho… sempre tivemos várias práticas. Mas hoje, com o online, a coisa vem se intensificando.
No seu caso, em que momento percebeu que estava viciado ou tinha um transtorno ligado aos jogos?
Eu jogava videogames desde muito pequeno. Sou da geração millennial, que ganhou um Super Nintendo quando criança. E aí minha área de pesquisa e atuação sempre foi voltada para jogos eletrônicos.
Então, na faculdade de psicologia, comecei a me debruçar sobre o tema. Fiz o meu TCC e depois mestrado sobre isso também.
Atuei como psicólogo clínico, sempre trabalhando nessa parte de vício em games – focado em videogames e jogos eletrônicos. Comecei a atender a questão das apostas pela demanda de pacientes, porque foram surgindo mais problemas relacionados a isso. E aí fui conhecendo mais esse mundo.
Qual costuma ser o caminho para sair do vício? E qual foi o seu?
O meu caminho com vício em videogames foi bem autodidata. Porque eu ia estudando, e aí via o que fazia sentido na minha vida. Chegou um momento em que eu falei: cara, está tudo batendo, tenho todos os sintomas.
E aí, por decisão própria, eu entrei em abstinência total. Deletei todas as minhas contas em jogos online, vendi meu computador e troquei por um notebook mais simples. Fiz o que eu chamo de erguer muralhas, cortei completamente o contato com jogos. Aí era impossível jogar
Com isso, fui tendo remissão de sintomas e melhorando. Mas, quando vou tratar pessoas, nem sempre a gente usa essa abordagem mais radical. Porque a gente entende hoje que o problema não são os jogos, e sim as consequências negativas de jogar.
Então o que eu monitoro são os sintomas e indicativos de que aquilo está sendo um problema na vida da pessoa. Eu mostro gráficos, faço avaliações etc., e ela vai percebendo e começando a assumir controle sobre o comportamento dela.
Isso em todas as abordagens: tanto para jogo patológico, que é o vício em apostas, ou jogos eletrônicos, quanto pornografia e todas as dependências comportamentais, quando a pessoa vicia num comportamento.
Você já estudava psicologia quando identificou que estava com o transtorno?
Eu já era estudante, estava na faculdade e tinha interesse em trabalhar como psicólogo clínico.
Era 2014, estavam começando a surgir pesquisas mais aprofundadas a respeito do vício em jogos eletrônicos. Foi nesse momento que comecei a ver as pesquisas sendo publicadas e achei interessante.
Hoje estou na prática, saí da carreira acadêmica, não faço mais pós-graduação. Fiz o mestrado e optei pela atuação clínica mesmo, ajudando as pessoas.
Quais os principais sintomas do transtorno? E que efeitos essa dependência tem no cérebro?
Em termos de sintomas, a gente pode classificar seis principais. O primeiro deles é modificação de humor, quando você, ao apostar, sente uma coisa diferente, que não sente fazendo mais nada. Você fica mais empolgado, se sente feliz, é algo prazeroso.
Quando você tem a modificação de humor, automaticamente aparece um segundo sintoma, que é a saliência. Ou seja, você começa a pensar mais sobre os jogos e, como consequência, acaba jogando com maior frequência. E disso vem o terceiro sintoma, que é a tolerância.
Quanto mais você joga, mais você precisa jogar para ter aquela mesma sensação de modificação de humor. É como começar a tomar café, quando uma xícara é suficiente, já te dá a sensação que você busca. Mas depois de um tempo, você aumenta para duas, três…
Isso pode acontecer com qualquer substância química, mas também com comportamentos. Quando a pessoa começa a ficar tolerante, aposta quantias cada vez maiores, passa a apostar mais vezes, com mais intensidade.
Depois disso, a gente tem outros três sintomas, que indicam que há um problema.
O primeiro deles é o conflito, quando o comportamento de apostar prejudica outros setores da vida. Então você começa a ter conflitos com familiares e amigos, pode ter problemas de performance no trabalho, problemas do sono. No caso das apostas, também entram os problemas financeiros, o principal motivo da procura por tratamento.
O quinto sintoma é o efeito de retirada. Se a pessoa não pode realizar aquele comportamento por um motivo qualquer, começa a se sentir inquieta, irritada, ansiosa ou com muito tédio. Em casos mais graves, pode ter náusea e dor de cabeça. Da mesma forma que acontece com uma substância, ela começa a ter sintomas de abstinência
Por último vem a recaída, quando a pessoa não consegue assumir controle sobre o comportamento dela, sempre acaba voltando para o padrão anterior. Tenta ficar sem apostar por um tempo, mas retoma com os mesmos sintomas, saliência, modificação de humor, perda financeira etc.
Você falou das apostas como jogo patológico. Como é essa diferenciação?
O jogo patológico surgiu nos primeiros manuais. Hoje em dia se entende como transtorno do jogo no CID [Classificação Internacional de Doenças]. Isso indica que as pesquisas estão sendo feitas e continua havendo uma mobilização do meio acadêmico em busca de entender esse fenômeno e tratar o problema.
Existe uma diferença entre transtorno e doença. Por exemplo, você tem sintomas de Covid e um teste crava que está com o vírus. Ou seja, uma doença você consegue diagnosticar através de exame laboratorial, determinando a causa.
No transtorno, a gente não tem um conhecimento aprofundado a ponto de saber quais são as causas, até porque as causas de transtornos mentais muitas vezes são multidimensionais, variadas. Uma pessoa pode ter sintomas depressivos, mas estar com anemia ou hipotireoidismo, pode ter outros problemas. O vício em apostas é entendido como transtorno mental.
Como o vício em jogos de apostas se compara com outros vícios e transtornos?
Uma coisa que acontece bastante é um comportamento surgir para compensar o sintoma de outro transtorno.
Para ilustrar, se tem uma pessoa que está depressiva, com humor bem baixo, como forma de compensar esse desânimo, ela pode buscar um prazer imediato, como as apostas. Elas dão aquela empolgada, uma euforia momentânea.
Uma pessoa com ansiedade pode acabar recorrendo a esse comportamento como forma de relaxar ou de esquecer os problemas. E chega um ponto em que esse comportamento compensatório foge ao controle e começa a ter consequências negativas
Aí sim a pessoa tem como se fossem dois transtornos, o problema com apostas e um transtorno depressivo ou ansioso
Têm saído notícias sobre menores de idade que começam a apostar super cedo. O transtorno é ainda mais arriscado para os jovens?
Sim, com certeza. Não à toa, em vários países da Europa, é proibido qualquer tipo de aposta, até para adultos. E quando é permitido, é sempre para maiores de idade.
Quando a gente fala de cérebro, tem uma região chave que fica bem na testa, chamada córtex pré-frontal, muito importante no autocontrole, no planejamento, na atenção, no foco, e na atitude de frear impulsos. Só que é a região que mais consome energia do cérebro e mais demora para amadurecer. Só em torno dos 25 anos ela vai estar 100% formada e madura.
Num adolescente ou criança, a capacidade de automonitoramento, de autocontrole é muito menor, porque ele não tem essa região tão fortalecida, o cérebro ainda não está pronto para isso
Então, é realmente perigoso nessa idade, mais do que para os adultos.
Você hoje é colaborador do site Aposta Legal, que informa sobre esse tipo de jogo. Como funciona e qual a proposta da plataforma?
O Aposta Legal é uma empresa europeia. A intenção deles é instrumentalizar o jogador para que ele faça as coisas da forma mais correta possível. Eles me chamaram inclusive para promover o jogo responsável. É quando a pessoa tem total consciência dos problemas que aquilo pode acarretar.
Quando a gente fala em jogo responsável, pelo menos três instituições têm um papel importante. Primeiro, o governo, que precisa regulamentar.
A segunda são as empresas, que devem respeitar as regras e prover ferramentas de monitoramento e autogestão para os jogadores. Por exemplo, definir um orçamento máximo que pode ser apostado diariamente e travar certas apostas. Definir um limite significa ter controle sobre o comportamento.
O terceiro ponto é o usuário: ele tem que estar ciente dos riscos, direitos e deveres que tem enquanto jogador. O intuito do Aposta Legal é trazer essas informações para a população e reunir plataformas interpretadas como seguras, com avaliações e análises
Entre os colunistas, a gente tem advogados que falam sobre essa parte legal. Eu, como psicólogo, falo de sinais de alerta, sintomas, como manter isso de forma saudável e a partir de que ponto buscar ajuda. E tem as pessoas que abordam as casas de apostas, fazem análises.
Ao mesmo tempo, existe ali uma indicação para pessoas apostarem. Tem alguma contradição nisso em relação ao seu trabalho? Você não é contra o jogo em si?
Eu não aposto, nunca me envolvi com apostas. Não é uma coisa que recomendo fazer. Mas, a partir do momento em que isso é liberado pelo governo, as pessoas vão fazer. Já estão fazendo. Elas precisam ter consciência de onde estão se metendo, dos problemas que podem acontecer e talvez até tentar manter isso de forma segura na vida delas.
A gente tem hoje no Brasil as bets esportivas, que patrocinam times, eventos e foram regulamentadas. Há também jogos de aposta online como o Jogo do Tigrinho; esses não têm regras claras e muitas vezes não informam o quanto você pode ganhar ou perder. Quais são os riscos?
Se você está se envolvendo em qualquer tipo de jogo de apostas ou cassino, automaticamente está correndo risco.
Os cassinos já existem há muito tempo, de forma física ou digital, e sempre foram muito lucrativos. Tem que ter um motivo por trás disso. Então, se está se metendo nisso, você já corre risco.
Você falou de uma plataforma digital que não tem ligação nenhuma com algum fenômeno da vida real – diferente de uma plataforma de apostas ligada a jogos de futebol.
No Jogo do Tigrinho ou qualquer outro [do tipo], você está nas mãos de um algoritmo desenvolvido por alguém. Então, pode ser que haja ali uma série de tendenciosidades para gerar lucro para a casa de apostas
Por isso tem esse monte de investigações. A regulamentação é bem difícil porque a internet é meio terra de ninguém.
Na sua visão, qual a regulamentação necessária para que os jogos de apostas aconteçam de forma mais responsável no Brasil?
Isso é bem delicado. São necessárias medidas que forneçam controle para o jogador, e elas têm que ter um design muito bem feito, porque precisam ser à prova de sabotagens.
Se uma pessoa se empolga e quer apostar mais, tem que ter uma trava para ela não se sabotar. E isso seria intrusivo para o usuário, ele seria impedido de fazer algo. Por isso é delicado. Só que, se não [houver uma trava], as pessoas vão continuar perdendo o limite.
Tem alguns casos de intervenção em que, pelo menos durante um tempo, a solução é impedir o acesso ao dinheiro. O controle financeiro fica por responsabilidade de outro familiar, porque qualquer dinheiro que cair na mão daquela pessoa, ela vai acabar apostando
Lidar com isso não é fácil, pode gerar até conflitos com direitos humanos. A minha posição é que tem que ter um certo nível de controle, uma regulamentação a ponto de impedir a pessoa de se prejudicar.
E isso precisa vir do poder público, porque as empresas só vão fazer se forem obrigadas. Para elas não é interessante, não é lucrativo. Ainda vão ter que arrumar mão de obra para desenvolver isso. Então o governo tem que entrar forte nesse ponto, senão vira bagunça.
É possível participar de jogos de aposta de forma saudável? O que seria o ideal?
Teoricamente, o que vai definir se a pessoa está saudável ou não são os sintomas. Então, se está apostando e não tem aqueles seis sintomas que citei, tudo bem.
Só que, na prática, o que a gente vê é que as consequências negativas sempre vão estar presentes. O que muda é a intensidade delas e o quanto afetam a vida da pessoa. Até certo nível, pode ser uma questão de escolha, de estilo de vida. Mas depois de um certo ponto, passa a ser um problema de saúde mental.
Eu pessoalmente opto por não me envolver com nenhum tipo de aposta. Alguns pacientes meus tiveram perdas, depois se recuperaram e nunca mais querem nem tocar em aposta
E tem gente que, vez ou outra, aposta uma quantia vendo um jogo de futebol. Quando é uma coisa extremamente casual e muito esporádica, é possível manter sem ter muito prejuízo.
O jogo de aposta precisa de algum tipo de lucro. Tem que ser tendencioso para a plataforma ganhar, e eles manipulam isso através dos odds [expressão numérica da probabilidade de um evento acontecer]. A longo prazo, os prejuízos são inevitáveis.
Se você apostar no Paraguai e o Paraguai ganhar, deve ter um retorno maior do que se apostar no Brasil, só que mesmo assim o cálculo garante uma vantagem para eles.
Cada vez mais, as pessoas têm que ter esse senso crítico. Você já viu a origem do site em que está apostando? Sabe qual é o CNPJ da empresa, onde ela fica, se realmente existe?
Já viu relatos de outras pessoas que apostaram nessa casa? E você realmente precisa gastar dinheiro com isso?
São questões que devem ser levantadas. As pessoas devem estar cientes disso.
Na infância, Marina Amaral teve de mudar a alimentação e se exercitar para lidar com o ganho de peso devido ao hipotireoidismo. Adulta, ela deu uma guinada na carreira e desenvolveu o Lia, uma plataforma para fortalecer o bem-estar feminino.
O Brasil é o país com o maior número de pessoas ansiosas no mundo. Tatiana Pimenta conta como buscou terapia após encarar uma relação abusiva e hoje, à frente da Vittude, ajuda corporações no apoio à saúde mental dos seus funcionários.