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“Eu vivo o desafio de mostrar que a minha feminilidade não é inferior à das outras mulheres”

Fernanda Cury - 28 jun 2019
"Fui a primeira mulher trans a adotar uma menina trans no Brasil", conta Alexya.
Fernanda Cury - 28 jun 2019
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Assim como acontece com tantas outras mulheres, Alexya Salvador começou a empreender para complementar a renda familiar a ter mais tempo para ficar com seu primeiro filho. Sem muito dinheiro para investir no negócio, pegou uma máquina de costura emprestada e aprendeu a costurar assistindo tutoriais no Youtube. O que ela não imaginava é que se tornaria uma apaixonada pela atividade.

Aos poucos seu Ateliê Alexya Salvador cresceu, recebeu novas máquinas, desenvolveu novos produtos. Ao mesmo tempo sua família crescia e seu sonho da maternidade se tornava realidade. Mas esse caminho não tem sido nada fácil.

Mulher trans, ela enfrentou e enfrenta preconceitos, porém mantém a cabeça erguida. “As pessoas fazem de tudo para deslegitimar a minha condição feminina e a minha maternidade. E como empreendedora acabo sendo tratada de forma diferente, como se o meu produto final não tivesse qualidade”, conta. Mas ela não se deixa abater. Muito pelo contrário, faz desses desafios o combustível para se tornar uma pessoa mais forte e melhor. Como? Confira nessa entrevista comovente e inspiradora.

Como foi sua infância e adolescência, seu processo de descoberta e aceitação da sua identidade de gênero?

Nasci e fui criada em Mairiporã, cresci cercada de muito amor. Meus pais sempre estiverem presentes e lutaram para que eu e a minha irmã tivéssemos o mínimo para sobreviver. Mas eu sentia que eu era diferente das outras crianças. Com o passar do tempo fui me percebendo LGBT, apesar de nem saber o que isso significava na época. Isso aconteceu na década de 80, eu não tinha referências sobre esses termos, sobre essas realidades. Só fui de fato me entender e me aceitar como uma mulher trans com quase 30 anos de idade.

Essa experiência influenciou de alguma forma as suas escolhas profissionais?

Sim, as experiências vividas na infância influenciaram totalmente as minhas decisões profissionais. Sou formada em letras, professora de português e inglês, também tenho formação de pedagoga e teóloga. Eu quis ser professora porque a escola foi o pior lugar em que eu poderia estar. Apanhava, sofria com preconceito porque destoava das demais. Eu falava que um dia eu voltaria para a escola para ser a professora que eu não tive, aquela professora que conversa e vai além dos saberes pedagógicos de sala de aula, abordando questões como respeito, cidadania.

Como e quando você começou a formar uma família?

Em 2009 eu conheci o meu marido na escada rolante do metrô Sé, fazendo uma baldeação. Nos casamos dois anos depois, quando o STF autorizou a união estável. Em seguida conseguimos converter a união estável em certidão de casamento. Hoje somos pais de três crianças, sou a primeira mulher trans a adotar no Brasil. Em 2015 nós adotamos o Gabriel, um menino de 9 anos com necessidades intelectuais especiais. Em 2017 uma juíza de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, leu uma matéria minha na internet e entrou em contato comigo. Contou que em sua comarca havia um menino de 9 anos que se identificava como menina, e perguntou se nós gostaríamos de conhecer essa criança. Fomos até lá e conhecemos a Ana Maria, que é uma menina trans, e a adotamos. Foi a primeira vez que uma mulher trans adotou uma menina trans no Brasil. E nesse ano nós adotamos a Daisy, que acaba de completar 8 anos. Ela também nasceu biologicamente menino mas se identifica como menina, ou seja, também é transgênera. Hoje nós estamos na configuração de família transafetiva. Somos uma família comum como qualquer outra, com os mesmos ideais e desafios, e lutamos contra o preconceito. Seguimos na contramão desse clima de ódio ao diferente.

Como mulher, mãe e empreendedora, você enfrenta muitos preconceitos? Como os encara?

Com certeza enfrento tanto como mulher trans, como mãe e como empreendedora um enorme preconceito. As pessoas fazem de tudo para deslegitimar a minha condição feminina e a minha maternidade. E como empreendedora acabo sendo tratada de forma diferente como se o meu produto final não tivesse a mesma qualidade. Eu procuro encarar essas situações com força, acreditando que essas dificuldades me tornam uma pessoa melhor. Eu penso que se não fossem esses desafios eu ficaria na minha zona de conforto e não iria crescer. Eu transformo o mal em bem. Quando eu recebo ataques, principalmente em redes sociais, eu me torno uma pessoa mais forte. Eu crio mecanismos de empoderamento para poder competir e mostrar que sou tão humana quanto qualquer pessoa e que a minha luta não é menor que a luta dos outros.

Infelizmente ainda há pessoas que não acreditam que uma mulher trans possa exercer o papel de esposa e mãe. O que você diria a essas pessoas?

Eu vivo diariamente o desafio de mostrar para a sociedade, através da minha vida, que a minha feminilidade não é inferior à das outras mulheres. Preciso provar que que a minha maternidade e a minha família são tão legítimas quanto às das famílias biológicas. Eu vivo dentro da minha casa os mesmos desafios eu qualquer mãe enfrenta nos dias de hoje, na educação dos filhos, na manutenção do lar, na luta para ter seu espaço no mundo. Eu diria para essas pessoas que elas deveriam exercer sua humanidade. Quando a gente exerce a humanidade a gente é capaz de acolher todas as pessoas. Não é por não ter um útero que eu vou ser menos mãe. Partindo dessa verdade a gente procura mostrar que a família LGBT, ou no caso da minha família, que é transafetiva, nós somos uma família que divide o desejo diário de construir uma vida, de sermos felizes, de procurarmos fazer o bem para as pessoas e criar os nossos filhos dentro dessa verdade de respeito, de amor, de caráter e de dignidade. Mostramos para os nossos filhos que somente dessa forma a gente vai encontrar o nosso lugar e mostrar para as pessoas que o diferente nunca foi uma ameaça. A diferença nada mais é do que um convite para a reflexão para que as pessoas também possam se tornar melhores.

Qual conselho você daria para as pessoas que estão passando agora por esse momento de descoberta em relação à identidade de gênero?

Resistam. Resistir é a única ferramenta ao nosso alcance. Se formos capazes de resistir ao sistema patriarcal, machista, misógino e LGBTfóbico, seremos capazes de passar por qualquer experiência na vida. Então você que está se descobrindo agora, supere os desafios, aguente, busque sua essência e lute por seu lugar no mundo, porque ninguém vai te dar esse lugar. Essa foi e ainda é uma luta da comunidade negra, das mulheres, e das minorias. Precisamos resistir para poder existir.

Aproveitando que estamos no Mês do Orgulho LGBT, que mensagem você procura passar para a sociedade, em relação ao tema?

Deixo a mensagem dos 50 anos de Stonewall, aquela revolta iniciada nos EUA no final da década de 60, que é o grande marco da nossa luta: resistir é o único caminho para existir. A sociedade precisa e vai entender que nós não vamos voltar para o armário, assim como o negro não voltou para a senzala. Orientação sexual, identidade de gênero não definem uma pessoa. Nós somos pessoas dotadas de qualidades e defeitos, buscando ser e existir no mundo.

Por que e quando você começou a empreender?

Quando adotamos o Gabriel, em 2015, eu era uma professora contratada do Estado, e dava aula de manhã, à tarde e à noite. Quando ele chegou eu reorganizei nossas vidas de forma que eu desse aula enquanto ele estivesse na escola, e no outro período eu pudesse ficar com ele. Mas o salário, obviamente, caiu pela metade. Aí procurei algo que eu pudesse fazer em casa para ter outra renda. Um dia, por acaso, estava visitando a avó do meu marido e ela me emprestou a máquina de costura, aquela bem antiga, de ferro preto. Eu nunca tinha costurado, mas trouxe a máquina para casa e comecei a procurar no Youtube tutoriais de modelagem para aprender. A partir daí eu descobri que tinha o dom da costura e me apaixonei por esse universo.

Fale-nos sobre o começo do Ateliê Alexya Salvador.

Comecei fazendo aventais de professoras e deu muito certo. Dos aventais passei a fazer pijamas, depois roupas, e o negócio foi crescendo a ponto de a máquina de costura já não atender a minha demanda e eu precisar investir mais no negócio. Devolvi a máquina para a avó do meu marido e comprei uma nova, e continuei fazendo as minhas peças. Só que chegou um momento que a máquina de costura doméstica não aguentava mais o volume e o ritmo da produção. Foi hora de comprar minha primeira máquina industrial. Usada, mas industrial! Aos poucos fui investindo em outros maquinários, para um acabamento interno mais caprichado, e equipamentos como tábua de corte.

Percebi, também, que eu poderia agregar valor às minhas peças se eu tivesse uma máquina de bordado. Duas amigas muito especiais e queridas, a Luciana, da cidade de Araxá (MG), e a Marília, de Brasília (DF) me emprestaram dinheiro para que eu pudesse comprar essa máquina. E com o dinheiro da venda das minhas peças bordadas eu pude pagar esse empréstimo. Com a máquina de bordado o ateliê atingiu um outro patamar, porque comecei a produzir enxovais de bebê.

Recentemente comprei uma nova máquina japonesa ultramoderna, que facilitou demais a linha de produção. E partirmos para o universo da sublimação, que é uma técnica de estamparia. Agora posso criar as minhas estampas, personalizar o desenho que o cliente quer, seja nas bolsas ou enxoval de bebê, o que ampliou o meu leque de vendas.

Como é a sua atuação na empresa?

Eu faço a gestão, venda, produção. Quando tenho uma encomenda muito grande meu marido me ajuda. Mas praticamente faço tudo: criei as páginas no Facebook e no Instagram, eu que vendo, eu que faço tudo.

Você cria as peças? De onde vem a inspiração?

No começo tive dificuldade de modelar as peças. Mas corri atrás e encontrei muitos tutoriais no Youtube que me ensinaram as noções de modelagem. A inspiração vem das necessidades do dia a dia, ou das tendências, fico sempre de olho no que as clientes estão querendo ou precisando. Eu criei, por exemplo, uma capa para o diário de classe dos professores, é um sucesso.

Quais estratégias têm dado melhor resultado nesta trajetória do Ateliê Alexya Salvador?

Para as vendas, as páginas nas redes sociais, tanto o Instagram quanto o Facebook, têm se mostrado uma ótima estratégia, assim como a propaganda boca a boca. Um cliente satisfeito que comenta com uma amiga, e por aí vai. Eu prezo demais pela qualidade, e procuro manter um preço justo. Outro ponto que tem dado certo é o constante reinvestimento no negócio. Estou sempre comprando novas máquinas que ajudem a otimizar a produção e aumentar o portfólio de produtos.

Por outro lado, quais caminhos foram deixados de lado? 

Eu entendi que produzir aventais, pijamas e roupas não estava compensando. Resolvi investir somente nas peças da costura criativa, como bolsas, mochilas, porta-moedas, que tem uma maior rentabilidade e levam menor tempo de confecção.

Qual foi seu maior objetivo como empreendedora?

O meu primeiro objetivo foi ter uma outra renda, além de professora, para poder propiciar uma vida melhor para os meus filhos. Mas hoje vejo que tenho como meta, também, mostrar que as pessoas transgêneras podem ser empreendedoras.

Qual foi o maior desafio que você já enfrentou na vida empreendedora?

Ainda enfrento os desafios de me colocar no mercado, ainda não consegui atingir os lugares e setores que eu quero, ter a minha marca reconhecida pela excelência do meu trabalho e pelo preço justo. Estou superando essas questões dia a dia com persistência, produzindo peças com excelente qualidade.

Qual a maior conquista até aqui?

Foi provar para mim mesma que por eu ser uma mulher transgênera, negra e da periferia, eu era capaz de chegar onde eu queria e eu estou a caminho de chegar lá. Eu venho percorrendo esse caminho em todos os aspectos da minha vida: com a minha militância, com o meu corpo, com a minha história. O desafio e a conquista de poder exercer o meu direito de ser que eu sou. E isso tudo engloba a minha maternidade, minha fé, meu negócio. Mesmo passando por tantas dificuldades, eu me sinto vitoriosa a cada manhã, sabendo que eu tenho pais, marido e filhos que me amam.

Qual é o seu sonho? O que ainda falta realizar?

Meu sonho é ter uma cooperativa de pessoas trans em situação de rua, onde eu possa dar aulas, ensinar o pouco que eu aprendi, para que elas possam se colocar no mercado de trabalho, e tenham sua dignidade recuperada. Muitas delas só precisam de uma oportunidade, de voltar a estudar, ter um emprego. E eu quero muito que o meu trabalho possa ajudá-los a ter uma fonte de renda e uma vida mais digna.

Se pudesse dar apenas uma dica para quem está querendo empreender, qual seria?

Acredite, com todas as suas forças, que você é capaz. E a partir daí corra atrás, conheça o mercado, estude a concorrência, para ter um produto de excelência. E tenha certeza que se o outro conseguiu, você também pode conseguir. Basta ter fé, determinação, coragem e energia para trabalhar muito.

Quais seus planos para o futuro?  

Conseguir ampliar o ateliê, contratar pessoas para trabalhar comigo – com certeza pessoas trans e travestis. E que juntos a gente possa criar produtos que levem alegria para o cliente final.

 

Para saber mais:

Ateliê Alexya Salvador

O que faz: Produtos personalizados em geral, como bolsas, carteiras e enxoval para bebês.

Sede: Mairiporã, São Paulo

Início das atividades: janeiro de 2015

Investimento inicial: 750 reais

Contato: (11) 97299-8669

 

Esta matéria pode ser encontrada no Itaú Mulher Empreendedora, uma plataforma feita para mulheres que acreditam nos seus sonhos. Não deixe de conferir (e se inspirar)!

 

 

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