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No fim de agosto, a farmacêutica gaúcha Ana Helena Ulbrich, 44, alcançou um feito: foi eleita como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em Inteligência Artificial em um ranking da revista Time, na categoria “Inovadores”.
Ao lado de seu irmão, Henrique Dias, 43, Ana Helena é cofundadora da NoHarm – plataforma de gerenciamento de receitas e medicamentos de código aberto que usa IA para avaliar, fazer um ranqueamento das prescrições mais críticas a fim de ajudar farmacêuticos a organizar seu trabalho, reduzindo ineficiências na análise de prescrição de medicamentos em hospitais, clínicas e centros de cuidados.
Em entrevista ao Draft, Ana Helena comentou sobre a premiação:
“Eles [da revista] só podiam escolher uma pessoa para representar a NoHarm. Faria mais sentido ser o Henrique, que é especialista em IA. Quando veio [a notícia] fiquei um pouco constrangida, mas ele gostou porque eu represento a dor que a plataforma resolve”
Simplificando, o sistema da NoHarm funciona como um “marca texto automático” que, integrado ao prontuário eletrônico do paciente, aponta inconsistências em tempo real – auxiliando farmacêuticos a evitar erros, como doses altas ou baixas demais, a prevenir desperdícios e a reduzir o risco de interação medicamentosa.
A plataforma é utilizada por mais de 1 mil profissionais na tomada de decisão, em 200 instituições de saúde de todas as regiões do Brasil (inclusive na Amazônia, como mostrou uma reportagem da Revista Rest of World). Segundo a empresa, mais de 5 milhões de receitas são analisadas por mês com auxílio da startup. A cobrança ocorre por leito (de R$ 42 a R$ 52,50) em hospitais privados; o preço cai conforme aumentam os pacientes atendidos — e a solução, diz Ana Helena, é cedida gratuitamente a hospitais atendidos pelo SUS.
A startup foi desenvolvida durante o doutorado de Henrique na PUCRS, com o apoio, os pitacos e a presença de Ana Helena, que sentia diariamente a dor de não ter tempo suficiente para fazer uma análise minuciosa de todas as receitas que passavam por ela na Farmácia Clínica do hospital onde trabalhava.
Publicada em 2018, a pesquisa aplicada transformou-se no ano seguinte em um produto SaaS em nuvem através da fundação do Instituto de Inteligência Artificial na Saúde, entidade sem fins lucrativos da qual Ana Helena é a diretora responsável pelas decisões clínicas e responsável técnica farmacêutica, e Henrique é presidente e responsável técnico pela área de tecnologia. Em 2024, o balanço recém-lançado indica resultado bruto de 2,990 milhões de reais.
Incubada no NAVI, o Hub de Inteligência Artificial e Ciência de Dados do Tecnopuc (Parque Científico e Tecnológico da PUCRS), a NoHarm recebeu apoios ao longo dos anos: Google Latin America Research Awards (2018-2020); Edital CNPq de Inteligência Artificial (2022); Bill & Melinda Gates Foundation (2023); Llama Impact Innovation Awards, da META (2024); Iniciativa de Equidade em Saúde da Amazon Web Services (2024); Juntos pela Saúde do BNDES (2024); e UMANE (2024).
Leia a seguir a entrevista com Ana Helena Ulbrich:
Todo empreendedor de startup precisa fazer pelo menos duas coisas: um Plano de Negócios e um MVP para validar o modelo de negócio e então captar investimento. Nesse sentido, a história da NoHarm é um pouco diferente, concorda?
A diferença é que decidimos por não ter investimento e sermos sem fins lucrativos porque, no momento que fomos conversar com investidores, percebemos que o interesse deles por lucro ia impactar no nosso propósito. A demora na conversa, nas definições, era maior com o investidor do que sem. Não tinha nenhum sentido seguir adiante, a gente não precisava do investidor.
Além disso, o fato de querermos dar [acesso à plataforma] de graça para o SUS não estava de acordo com os interesses dos investidores. Então, em outubro de 2019, na hora de abrir o CNPJ, fundamos [o instituto] sem fins lucrativos.
Mais adiante, falamos com outros investidores e percebemos que estávamos no caminho certo. Não havia fit com o investidor nessa ideia de dar de graça, então a gente só reforçou a nossa decisão.
Não é porque fizemos assim que os outros têm de fazer. Nós tínhamos o privilégio de poder fazer assim, por termos recebido o prêmio do Google e sermos, Henrique e eu, concursados. Tínhamos o nosso rendimento e poderíamos trabalhar, por um tempo, sem retorno. Esse foi o nosso investimento. Nosso investidor fomos nós mesmos
A minha dedicação foi voluntária até final de 2022; o Henrique foi até 2023. Eu fui a primeira funcionária CLT.
Mas vamos começar do início. Eu era farmacêutica do Hospital Nossa Senhora da Conceição e, a partir dessa experiência, identifiquei a dor. Pensando em startup, a primeira coisa é perceber a dor, o problema que se quer resolver.
O trabalho de avaliar as prescrições antes de liberá-las tem o objetivo de trazer segurança para o paciente. Então, como farmacêutica, tenho que considerar a minha avaliação suficiente para trazer segurança, só que eu não achava essa avaliação profunda o suficiente porque tinha pouco tempo para avaliar muitos pacientes. Esse era o problema.
Meu irmão estava no início do doutorado em IA, já tinha um tema que não era relacionado com isso. Conversando, Henrique entendeu o meu problema e nos perguntamos: “Por que não mudar essa pesquisa [de doutorado] e direcioná-la para aquele problema? Não uma pesquisa unicamente acadêmica, mas sim uma pesquisa aplicada – na qual todo o conhecimento de IA fosse aplicado em benefício da sociedade?”
Chegamos a essa conclusão num almoço de domingo, em família. Daí conversamos com a Renata Vieira, a orientadora dele, e ela topou. Foi super legal porque não é uma coisa simples trocar um projeto de pesquisa de doutorado!
Eu já tinha experiência em pesquisa. Pra tu usares dados de saúde é muito difícil. Tu tens de colocar na Plataforma Brasil [base de dados eletrônica e portal do governo federal que centraliza o registro e a tramitação de projetos de pesquisa que envolvem seres humanos, sendo a ferramenta oficial do Sistema CEP/Conep para avaliação ética] e o projeto tem de ser aprovado. Então, fiquei de orientadora nesse projeto do Henrique e conseguimos os dados, que é uma das partes mais difíceis, para validar a ideia.
A pesquisa foi feita, alcançou resultados muito bons com o algoritmo desenvolvido pelo Henrique e validado por mim, porque tinha de ver se os dados e os resultados faziam sentido.
Em 2018, publicamos esse artigo numa das melhores revistas de informática da saúde do mundo. Ele seria apenas mais um se a gente se contentasse com uma publicação, mas resolvemos ir além e transformar esse artigo em uma plataforma
Primeiro, tentamos colocar o algoritmo, sem a plataforma, dentro do processo de trabalho do Grupo Conceição. Não foi adiante porque o hospital tinha muitas demandas para a [área de] informática e eles não tinham condições de atuar sobre ele.
Decidimos tentar, por nossa conta, com outro hospital que estivesse aberto a validar a solução. Conversamos com vários e quem aceitou foram a Santa Casa de Porto Alegre e o Hospital Mãe de Deus, mas quem validou mesmo conosco foi a Santa Casa. Colocamos o algoritmo para ser validado lá em março de 2020, quando fizemos a análise da primeira prescrição integrada na NoHarm.
Fomos melhorando o produto com feedbacks das farmacêuticas e minhas sugestões. Tudo aconteceu enquanto trabalhávamos, cuidávamos de filho e com a Covid bombando. Então, foi uma loucura!
Para equalizar o propósito de ser sem fins lucrativos, ser gratuito ao SUS, e dar conta de pagar salários que sustentam as famílias de vocês, foi preciso quebrar a cabeça na hora de definir a precificação da NoHarm para os leitos particulares?
Isso não foi fácil. No início, colocamos um preço bem baixo para validar com mais clientes. Tínhamos uma equipe pequena e part-time, em 2020. Só conseguimos nos pagar pró-labore no final de 2022, início de 2023.
Aumentamos a equipe de acordo com a nossa necessidade e a capacidade de pagamento dos hospitais.
Tinha de ser algo que fizesse sentido para o cliente e que nos permitisse manter a nossa operação. Nunca foi: “vamos cobrar tanto do privado porque precisamos de metade disso para colocar no SUS”. Não é essa a ideia!
A gente queria pagar a nossa operação e ia colocando o SUS de acordo com a nossa capacidade de integração. Temos muito mais SUS do que privado: são 75 clientes que pagam a nossa solução.
Eu tinha imaginado que a precificação de vocês fosse um valor que subsidiasse chegar a mais pessoas no SUS. Mas não é essa a lógica de vocês, certo?
Exato. A gente cobra de acordo com a necessidade da nossa equipe e tem de fazer sentido para o privado. Mas o valor é extremamente baixo se você for pensar na tecnologia que oferecemos. E somos muito eficientes. Temos 20 pessoas e atendemos 200 instituições de saúde no Brasil inteiro.
Eu acho interessante muitas startups dizerem que aumentaram a equipe: “Olha como a gente cresceu”. Mas o que isso significa? A tua equipe aumentou: isso é bom? Não necessariamente. Se tu trouxeres eficiência para o processo e conseguires atender mais clientes com uma equipe pequena, é mais eficiente.
O MVP da plataforma NoHarm começou a rodar em 2020, recebendo as primeiras prescrições médicas para análise. Isso foi antes da popularização da IA generativa. Sentiu algum receio dos usuários, uma vez que IA era papo de especialista? Como foi essa frente?
Foi bem tranquilo. Não teve nenhuma resistência porque a nossa solução, o algoritmo, é muito explicável. Falo em relação à IA que, além de ética – que é super importante –, ela tem de ser explicável, tem de trazer por que foi tomada determinada decisão.
E a nossa solução é muito explicável. O usuário clica e pode ver por que foi dado aquele score. Por que aquela dose e frequência [de medicamento indicado] está com score 13 e não score 0. Tu clicas e vês o histórico. Então, é de muito fácil entendimento para o farmacêutico
E mesmo se nossa IA traz um score alto [que indica perigo] baseado no histórico do paciente e o farmacêutico não concorda – porque apesar de ser uma situação incomum não há problema –, é possível ele mudar o score para zero, ensinando o sistema que, sempre que vier essa posologia pode colocar zero…
Assim, além de ser explicável, é alterável e muito muito transparente. É nisso que, às vezes, as IAs pecam: não trazem a explicação.
Hoje, a IA generativa está um pouco melhor. Antes ela não trazia explicação, a fonte. Pra mim, sem fonte, uma informação não serve para nada, é só uma opinião
Se traz a fonte, tu entras e vês que ela [eventualmente] é uma fonte irrelevante, podes desconsiderar aquela informação. Mas assim tu tens um embasamento, tens como explicar aquilo. Fazemos isso desde o início da NoHarm, desde antes da IA generativa existir!
Hoje, a equipe de cientistas de dados de vocês se depara com muitas diferenças de análise de exames e prescrições de pacientes nas diferentes regiões do Brasil? É fato que por ser um território extenso, há não só tipos de doenças, como vírus e bactérias diversas nas regiões. E em relação a gênero? Vocês fazem esse tipo de comparação?
É interessante essa pergunta. Nunca fizemos nenhuma pesquisa específica com gênero. No desenvolvimento do Sumário de Alta, uma pesquisa que gerou um artigo científico fantástico na revista Nature, aprendemos muito com a Fundação Gates em relação a trazer diversidade para os nossos bancos de dados que são usados para qualquer modelo de inteligência artificial.
Isso ficou muito na minha cabeça… Agora, em tudo que fazemos, levamos isso em consideração para o desenvolvimento das nossas IAs: gênero e diversidade de doenças
Tu podes pensar em diversidade como um todo, dependendo do problema em que estás trabalhando. Por exemplo, se tu pensas em trabalhar com evoluções clínicas, tens de trazer diversidade para essas evoluções de todas as regiões do país.
Tens de trazer diversidade em relação a número de doenças diversas, como doenças negligenciáveis, doenças raras e incluir diversidade de gênero naquela tua amostra. Tu tens de colocar nesse teu banco toda essa diversidade. Não é tão difícil de fazer.
No caso de doenças negligenciáveis e doenças caras é mais difícil de fazer uma amostra que contenha essas informações. Então, é preciso olhar para o teu problema e o modelo que tu estás desenvolvendo e pensar na diversidade daquele problema.
Por isso, é tão importante o profissional saber muito bem sobre o problema. Como tu vais trazer diversidade para uma coisa que não entendes?
Se o modelo é relacionado à saúde, tem de haver alguém que entenda disso. Se for relacionado a direito, tem de haver alguém da área jurídica envolvido no desenvolvimento dessa IA, para trazer tanto diversidade quanto ética a esse modelo.
Quando vocês lançaram a NoHarm, faziam questão de dizer que a plataforma não substitui o farmacêutico, apenas alerta, recomenda e traz eficiência. Muito tem se falado de que os agentes de IA, por sua autonomia, poderiam ser encarados como mais uma “pessoa” no time. Você acha que este é um futuro possível para a NoHarm, no sentido do usuário lá na ponta? Com um agente de IA haveria um status diferente para a função do profissional farmacêutico?
Eu acho os agentes de IA fantásticos, sempre como um suporte à decisão. Eu não acho que o agente vai substituir o profissional da saúde, mas ele agiliza o processo também. Eles nos ajudam muito na parte de suporte ao usuário da NoHarm.
Posso até dizer que temos um agente de IA que trabalha sozinho, porque ele responde ao cliente que tem dúvidas simples, óbvias. Quando a informação está na nossa base de conhecimento, ele responde sem precisar passar para uma pessoa. Já quando é um problema de funcionamento, ele direciona para nós.
Na farmácia clínica, não vejo isso como possível. Até já pensei em ter um agente de IA na criação de relatórios para o farmacêutico poder perguntar ao sistema quais são os pacientes que estão com [resultado de] exame tal; aí o agente de IA geraria, a partir do teu banco de dados, os resultados para essa pergunta… Mas isso nunca pode substituir o profissional. É um apoio.
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