É relativamente fácil ser contra a discriminação de gênero, se indignar com bravatas sexistas, repudiar a misoginia – tanto a explícita quanto a velada – que sibila ao nosso redor.
Basta não ser um franco idiota ou uma pessoa assumidamente detestável. (Desgraçadamente, há milhões de brasileiros espraiados nessas poltronas abjetas – e absolutamente confortáveis nesse lugar que encontraram no mundo).
Muito mais desafiador é escanear seu próprio comportamento, analisar suas próprias palavras e seus próprios gestos, com o objetivo de sanitizá-los em relação ao preconceito – e à agressão – contra as mulheres.
E, no entanto, é fundamental fazê-lo. Esse é o grande exercício que cada um de nós precisa realizar. Soar o apito e apontar o dedo ao assédio perpetrado pelos outros é importante. Muito mais premente, e efetivo, é auscultar – e reorientar – a si mesmo.
Isso vale para homens e mulheres. Mas principalmente para os homens – somos os autores da grande maioria dos atos de violência, e temos um gosto especial por atacar mulheres.
Minha querida amiga Lu Sato, mãe de uma menina e de um menino, me mandou há poucos dias um texto do Marcos Piangers, O Inferno Somos Nós, em que ele, pai de duas meninas, relata o primeiro assédio sofrido por uma de suas filhas, ao ir comprar pão na esquina, num dia como outro qualquer. Ele reflete sobre como reagir diante de uma situação dessas. E sobre como todo homem precisa se reeducar no modo como se relaciona com as mulheres.
O texto me tocou. Porque tenho pensado muito nisso. Sou pai de uma menina e de um menino. E percebo o tanto de problemas a mais que minha filha precisa enfrentar, desde muito cedo, no seu dia a dia, simplesmente pelo fato de ser mulher. Isso é injusto demais. Uma situação inaceitável.
Sou filho de uma feminista. Então, de certo modo, sempre me considerei um homem feminista. Do tipo que acredita na absoluta igualdade de direitos e de deveres entre mulheres e homens.
Não há permissões que só possam existir para os homens, nem obrigações que só caibam às mulheres. Não existe sexo frágil nem sexo forte, nem qualquer superioridade de um gênero sobre o outro.
Assim como não há nenhum determinismo biológico que possa justificar diferenças no acesso a oportunidades e no gozo de privilégios entre homens e mulheres. Cresci em meio a esses valores e essa sempre foi a minha compreensão e a minha atitude.
No entanto, tenho me percebido defasado em uma série de aspectos. Minha filha, desde que se tornou adolescente, até agora, ao se tornar uma jovem mulher adulta e independente, tem me mostrado isso repetidas vezes – com o carinho possível e com a devida ênfase.
Me preocupo com a segurança dela, em especial agora que saiu de casa para morar sozinha. Vivemos no Canadá, um país com índices relativamente baixos de violência – mas predadores sexuais existem em todo lugar. E mulheres estão entre suas vítimas preferenciais.
Minha filha, como muitas meninas da sua geração, se veste com liberdade – uma conquista maravilhosa. A roupa é uma prerrogativa do indivíduo, uma forma de expressão pessoal, um cultivo da identidade, um item de autoestima, e não implica nenhum tipo de permissão ou de convite a outrem.
Esses dias perguntei a ela se já tinha sido importunada, ou se sentido constrangida, ao usar um de seus looks. Ela me disse na tampa: “O assédio não acontece pela roupa que eu estou vestindo. O assédio acontece porque eu sou mulher”. Eu senti vergonha. Quis engolir minhas palavras. Disse que ela estava corretíssima. E lhe pedi desculpas.
Por trás da minha preocupação, de pai, com sua integridade, por trás da tentativa de sublinhar meu zelo e minha solidariedade, emergiu uma construção pavorosamente machista.
Ou seja: o constrangimento, ali, para ela, não aconteceu no transporte público ou na rua – mas dentro da sua própria casa. E a ofensa não partiu de um homem estranho, mas do seu próprio pai.
Me arrependi infinitamente das palavras que usei, e do modo como formulei a pergunta – que denunciou uma visão deturpada, falocêntrica, que infelizmente ainda residia em mim.
Desejei sumir. Mas aí percebi que eu estava, ali, naquele exato momento, aprendendo.
De modo doído, para nós dois, minha filha me ensinava mais uma lição.
E eu tinha que ter a humildade e o denodo de admitir que era um homem em processo de reeducação. E que esse processo não seria tão curto, nem tão livre de deslizes, quanto eu gostaria.
Por mais que eu já tivesse aprendido um bocado, provavelmente cairia outras vezes com a cara no chão. E teria que ter o estômago para me ver naquele lugar odioso, e ao detestar me ver ali, usar esse desgosto como combustível para me mover, para me tornar uma pessoa melhor, um homem menos autocentrado e insensível.
Ao lado de prestar atenção ao presente, ao modo como reajo ao que acontece ao meu redor, e de olhar para frente questionando, por exemplo, o senso de humor que adquiri em outros tempos, quando o exercício do preconceito era motivo de riso, comecei a repassar minha trajetória – não sem embaraço diante do que poderia encontrar nessa revisão.
Tenho me perguntado quantas vezes, ao longo da vida, não assediei mulheres imaginando que estava cumprindo meu papel, como homem, no jogo da sedução.
Quantas vezes não ignorei que não era não, imaginando que aquela negativa fosse relativa e provisória – e que pudesse inclusive embutir um convite a que eu me esforçasse mais na arte da conquista, de modo a reverter aquela parcial desfavorável.
Quantas vezes não tratei mulheres e homens de forma diferente, no trabalho e fora dele, não pelas pessoas que eram ou deixavam de ser, mas simplesmente pelo gênero a que se filiavam?
Quantas vezes não me arvorei vantagens (ou as exerci) só porque era homem?
Quantas vezes não acolhi como devia minhas colegas diante das situações de indignidade a que eram submetidas no escritório? (Uma delas se transformou, para minha felicidade, na minha mulher.)
Quantas vezes não fui conivente com esse tipo de situação – ou a engendrei com as próprias mãos?
Quantas vezes não ri junto de chistes chulos e ofensivos, ditos em voz baixa, pelas costas, de modo covarde? Quantas vezes não objetifiquei as meninas – imaginado que estava sendo romântico e que aquilo era um galanteio? Quantas vezes não as constrangi com um olhar deselegante, agressivo ou interminável?
A resposta é que provavelmente agi errado muito mais vezes do que gostaria. Sem muita chance de, hoje, reparar as imbecilidades que fatalmente disse e fiz.
Talvez a única coisa possível para mim seja também a mais urgente: admitir que tenho muito a aprender. Que estou longe de estar pronto – ou de ter superado meu fardo geracional. Que sou um homem em processo de (re)aprendizagem. E que essa (re)construção é um movimento amplo e profundo que talvez não vá terminar nunca.
Talvez a compensação da minha pegada de machismo estrutural passe necessariamente pelo compromisso íntimo de me colocar sempre, a partir de agora, no lugar da outra pessoa, de modo a enxergar as coisas a partir do seu ponto de vista, a sentir as coisas a partir da sua perspectiva e, sobretudo, a respeitá-la.
Não basta ser feminista. É preciso ser antimachista. Antissexista. Antipatriarcal. Atuar nessas frentes, de modo ativo, no mundo. Romper o silêncio. Assumir sua própria vulnerabilidade diante desse desafio.
E caminhar adiante. Como uma espécie de feminismo regenerativo, uma nova ética nas relações entre os gêneros que todo homem que se preza precisa exercitar.
Ao produzir melhores palavras e gestos daqui para a frente (um desafio diário), especificamente em relação às mulheres, mas não só em relação a elas, talvez eu, homem branco heterossexual e cisgênero, possa de alguma forma reparar, ou mitigar, as bobagens que disse e fiz. Pelo que, sinceramente, sinto muito.
**Adriano Silva, 52, é jornalista, fundador da The Factory e publisher do Projeto Draft, do Future Health e de Net Zero. É autor de dez livros, entre eles a série O Executivo Sincero, Treze Meses Dentro da TV, A República dos Editores e Por Conta Própria: do desemprego ao empreendedorismo – os bastidores da jornada que me salvou de morrer profissionalmente aos 40.
***Leia também o artigo no Projeto Draft.
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