Foodtech aposta na apicultura para levar desenvolvimento sustentável a um dos biomas mais diversos e ameaçados do Brasil

Renato Essenfelder - 25 jan 2022
A sede da Beeva, em Alagoas, foi construída seguindo conceitos de design biofílico. (Foto: Divulgação)
Renato Essenfelder - 25 jan 2022
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O aquecimento global e o crescimento das taxas de desmatamento e das áreas de monocultura no país, quase sempre dependentes de pesticidas, têm ameaçado a extinção silenciosa de um dos insetos mais preciosos para o equilíbrio do ecossistema: as abelhas.  

Segundo estimativa da ONU, três quartos das culturas que produzem frutas ou sementes para consumo humano, em todo o planeta, dependem da ação de polinizadores como insetos, pássaros e morcegos. Entre todos eles, as abelhas se destacam, prestando “serviços ecológicos e econômicos” calculados em astronômicos US$ 577 bilhões – o equivalente ao PIB da Suécia, por exemplo – pela Plataforma Intergovernamental Científica e Política sobre a Biodiversidade e os Serviços Ecossistêmicos.

Atenta a esse cenário, uma nova startup instalada em plena caatinga tenta fazer a diferença. A Beeva, que abriu as portas em 2020, em plena pandemia, é uma foodtech que tem como proposta não apenas processar e comercializar derivados da apicultura produzidos num dos biomas mais biodiversos e ameaçados do Brasil, mas também ajudar a gerar renda para pequenos produtores e, assim, proteger a região. Quem conta essa história é seu o fundador e CEO, Jatyr Oliveira.

“Eu costumo classificar as empresas em dois grupos: as que são motivadas por parecer ser alguma coisa e as que são motivadas pela prática, pelo exemplo concreto. Vi muitas companhias do primeiro tipo na minha vida profissional e não queria mais fazer parte desse tipo de discurso. Então resolvi seguir carreira solo.”

A apicultura entrou na vida de Jatyr por acidente. Nascido em Santos (SP), ele ainda jovem ficou órfão de pai e mãe e teve de se virar na vida. Entrou para o Exército, onde passou dez anos, fez Escola de Formação de Oficiais, frequentou cursos em tropas de elite fora do país e se especializou em tiro de longa distância. Parecia tudo pavimentado para uma carreira brilhante nas Forças Armadas, onde havia “mergulhado de cabeça”, como diz. Mas em certo momento da vida, aquilo deixou de fazer sentido para ele. “Eu não via relevância ou uma grande contribuição social no meu trabalho”, conta.

Jatyr então decidiu voltar a estudar: cursou engenharia química na Universidade de São Paulo e investiu na carreira de engenheiro, passando anos em multinacionais como a Monsanto e a Votorantim Cimentos. Também nelas, não encontrou o que procurava. Começou a trabalhar como consultor e, em um de seus trabalhos, ficou encantado com o projeto do cliente: um grupo suíço que queria construir no Brasil uma espécie de minicidade sustentável, uma área urbana de 400 hectares toda planejada para a redução de impactos socioambientais.

Embora o projeto tenha sido suspenso depois de um tempo, foi o suficiente para Jatyr ter um primeiro contato com o mundo da apicultura, que fazia parte do plano de cidade sustentável, e aprender sobre a importância desses insetos na manutenção de variados ecossistemas. “Ali eu conheci a apicultura e entendi o impacto dela em todo o sistema”, lembra. “Percebi a real demanda por esse tipo de produto.”

Um dos produtores associados à Beeva, representante do Mel Mata Atlântica Silvestre. (Foto: Reprodução/Youtube Beeva)

BIOMA É RICO EM BIODIVERSIDADE

Embora tenha começado operações concretamente em 2020, a ideia da Beeva começou a ser trabalhada dois anos antes. Passou primeiro por uma fase de planejamento, depois por captação de recursos junto ao Banco do Nordeste e por fim mais seis meses de construção da sede da empresa, uma estrutura de 4.500 metros quadrados de área construída na cidade histórica de Marechal Deodoro, a cerca de 20 km da capital Maceió.

O local foi construído com conceitos de design biofílico, destinação correta a 100% dos resíduos gerados e uso intensivo de materiais sustentáveis, que propiciem a meta do net zero para toda a planta industrial. A localização é estratégica, pois Jatyr conta que queria não apenas investir na apicultura como também beneficiar a região da caatinga.

A caatinga é o único bioma considerado exclusivo do Brasil e ocupa cerca de 10% do território nacional – a maior parte na região Nordeste. É, também, o mais ameaçado. Segundo o Ministério do Meio Ambiente, 46% da caatinga já foi desmatada para servir a atividades ligadas à extração ilegal de lenha, conversão para pastagens e agricultura. 

Embora pareça pobre e sem vida, a verdade é que o bioma é muito rico em biodiversidade, abrigando centenas de espécies de mamíferos, aves, peixes, répteis e anfíbios, além de 221 tipos conhecidos de abelhas.

O fato de possuir imenso potencial ecológico aliado ao fato de a região abrigar o menor Índice de Desenvolvimento Humano do país e possuir mais de 27 milhões de habitantes pesaram na decisão da Beeva de priorizar a produção de mel na região. “Para nós é importante que a sustentabilidade não seja algo paralelo. O desenvolvimento sustentável é transversal a qualquer negócio”, diz o CEO.

META É CHEGAR A CEM PRODUTORES PARCEIRO NESTE ANO

Na expectativa de criar um negócio “daquele segundo tipo”, ou seja, com uma verdadeira missão de impacto social (e ambiental), Jatyr não hesita: “A Beeva nasceu com o propósito de estruturar a cadeia da apicultura dentro do semiárido nacional e trazer desenvolvimento sustentável utilizando a apicultura como principal ferramenta, mas não a única. Também vamos desdobrar nosso negócio para trabalhar em outros setores no futuro, como turismo, recuperação de nascentes e outras atividades, através do Instituto Beeva”.

A startup trabalha hoje com três unidades de negócio. Uma delas é a foodtech em si, que processa e comercializa mel e outros derivados e “entende a experiência do consumidor, vê como isso impacta o negócio e busca respostas para inovar”.

“Queremos mudar a cultura de consumo dos derivados da apicultura, pensá-los não só como produtos que ajudam a saúde, mas como alimentos. Nossos pais tratavam o mel como remédio, queremos ir além disso.”

O fundador e CEO da Beeva, Jatyr Oliveira. (Foto: Divulgação)

Os produtos da Beeva estão disponíveis em 450 pontos de venda pelo país, incluindo grandes redes de varejo, como o grupo Carrefour, e no e-commerce da marca. Também já há uma linha de exportação para a China e prospecção de outros mercados.

No ano passado, a empresa comercializou mais de 120 toneladas de mel. Para efeito de comparação, todo o Estado de Alagoas produz no máximo 150 toneladas. Para suprir essa demanda, a Beeva conta com 18 produtores credenciados, todos alojados na caatinga brasileira, e quer chegar a 80 ou 100 até o fim deste ano. Os produtores são de vários portes, desde os pequenos, com 25, 30 colmeias, até os maiores, com até 3.000 colmeias.

A expansão não pode ser rápida demais, conta o CEO, porque “o trabalho de credenciamento exige muito tempo dos técnicos. A gente primeiro faz uma peneira para ter mais qualidade, selecionar os melhores, e depois investe muito tempo para que eles evoluam”.

Essa “evolução” dos produtores acontece na segunda unidade da Beeva, que é dedicada à pesquisa e desenvolvimento de melhores práticas de apicultura.

Embora a empresa não produza mel, mantém em sua sede uma espécie de apiário modelo onde são testadas novas práticas de manejo. São 40 colmeias que sevem como modelo para educar apicultores. “Enquanto eles extraem em média 12 quilos de derivados de apicultura por ano, nós chegamos a extrair 45 quilos por ano das nossas colmeias”, celebra Jatyr.

Com o ganho de produtividade, o executivo acredita que a caatinga, que hoje produz cerca de 11 mil toneladas anuais de mel, poderia chegar a produzir 300 mil toneladas. Com isso, o Brasil, país pouco expressivo no ranking mundial de produtores de derivados de apicultura (apenas na 14ª posição), poderia ganhar posições e se tornar um player mais importante no mercado.

Para o futuro próximo, a Beeva deve apostar também no desenvolvimento de suplementos alimentares, cosméticos e bebidas – para isso, contou também com uma captação de R$ 4,5 milhões no ano passado por meio da plataforma de investimentos em startups CapTable.

INSTITUTO REALIZA “CENSO” DA CAATINGA

A terceira unidade de negócio é o Instituto Beeva. Sem fins lucrativos, ele é responsável por replicar as técnicas desenvolvidas pela unidade de pesquisa e mapear a caatinga em detalhes, entendendo onde estão os produtores, as fontes de água, os diferentes tipos de vegetação e espécies de abelha. “É realmente um censo da caatinga”, resume Jatyr.

Quando um produtor manifesta interesse em atuar como parceiro, a Beeva traz o candidato até a matriz, em Marechal Deodoro, e oferece um treinamento de sete dias, técnico e de campo.

Como a rastreabilidade é fundamental para os planos da Beeva de qualificar o mel como um alimento nobre, assim como acontece com os selos de origem de vinhos, cafés e azeites, a empresa não compra os derivados sem saber a procedência deles. “Com uma boa assistência técnica, o produtor não precisa de uma área grande”, diz Jatyr, o que ajuda a disseminar a prática.

Na visão do empreendedor, ainda é cedo para avaliar o impacto social da atividade, mas a Beeva vai no caminho certo. A startup está firmando parcerias com a Embrapa e com prefeituras da região para desenvolver a apicultura e mostrar que é possível sim, “com foco e direcionamento, transformar a caatinga em um bioma-estrela da apicultura mundial”, conclui Jatyr.

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