“Foram dois anos intensos, assustadores em alguns momentos e surpreendentes em outros”

Daniel Vicentini - 31 maio 2019
A China foi o lar de Daniel e Thaisa por dois anos.
Daniel Vicentini - 31 maio 2019
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por Daniel Vicentini e Thaisa Marini

Quando decidi escrever sobre a China, pensei muito em como fazer isso de uma maneira cristalina, mas sem um tom de julgamento, crítica ou exaltação. Exemplo do quão difícil é escrever a respeito desse país: esta é a terceira versão do texto.

A China é muito diferente, em vários aspectos. Foram dois anos intensos, assustadores em alguns momentos e surpreendentes em outros.

Não, eu não comi carne de cachorro. Escorpião também não esteve no meu cardápio. Muitas destas comidas exóticas existem por lá, mas não são comuns ou fáceis de achar

O que encontrei foram frituras, legumes e noodles — o famoso miojo, com vegetais, proteína e um caldo bem apimentado! Bem, não existe China sem pimenta. A propósito, os vegetais e a maneira como os chineses preparam é maravilhoso. Acho que nunca comi tantos legumes e verduras em minha vida.

Morei em uma cidade no interior, longe dos grandes e famosos centros como Shanghai, Shenzhen, e a capital, Beijing. Trabalhei por dois anos para um dos maiores fabricantes de carros chinesa (a segunda de capital privado), no Studio de Design.

Fui de mala e cuia, minha esposa e meus dois filhos, encarar esse desafio. Com o Brasil em crise (2016-2017), tínhamos a oportunidade de aprender e entender a cabeça dos chineses, sua cultura, seu modo de vida e, profissionalmente, o mindset destes consumidores.

Como eu trabalhava muito, de segunda a sábado, viajamos muito menos que gostaríamos. Mas foi possível entender por que cada cidade é conhecida como um país diferente. Lembro que a primeira vez que fui a Shanghai, disse aos meus amigos que moram por lá que, para mim, aquilo não era a China.

Costumava dizer a ele que era o “portal de passagem entre o ocidente e a verdadeira China”. A cidade é linda e parece estar algumas décadas no futuro. Muitos estrangeiros e uma mistura cultural interessante. Mesmo sendo um estado de origem comunista, vi uma ausência do estado nas áreas de saúde, educação e previdência. Ao mesmo tempo, muito mais “dinheiro” circulando na economia. Neste aspecto, a China é tão ou mais capitalista do que os EUA.

Você pode observar nas ruas, ao lado de um triciclo com uma capota de plástico para proteger o motorista da chuva e do sol, um Rolls-Royce ou uma Lamborghini

Atendimento médico? Se você não possui dinheiro para pagar, está em apuros. Já nas grandes cidades se pode desfrutar de um seguro de saúde internacional, com hospitais capazes de receber estrangeiros e médicos que falam inglês, porém cobra-se o preço por isso.

A segurança lá era incrível, mas em oposição, havia um sentimento de controle total, do BIG BROTHER. Vigilância em todos os lugares.

Havia muitas câmeras de reconhecimento facial pelas ruas, estações de trem e aeroportos, além de diversos protocolos de controle

A nossa cidade:

A cidade Baoding, onde moramos, significa “protetora da capital” e possui por volta de 2 milhões de habitantes em sua área urbana e 11 milhões no total. Como o nome diz, ela possui uma importante base militar protetora de Beijing.

Também é famosa pelos altos índices de poluição, principalmente entre 2005 e 2015. Nós costumávamos usar máscaras em muitos dias do ano. Várias vezes ao dia, verificávamos os índices de poluição. Em alguns casos até em ambientes fechados, como no trabalho. Filtros de ar, eram itens obrigatórios nas casas.

Desde então, os níveis vêm melhorando, mas ainda são impensáveis para nós. Na culinária, a cidade é a capital nacional do donkey burguer (hambúrguer de burro), que já experimentamos, involuntariamente, acredito.

A cidade de Baodinng, onde a família viveu, é conhecida por ser uma importante base militar protetora de Beijing

A primeira dificuldade quando chegamos na cidade foi a comunicação. Quase ninguém fala ou entende inglês. Como parece óbvio, tentamos nos comunicar pelo tradutor do celular, mas imediatamente percebemos que isso não funcionava como precisávamos. Então, o jeito foi ficarmos experts na mímica!

Culturalmente a cidade era um gigantesco vilarejo de largas avenidas, shopping centers e arranha-céus. Existem alguns parques, com áreas verdes. O clima era extremo. O inverno, muito seco por sinal, com temperaturas de até -15ºC, e o verão com temperaturas de mais de 45ºC. Não sei se por isso ou pela poluição, ou mesmo por questões culturais, mas aconteciam atividades “indoor”. Os chineses aproveitavam o pouco tempo livre em restaurantes, Karaokes, e shoppings.

Era comum vê-los realizando exercícios durante a noite (thaishishuan), ou dancando em grupos nos diversos “pátios” públicos. Principalmente os mais idosos. O respeito aos mais velhos também nos surpreendeu. Tanto que interferia nos produtos que desenvolvíamos. Exemplo é que os consumidores chineses dão preferência a carros com grande espaço interno no banco traseiro, para os pais e os idosos.

No início de 2017, éramos poucos estrangeiros e nas ruas o assédio era constante. No início foi muito divertido e engraçado, pessoas nos parando, pedindo para tirar fotos, cumprimentando com sorrisos. Um certo dia, um colega no Studio saca o celular, abre uma rede social e mostra uma foto minha com a minha moto. Uma foto que eu nem sabia que existia e pergunta: “É você?”.

Ele encontrou o retrato na propaganda de uma loja com os dizeres “Os estrangeiros também compram nossa moto!!!”. Com o passar do tempo, começamos a entender o que as pessoas famosas sentem: a total falta de privacidade. Nos sentíamos o foco das atenções por onde andávamos ou, pior, alienígenas.

Educação chinesa:

As escolas chinesas são difíceis para os estrangeiros, tanto pela língua quanto pela cultura de ensino. No início, minha esposa e eu decidimos colocar nossos filhos na classe de chineses da escola da empresa. A ideia era oferecer a eles a oportunidade de aprenderem aquela cultura e facilitar a adaptação. Foi um desastre: as aulas eram o dia todo e a maneira como os chineses eram educados, com uma disciplina militar, era agressiva demais para duas crianças, do nosso ponto de vista.

Após três meses de aulas, vi nos olhos dos meus filhos um sentimento de desespero. Aquele foi o último dia que eles frequentaram a classe de chineses. Depois disso, foram mais seis meses em uma classe crianças estrangeiras. Mas de todas as idades, do meu caçula de 6 anos a uma adolescente de 14. Em resumo, era uma colônia de férias.

Uma lição que tiramos deste episódio foi que deveríamos ter preparado nossos filhos para a língua local, não o inglês como fizemos

Mas, acreditamos na informação que nos deram de que a escola seria internacional, já acolhera outras crianças com sucesso. A realidade era bem diferente. Escolas internacionais são raras e absurdamente caras na China. Também são concentradas em grandes centros. Na cidade em que morávamos não existia nenhuma, pelo menos não encontramos.

Consumo:

Já visitei os EUA, nunca vivi lá, mas acredito os chineses são tão ou mais consumistas do que os norte-americanos. Fiquei impressionado com a quantidade de opções e o volume de vendas. Em épocas de promoções, as portas dos condomínios se transformam em imensos pátios de entrega de mercadorias com milhares de caixas.

Nós usamos muito os e-comerces chineses, principalmente o TAOBAO. Bom essa plataforma merece um capítulo à parte. Imagine encontrar no mesmo local tudo, simplesmente tudo, que você possa imaginar, de carnes a equipamentos cirúrgicos. Um imenso Amazon. E a logística na China é surpreendentemente rápida. Entregas no dia seguinte, em dois ou três dias, são comuns.

Uma das terríveis consequências deste elevado nível de consumo é o desperdício e os resíduos gerados. É incrível a quantidade de material descartado na forma de embalagens ou produtos defeituosos

Comunicação:

Nas comunicações é onde você mais sente a presença do estado, ditadura, no dia-dia. Redes sociais globais como Facebook, WhatsApp, Instagram, Pinterest, Youtube são bloqueadas. As redes existentes são todas chinesas, adaptadas e, em alguns poucos casos, evoluídas das plataformas globais.

Os canais de televisão são todos estatais e não existe transmissão ao vivo. Há um delay de segundos para que seja realizada as edições necessárias

O controle é tão rígido que em novelas chinesas a orelha de atores que usam brincos ficam desfocadas para que não haja um incentivo ao uso deste acessório entre os homens. Pouco se noticia sobre o mundo fora da China. Tínhamos um decodificador de canais internacionais, que acredito não era  algo legal por lá.

O casal tentou adaptar os filhos à educação chinesa, mas achou o modelo muito rígido.

Contornar o “Firewall chinês” foi um dos primeiros truques que precisamos aprender para “sobreviver” lá. O VPN se tornou nosso melhor amigo. Sem o VPN, você fica ilhado em um mar de informações limitadas e muitas vezes de conteúdo duvidoso. São tantas outras histórias, fatos e curiosidades para contar…

Enfim, a China foi uma experiência importante na minha vida. Minha família amadureceu muito e desmistificou muitos das histórias que ouvíamos. Com tudo isso que escrevi, fica a questão se eu voltaria a viver lá ou não. A resposta é sim.

Lá não é fácil e os desafios são enormes, mas com uma mente aberta é incrível a quantidade de oportunidades que aquela região do globo está criando. Eles possuem um legítimo e forte sentimento de patriotismo e construção de um país tecnologicamente avançado. Lá as coisas acontecem. Para o bem e para o mal, é pouco plano e muita ação.

Ao voltar para o Brasil, ainda sofro de sentimentos antagônicos. Acho que me adaptei à China! O nosso sol, nossa natureza, nosso ar são únicos. Mas admito um choque do quanto estamos atrasados tecnologica e economicamente.

Não defendo o modo como as coisas andam por lá. A democracia ainda é o meu sistema. Mas me assusta quanto os chineses, os orientais em geral, estão focados em evoluir como sociedades, gerando riqueza e prosperidade, em confronto com o que o vejo aqui, do quanto nós brasileiros demandamos “benefícios” dos governantes.

Mas quando penso nas possibilidades e oportunidades que o Brasil oferece, acredito que podemos finalmente começar a construir o tal país do futuro que tantos falam. Construir para os nossos filhos e netos, para que eles desfrutem disso, sem ilusões de que será rápido e fácil.

 

Daniel Vicentini Lelis, 38, é automotive exterior designer com 16 anos de experiência na indústria automobilística. Tem passagens pela Volkswagen, Fiat, General Motors e, nos últimos dois anos, trabalha para a segunda maior montadora de capital privado da China, A Great Wall Motors.

Thaisa Marini, 37, administradora de empresas. Após o nascimento dos filhos, vem se especializando na arte da maternidade.

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