Sempre fui fã de HQs. Como grande parte dos brasileiros, aprendi a ler com os gibis da Turma da Mônica e, com meu pai, as páginas de tirinhas de jornal — ritual nosso que dura até hoje.
Tenho certeza de que esse hábito de leitura me levou a amar escrever e, assim, influenciou minha decisão de fazer faculdade de jornalismo.
Na contramão de grande parte dos leitores que consome gibis de super-heróis, eu não me interessava por essas histórias.
E esse é um fato importante, porque só depois de muitos anos me dei conta de que essa falta de interesse se dava por eu não me identificar com enredos e personagens baseados em uma visão de mundo masculina e machista, algo que ainda domina a produção deste segmento editorial
Até que, no começo dos anos 2000, encontrei dois livros que abriram muitas janelas em minha vida e me reaproximaram dos quadrinhos: Persépolis, de Marjane Satrapi, sobre a revolução islâmica no Irã, e Maus, de Art Spiegelman, sobre o Holocausto.
Eram duas das primeiras novelas gráficas a fazer muito sucesso pelo mundo, ampliando a linguagem dos quadrinhos para o formato de histórias autorais e longas, muitas delas autobiográficas.
Esses livros me fizeram entender as histórias em quadrinhos como uma grande possibilidade de conhecer outras visões de mundo, de me questionar, de querer aprender.
E foi assim que, em 2015, criei a Mina de HQ, plataforma independente e feminista sobre histórias em quadrinhos que deu uma reviravolta na minha vida pessoal e profissional.
Trabalho formalmente desde os 17 anos e toda minha carreira é permeada por diferentes experiências que me desafiaram.
Pude acompanhar, na redação e na edição, várias fases da Revista Tpm, da Editora Trip. Uma publicação questionadora que mudou o rumo do jornalismo feminino feito no Brasil.
Também passei pelo desafio de trabalhar na comunicação de uma embaixada africana na Argentina.
Já dirigi equipes de estratégia digitals, fui correspondente internacional de TV (sem ter conhecimento prévio desse formato de jornalismo) e até planejei um portal para a maior revista de pesca do país… Produzi conteúdo para grandes marcas, como Natura e Gol — quando ainda não sabíamos se aquilo era fazer jornalismo ou não
Também contribui para o crescimento e reconhecimento da plataforma de conteúdo e de cursos Prazerela, voltada à sexualidade positiva feminina.
Conto essa trajetória para explicar (inclusive para mim mesma!) que todas as oportunidades que tive como profissional me levaram a ser uma buscadora. Alguém que está constantemente aprendendo algo diferente e assimilando novas ferramentas.
A Mina de HQ nasceu dessa vontade de criar um negócio que fosse meu, onde eu pudesse aplicar tudo que aprendi, mas com um foco: divulgar histórias em quadrinhos de diversas artistas que passei a conhecer, principalmente, depois de cursar um mestrado em Antropologia Social e Política, em Buenos Aires.
Minha pesquisa foi sobre a representação da mulher e os discursos de gênero nos quadrinhos argentinos. As historietas — como são chamados os quadrinhos em língua espanhola — são parte importantíssima da cultura política do nosso país vizinho, assim como os movimentos liderados por mulheres.
Me envolvi com esses dois mundos e entendi melhor o feminismo. Passei a trabalhar buscando gerar um impacto social positivo em todos os projetos que criaria, ou dos quais participaria, a partir daquele momento
No começo, a Mina de HQ ocupava um espaço paralelo a outros trabalhos. Na época, eu publicava quadrinhos em perfis no Facebook, no Instagram e no Twitter, e escrevia uma coluna para a Tpm sobre mulheres que fazem HQs.
Também realizava palestras sobre o conteúdo da minha pesquisa de mestrado. Assim, a Mina de HQ foi crescendo, ganhando corpo e público.
Em 2018, comecei a atuar de forma autônoma como jornalista e consultora e passei a me dedicar ainda mais ao projeto.
A resposta veio rápido e acompanhada pela vontade de fazer mais e mais. Hoje, além das redes sociais, a Mina de HQ tem site, revista impressa, clube de leitura, newsletter, vídeos com dicas de leitura e entrevistas com quadrinistas.
Sigo realizando palestras, faço mediação de debates sobre HQs e gênero, e crio estratégias de comunicação para empresas tendo como ferramenta o universo dos quadrinhos.
Todos os meses, publico tirinhas com a personagem da Mina de HQ, desenhada por Anna Mancini, responsável pela identidade visual da plataforma. E ainda convido artistas a criarem histórias temáticas.
Meu objetivo principal é fazer uma curadoria crítica de histórias em quadrinhos, produzir conteúdos consistentes e interessantes, além de divulgar o trabalho de artistas mulheres, transmasculinos e não bináries
Uma produção incrível que ainda é invisibilizada pelo mainstream, pela cena brasileira e até mesmo (infelizmente) por outros canais independentes que produzem conteúdo sobre HQs no país.
Por isso, diariamente, estabeleço a meta de contribuir para que possamos furar as nossas próprias bolhas e ler histórias sobre outras personagens, enredos e mundos ainda desconhecidos por muitos leitores.
Ao longo de quase sete anos, a Mina de HQ se tornou referência como plataforma independente e feminista sobre histórias em quadrinhos. Hoje, é um dos mais relevantes canais sobre HQs e gênero no país.
Em novembro de 2021, a Revista Mina de HQ recebeu uma homenagem especial do 33º Troféu HQMIX, principal prêmio de histórias em quadrinhos do Brasil.
Tem sido uma jornada bonita, totalmente independente e feminista (meu público ainda é formado 80% por mulheres): uma combinação um tanto quanto desafiadora no Brasil.
O mercado (ou a cena) de quadrinhos daqui é quase todo comandado por homens. O “clube do Bolinha” nunca deixou de existir, apesar de termos muitos aliados
Não tenho uma equipe fixa, faço muita coisa eu mesma, e conto com a parceria de algumas pessoas que acreditam na importância deste trabalho.
Faço questão que todas as minhas parcerias sejam remuneradas, mesmo que simbolicamente. O dinheiro que entra ainda é pouco, dependo da verba que recebo da campanha de financiamento coletivo recorrente que que mantenho (e que hoje conta com 86 pessoas apoiadoras).
Outra parte do orçamento vem de campanhas pontuais, das vendas da loja virtual da Mina de HQ e da remuneração que recebo por participar de eventos e de parcerias que fecho.
O mercado de quadrinhos no Brasil ainda está engatinhando, mas é bacana ver como empresas e marcas enxergam cada vez mais valor em novas possibilidades de estratégias de comunicação.
E no meu caso, o valor em unir diversidade, gênero e o formato das histórias em quadrinhos como narrativas de storytelling.
Já criei quadrinhos para divulgar produtos, assim como estratégias de educação e cultura corporativa. Importantes editoras, como Companhia das Letras e Todavia, também se tornaram parceiras do Clube Historietas, o clube de leitura de quadrinhos da Mina de HQ
Juntas, reforçamos a divulgação de livros, geramos conhecimento sobre os temas abordados e ainda estendemos o alcance de público às publicações.
Outro fruto dessa trajetória é o reconhecimento em grandes eventos do segmento, como CCXP, Festival Path e Flip, para os quais já realizei palestras e mediações.
Agora, o próximo passo é criar um plano de captação de recursos e projetos para editais.
A Mina de HQ é um projeto político, assim como minha escolha editorial focada em gênero.
Ao longo dos anos, me juntei a artistas para pensar formas de nos organizar a fim de questionar a baixa indicação de mulheres em prêmios nacionais, reivindicar mais diversidade nos eventos e explicar (e como explicamos…!) que mulheres não falam apenas sobre ser mulher.
Queremos mostrar que há artistas que poderiam ter suas obras publicadas por grandes editoras. Estas e outras lutas já colhem algumas conquistas, mas ainda precisamos percorrer bastante chão para que haja uma equidade neste segmento editorial.
Quando a Mina de HQ nasceu, meu foco estava apenas na produção de mulheres cis e trans, apesar de o questionamento em relação à hetercisonormatividade e à binaridade compulsória de gênero permear toda minha pesquisa acadêmica.
Segui estudando, escutando e aprendendo até decidir incluir na plataforma pessoas não binárias e transmasculinas — mirando sempre na inclusão
O aprendizado continua. Uma pessoa não tem sua vida marcada somente por seu gênero, mas pela cor de sua pele, pela orientação sexual, pela classe social, pela sua origem, e por aí vai.
Seria impossível haver uma perspectiva de gênero sem levar em conta outros marcadores sociais. Me inspiro muito no feminismo interseccional.
Todas essas vivências ajudam a construir narrativas cada vez mais ricas. Por isso é tão importante buscar diversidade na hora de escolher qual será sua próxima leitura: o que vamos ler no celular, no tablet, em redes sociais ou impressa e que vai nos mostrar outros mundos?
Como diz a pesquisadora argentina Mariela Acevedo, nem todo quadrinho feito por mulheres é feminista…, mas podemos partir de uma perspectiva feminista para pesquisar e ler quadrinhos.
Isso vale para tudo. E a Mina de HQ nasceu dessa ideia.
Gabriela Borges é jornalista, curadora e mestra em antropologia. Fundadora da Mina de HQ, publicou o livro digital Encuentre su Clítoris – Observaciones sobre una revista de historieta de género en Argentina (2020), pela Marca de Fantasia, e co-organizou a antologia Quadrinhos Queer (2021), pela Skript.
Grávida no começo da pandemia, Thais Lopes resolveu ajudar a construir um país melhor para a sua filha. Deixou a carreira corporativa e fundou a Mães Negras do Brasil, negócio de impacto com foco no desenvolvimento desse grupo de mulheres.
O jornalista André Naddeo sentia-se estagnado, até que deixou a carreira e foi viver um tempo num campo de refugiados na Grécia. Ele decidiu então se desfazer de suas posses para ser mais livre e acolher imigrantes por meio de uma ONG.
Nascida na periferia de Manaus, Rosângela Menezes faz parte da primeira geração de sua família a ingressar na faculdade. Ela trilhou carreira no marketing digital e conta como fundou uma edtech para tornar esse mercado mais diverso.