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“Poder é um palavrão na boca de uma mulher. A gente não foi ensinada a querer isso, mas a agradecer pelo que nos oferecem”

Dani Rosolen - 4 fev 2025
Beatriz Della Costa (à esquerda) e Mariana Ribeiro, cofundadoras do estúdio Clarice.
Dani Rosolen - 4 fev 2025
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Quantas mulheres você conhece em cargos de poder? E quais te inspiram? Se você demorou para responder essas perguntas, talvez seja porque faltem referências no imaginário coletivo sobre o tema.

E isso não é culpa sua, até porque a realidade joga contra: apenas 11% das mulheres são chefes de estado; nos parlamentos, a porcentagem sobe, mas nem tanto: em todo o planeta, somente 25% das mulheres são parlamentares. E no universo corporativo, a parcela feminina representa apenas 6% dos times executivos.

Para criar um novo imaginário do poder feminino e impulsionar cada vez mais mulheres a ocupar e exercer, de fato, o poder nasceu o estúdio CLARICE, fundado pela cientista social e empreendedora Beatriz Della Costa, que atualmente vive em Cambridge (EUA), onde faz um mestrado em Harvard, e equilibra os estudos com o novo projeto; e a comunicadora estratégica Mariana Ribeiro, que hoje se dedica integralmente ao desenvolvimento da organização.

Lançada oficialmente no fim de 2024 em uma cerimônia, a convite de Rose Setúbal, no Itaú Cultural, o evento contou com a presença de 160 mulheres e teve direito à leitura de contos de Clarice Lispector, escritora homenageada pelas cofundadoras no nome da iniciativa.

“Essa referência a Clarice tem a ver com a sua autenticidade e inovação. Ela desenvolveu um tipo de literatura que não existia na época e bancou isso, sem se justificar. Simplesmente foi lá e desenvolveu uma arte profundamente feminina e com uma linguagem extremamente complexa, que é reverenciada até hoje”, diz Mariana.

COMUNICAÇÃO, INOVAÇÃO E IMPACTO SOCIAL COMPÕEM A TRAJETÓRIA DE MARIANA

Natural do Rio de Janeiro, Mariana, por essência, é uma comunicadora. “Sinto que hoje a minha carreira transita um pouco na intersecção entre a comunicação estratégica, o impacto social e a inovação.”

Ela começou sua trajetória profissional na Rede Globo; depois, em 2009, já em São Paulo, fez parte do programa de trainee do Itaú Unibanco nas áreas de inovação e marketing, quando teve a oportunidade de integrar um projeto para investigar o propósito da marca:

“Esse foi um projeto que de certa forma definiu tudo o que aconteceu depois, porque falar de propósito e fazer essa investigação para uma marca não foge muito de você fazer essa investigação para si”

Nessa pegada de propósito, em 2013, ela cocriou o “Imagina na Copa”, que divulgava iniciativas positivas e transformadoras e rodou o Brasil produzindo 75 curtas sobre jovens ativistas de todo o país. Em Nova York, onde foi morar no ano seguinte por conta de uma proposta de trabalho recebida pelo marido, atuou na Purpose, atendendo marcas como Intel, Nike e Unilever.

DE VOLTA AO BRASIL, ELA SE APROXIMOU DE QUESTÕES DE GÊNERO

Mariana retornou para São Paulo em 2017, quando foi convidada para se tornar diretora de comunicação da Nossas, rede de ativismo que organiza pessoas, desenvolve metodologias e tecnologias para mobilização no Brasil.

Foi lá que mergulhou em questões relacionadas a gênero, ajudando a lançar o Mapa do Acolhimento (hoje, uma plataforma independente que conecta mulheres que sofreram violência a uma rede de terapeutas e advogadas) e a Beta Chatbot (primeiro robô feminista que acompanhava de perto a tramitação e votação de projetos de lei que falassem sobre direitos das mulheres, em especial os sexuais e reprodutivos).

“Na Nossas, eu fiquei muito mergulhada no tema de mulheres, fosse pela questão da violência de gênero, fosse pela incidência política. Senti que aquele era meu tema”

Apesar da identificação, lidar com os pedidos de ajuda relacionados a um assunto tão sensível  — em um único dia, chegavam a receber 5 mil pedidos –, ainda mais naquele momento político que o Brasil vivia, com a eleição de Jair Bolsonaro (sabidamente contrário a bandeiras feministas), acabou minando sua saúde mental. Mariana, então, resolveu se afastar.

Ela foi trabalhar no cinema, na campanha do documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, e seguiu na área com a produtora inglesa Violet Films. Em 2020, assumiu a liderança do escritório da Purpose no Brasil, onde ficou por cerca de três anos. Até que nasceu CLARICE…

NUMA CONVERSA COM A FUTURA SÓCIA, A IDEIA DE CLARICE VEIO À TONA COMO UMA “DESCARGA ELÉTRICA”

As cofundadoras do estúdio CLARICE já se conheciam do ecossistema de impacto social há mais de dez anos e estavam trabalhando próximas no Instituto Update, organização da qual Beatriz é fundadora e Mariana, conselheira. Foi a cientista social que levantou a ideia da iniciativa para a comunicadora.

“A Bia passou muitos anos entrevistando mulheres em espaços de liderança política, conversou com mais de 100 mulheres na América Latina inteira. E ela trouxe para mim um diagnóstico que me tocou de forma muito profunda. Foi como uma descarga elétrica, um pouco desse choque quando começam a descrever coisas que a gente viveu e vive, mas não são particulares da nossa experiência”, lembra.

“Ela disse que nós, mulheres, estamos no poder, mas não temos poder. A gente acha que o maior esforço é chegar lá, mas o que acontece depois é um desafio muito maior”

Mariana e Beatriz passaram a estudar, juntas, o tema, ampliando o escopo da política para outras áreas. E logo a dupla percebeu que, para além da violência de gênero e assédio, as mulheres que chegam ao poder precisam se masculinizar e abrir mão da sua própria personalidade — mesmo que já seja comprovado, como pontua Mariana, que suas lideranças geram mais valor compartilhado, incluem mais grupos minorizados e desenvolvem políticas mais efetivas.

“Acontece que poder ainda é um tema interditado, um palavrão na boca de uma mulher. A gente não foi ensinada a falar sobre isso ou querer isso. A gente foi ensinada agradecer pelo que nos oferecem e acabou. Então, falar sobre esse tema é um serviço.”

O estúdio CLARICE faz isso em duas frentes: inteligência e criação.

O PILAR DA INTELIGÊNCIA ESTÁ RELACIONADO A PESQUISAS

Na frente de inteligência, a missão de CLARICE é produzir pesquisas qualitativas e quantitativas inéditas para investigar os modelos que definem o poder das mulheres em nossa sociedade.

O objetivo? Gerar conhecimento público para desenhar estratégias e soluções que alimentem os setores cultural, social e público na pauta de gênero e suas múltiplas dimensões.

A pesquisa inaugural do estúdio intitulada “O Imaginário de Poder das Mulheres Brasileiras” está sendo desenvolvida junto com outros institutos, como a Fundação Itaú e Tide Setubal, e deve ser lançada no segundo semestre de 2025.

“A gente quer tirar um retrato do que vai no imaginário cultural brasileiro quando se pensa em mulheres no poder. Aonde a gente pensa que pode chegar? Quais são as maiores referenciais de poder?”

A pesquisa será nacional e interseccional, olhando para raça, orientação sexual e idade e apontando o que conecta e o que separa essas mulheres em termos de imaginário. As cofundadoras ainda não definiram o número de pessoas ouvidas, mas devem entrevistar homens também para a amostra quantitativa.

Ainda não há dados preliminares sobre o estudo, mas a comunicadora conta que há uma pista do que pode vir por aí a partir do que Beatriz havia constado naquela pesquisa já mencionada, cujo diagnóstico gerou a “descarga elétrica” em Mariana.

Ao conversar com mais de 100 mulheres para realizar a websérie Eleitas (sobre mulheres na política), coproduzida por Instituto Update, Maria Farinha Filmes, Quebrando o Tabu e Spray Content, Beatriz ouviu da maioria delas, inclusive de líderes, quando questionadas sobre referências de poder feminino, que a resposta eram suas mães ou outras familiares.

NA FRENTE DE CRIAÇÃO, O OBJETIVO É PRODUZIR CONTEÚDOS AUDIOVISUAIS ENGAJADORES

Com as produções audiovisuais, o intuito de CLARICE é desenvolver histórias para povoar o imaginário sobre o poder das mulheres por meio de diferentes linguagens e formatos. Essas produções podem ser desde documentários, ficção e livros a podcasts e novelas.

Atualmente, o estúdio tem dois projetos em fase de desenvolvimento. O primeiro é uma série chamada “Minas de Ouro”, que vai contar a história de dez empresárias brasileiras de sucesso (cinco negras e cinco brancas), mas que ainda não são amplamente conhecidas pela sociedade. O que impulsionou o projeto foi o dado de que empresas fundadas apenas por mulheres têm acesso no Brasil a apenas 0.04% do capital de risco.

“Nossa ideia é que elas possam contar sobre suas trajetórias, não só do ponto de vista de sucesso, mas também das dinâmicas que precisaram viver por serem mulheres e o que fizeram para desafiar essa estrutura.”

Na paralela, CLARICE está desenvolvendo um filme baseado em fatos reais, intitulado provisoriamente de “As Constituintes”, retratando as histórias das mulheres que participaram da Assembleia Constituinte do Brasil em 1988. A inspiração veio de uma pesquisa que Beatriz fez para um podcast lançado em parceria com a Rádio Novelo e com o Deezer chamado “Jogo de Cartas”. No programa, ela entrevistou muitas dessas mulheres constituintes.

“Isso nos deu vontade de escrever um filme olhando para a realidade delas de forma mais profunda, contando não só sobre o Lobby do Batom, mas sobre outras articulações fundamentais para que a gente pudesse ter mulheres na Constituição”

A ideia é lançar o filme em 2028, ano que em que se comemoram os 40 anos da nossa Constituição.

O ESTÚDIO ATUALMENTE FUNCIONA COMO UMA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Por enquanto, CLARICE está organizada como uma ONG; os projetos são desenvolvidos por meio de capital filantrópico, com doações vindas tanto de fundações e institutos quanto de pessoas físicas, mulheres que acreditam nesse ideal. As cofundadoras, porém, estudam formas de gerar receita futuramente.

A dependência da filantropia é um desafio, geralmente o maior enfrentado por projetos que dependem de doações.

“O campo da filantropia é muito pequeno e com muita demanda, e a gente sente que a pauta da equidade de gênero perdeu prioridade na agenda dos financiadores. A sensação é que está rolando um backlash, um retrocesso grande relacionado à diversidade e inclusão”

E a sensação está provada com várias empresas, como Meta, Amazon e tantas outras cancelando suas iniciativas de diversidade na esteira da eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos. Esse retrocesso, entretanto, não impede as cofundadoras de seguir em frente.

“Nosso sonho é lançar em breve essa pesquisa aqui no Brasil, fazendo um bom barulho para que possa ser muito útil para quem trabalha na pauta de gênero. E, depois, criar laboratórios de impacto, que são momentos imersivos em que vamos chamar outras organizações para entrar em contato com esses dados”, diz. “Outro sonho é rodar essa pesquisa no México, único país da região que tem lei de paridade em tudo, então nossa ideia é olhar para o México como um modelo para o Brasil.”

 

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