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Baiana que “não gostava de axé”, Kika fez carreira na moda e no jornalismo. Hoje, vive de ajudar marcas a desconstruir estereótipos

Anna Oliveira - 18 jul 2023
Kika Brandão, head do Estúdio Eixo.
Anna Oliveira - 18 jul 2023
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Quem já teve oportunidade de conversar com Kika Brandão, 37, pode ter reparado que, com frequência, uma palavra se repete nas falas da baiana natural Itapetinga (a cerca de 450 quilômetros de Salvador): decodificar

Não se trata de um vício de linguagem ou falta de vocabulário. O ato de decodificar faz parte de boa parte da trajetória de Kika. Da sua primeira experiência profissional como assistente na São Paulo Fashion Week (SPFW), ao suporte dado às grandes marcas atualmente no Estúdio Eixo, seu trabalho consiste em captar informações, interpretá-las e traduzi-las. Ou, como o dicionário define o verbo transitivo direto, “transferir para um código compreensível”.

“Acho que a bagagem que o jornalismo traz pra gente foi muito importante para que eu pudesse chegar onde estou. Como jornalista, você precisa saber ouvir, saber decodificar e saber traduzir isso em um bom briefing — usando um termo da publicidade”

Hoje, no papel de head da Eixo, uma consultoria estratégica que mapeia as transformações comportamentais e culturais para diferentes negócios, Kika apoia empresas no desafio de conhecer melhor o seu público e a causar um impacto positivo genuíno, que não se resuma às frases de efeito típicas de campanhas marqueteiras. 

Ao longo dessa jornada, ela teve oportunidade de trabalhar com marcas como Bauducco, Consul e Skol, além de desfazer mitos do mercado de consumo. Um deles é que as empresas deveriam focar seus esforços de venda em uma faixa etária mais jovem.

“Quando olhamos para as faixas de consumo, a maioria das marcas mira no grupo entre 18 e 30 e poucos anos, mas a maior faixa de consumo no Brasil está nas mulheres 45+. Estamos falando de pessoas que têm o desejo de consumir produtos melhores e que estão numa fase da vida com maior poder aquisitivo, que estão dispostas a investir mais”

Para chegar até aqui, porém, Kika não trilhou um caminho exatamente linear. Seus primeiros passos profissionais foram na passarela — ou melhor dizendo, perto dela. 

RECÉM-CHEGADA A SÃO PAULO, ELA VIROU ASSISTENTE NA FASHION WEEK E ABRIU CAMINHO PARA TRABALHAR COM REVISTAS CUSTOMIZADAS

Já na adolescência, Kika cultivava o interesse pela moda. “Menos foco em comprar roupa e mais na coisa de buscar referências”, diz a head da Eixo. 

Para ela, São Paulo Fashion Week, editoriais e revistas da área não se resumiam ao desfile de tendências na passarela. Moda era, antes de tudo, uma forma de comunicação, de se expressar — ainda mais para uma jovem do interior que não se identificava com o imaginário que os “sudestinos” têm de uma baiana. “Eu não gostava de axé, não ia para o Carnaval, tinha o cabelo rosa…”, lembra rindo. 

Foi por isso que, depois de largar o curso de Publicidade e Propaganda em Salvador, ela optou por estudar Desenho de Moda no Senac, em São Paulo. Kika chegou na capital paulista com 17 anos e, logo aos 18, teve a oportunidade de acompanhar de perto um dos maiores eventos de moda no Brasil. E esse foi o começo de sua longa jornada no mundo fashion.

“Falaram na faculdade que tinha uma vaga de assistente de estilo na Fashion Week e eu fui lá. Também trabalhei como assistente em outros desfiles, como um da [marca] Ricardo Almeida na Daslu e, por causa dessa experiência, conheci uma pessoa que me indicou para uma vaga na Editora Globo. Fui entrevistada, passei e comecei a trabalhar na área de revistas customizadas”

A publicação, no caso, era uma revista da Renner, a primeira grande marca com a qual Kika atuou. A profissional lembra que, naquela época — o ano era 2007 —, ainda não se falava em branded content, mas foi ali, no núcleo de projetos especiais da Editora Globo, que ela aprendeu tal ofício. “Foi um laboratório”, diz Kika. 

Como produtora de moda, ela precisava ver a coleção da marca e pensar em como traduzir o conceito para as fotos e os textos. Sua missão, veja só, era decodificar a identidade da Renner para, então, criar uma narrativa que alcançasse o seu público. 

“MUITO DO QUE A PUBLICIDADE FALA SOBRE ‘O CONSUMIDOR NO CENTRO’, EU APRENDI FAZENDO REVISTA”

Esse processo de identificação da informação, processamento e tradução se repetiu nas outras publicações nas quais atuou. De 2008 a 2013, Kika trabalhou na Editora Abril, passando pelas revistas masculinas VIP e ALFA. 

Foi naquele ambiente que ela aperfeiçoou o processo de pensar o conteúdo de uma maneira integrada e a estudar o público consumidor profundamente. 

“O que as marcas começaram a fazer mais recentemente, nós já fazíamos nas redações. Aquilo de conhecer o leitor, de escutar… Eram organizados grupos com os leitores na redação para entendermos se o que estávamos propondo e se as matérias de serviço que estávamos entregando de fato interessavam às pessoas. Ou seja, muito do que a Publicidade fala hoje sobre ‘o consumidor no centro’, eu aprendi lá atrás fazendo revista — só não tinha esse nome”

Durante aquele período, Kika também teve um aprendizado importante — um aprendizado replicado no Estúdio Eixo. Trata-se da importância da relação horizontal da marca com as pessoas que compram seus produtos ou serviços.

MENOS HIERARQUIA E MAIS DIÁLOGO

Conhecer o indivíduo por trás da compra efetuada é uma forma não só de humanizar essa relação comercial, mas de desfazer estereótipos. 

Para Kika, as marcas precisam se aproximar do consumidor de um jeito muito mais horizontal e com uma postura verdadeiramente aberta para o aprendizado, afinal, não são raras às vezes em que produtos e serviços são pensados para um público idealizado, em vez de um que seja real. 

“Primeiro, deveríamos nos aproximar das pessoas e, depois, colocar o produto na rua. É um processo que parte de outro lugar”, defende a head do Eixo. 

Tal inversão de lógica contribui também, na sua opinião, para o diálogo com públicos diversos. Isso porque, ao parar e escutar, as marcas têm a oportunidade de se aprofundar sobre questões culturais e de comportamento, desconstruindo estereótipos. 

“Um incômodo que temos na Eixo é o que vemos muitas vezes na Publicidade de colocar todo mundo em uma única caixa. Aquilo de achar que o meu consumidor é da classe C e que todos desse grupo são iguais, quando, por exemplo, a classe C da Bahia pode ser de um jeito e a classe C no interior de São Paulo, de outro”

Para que esse processo aconteça, contudo, é necessária uma abertura para a dúvida, o aprendizado, o desconhecido. Ou, melhor ainda, é necessário estimular a curiosidade — algo que, inclusive, impulsionou a carreira de Kika para outros lugares, como a gastronomia.

AO LONGO DE TRÊS ANOS, KIKA LAPIDOU SUAS EXPERTISES EM UM HUB DE ENTRETENIMENTO GASTRONÔMICO

Mesmo seu enfoque sendo a Moda, Kika tinha o hábito de “colar” em outros editores quando trabalhava nas redações jornalísticas — especialmente os editores de Gastronomia. Para ela, assim como as roupas, a comida traduz uma cultura e comunica uma mensagem. 

Por isso, sua mudança de carreira de um mercado editorial para uma foodtech foi, de alguma forma, natural. Em 2016, Kika assumiu a função de coordenadora de projetos especiais e brand experience na Foodpass, um hub de entretenimento gastronômico, reunindo diversas expertises, como a habilidade de desenvolver projetos de conteúdo e a experiência de lidar diretamente com marcas. 

Ao longo de aproximadamente três anos, ela também aprendeu muito, claro. As metodologias ágeis e as ferramentas digitais, aliás, estão na bagagem que Kika levou para a sua jornada de reestruturação do Estúdio Eixo. 

“Na Foodpass, eu pude experimentar o que era trabalhar em um lugar menor e com menos hierarquia do que a [Editora] Abril”

Olhando para trás, ela vê aquela fase pré-Eixo como um momento de lapidar suas habilidades voltadas para o universo das marcas. 

“Foi quando passei a me relacionar com muito mais marcas ao mesmo tempo – e, de tanto escutar os seus problemas e dilemas, comecei a entender que eu era uma espécie de ‘psicóloga de marcas’.”

NA EIXO, ENTRE OUTROS CASES, ELA AJUDOU A CONSUL A SE RECONECTAR COM O PÚBLICO NORDESTINO

Em 2019, Kika teve uma reunião com duas profissionais que trabalhavam na Eixo. Elas procuravam alguém que pudesse organizar, estruturar, pensar realmente como a consultoria poderia sair do campo da ideia e ir para o campo da materialidade. Enfim, de novo o verbo “decodificar” na vida de Kika. 

Com experiência nessa arte, ela topou o desafio. 

“Eu fui pra Eixo encantada muito mais pelo que ela poderia ser e muito menos pelo que ela era porque a Eixo estava vivendo um momento de mudança de sociedade, mudança de nome… Quando cheguei, não tinha nem job description, não tinha um cargo. Brinco que até hoje não tenho um cargo – sou ‘fazedora’ em várias frentes”

De lá pra cá, a consultoria ganhou mais espaço no mercado e exibe no seu portfólio clientes como Google, Skol, TikTok e XP. Em cada projeto, a Eixo compõe um time multidisciplinar para trazer, além de especialistas em campos do conhecimento variados, uma pluralidade de visão sobre o público de interesse da marca. Um aprendizado que Kika trouxe lá da sua época de escuta ativa com os grupos de leitores das revistas.

Foi através desse método que a consultoria conseguiu, por exemplo, reconectar a Consul com a região Nordeste do país, com a qual a marca passou mais de dez anos sem se comunicar. 

“A marca tinha como grande objetivo vender máquinas de lavar para o Nordeste, mas não adiantava fazer isso com a lógica de uma equipe de homens brancos do Sudeste. Trouxemos para o processo um time com especialistas variados da região, etapas de conversa com mulheres nordestinas e pesquisas para entender a realidade local”

Um dos achados da etapa de pesquisa foi que o ritual de lavar roupa na mão, culturalmente, era associado ao cuidado e carinho. Por isso, a introdução de uma máquina precisava vir como uma espécie de parceria e não de completa substituição. De insights como esse, surgiu a seguinte campanha: 

Para Kika, uma abordagem assim é não só mais contemporânea, como mais certeira, já que as pessoas tendem a prestar mais atenção às empresas que se conectam à cultura da região ou do grupo com o qual elas querem dialogar — ou, numa linguagem mais capitalista, vender. 

É uma mudança que significa entender o propósito de uma empresa para além da transação comercial pura e simples, estudando e compreendendo quais tipos de relações ela pode estabelecer com as pessoas ao redor. 

Na Eixo, esse “fenômeno” foi batizado como “marcas pós propósito”. O conceito é tema de um estudo publicado no ano passado pela consultoria, o qual defende que, se antes as marcas eram única e exclusivamente orientadas pelo lucro e guiadas por um tom aspiracional publicitário, agora elas são convocadas a atuarem como agentes de mudança social. 

Dados, como o de um levantamento do Twitter feito em parceria com a Kantar em 2021, sustentam a tese. Segundo a pesquisa, 74% dos 2 mil brasileiros entrevistados preferem empresas que se conectam à cultura; e 68% acham que as marcas precisam dar algo em retorno à comunidade de alguma forma.

Reeducar as empresas nesse caminho não é fácil – requer conversa, pesquisa e mais conversa… Da mesma forma, é preciso persistência para quebrar mitos e desconstruir estereótipos do mercado publicitário. Mas para quem, como Kika, gosta de decifrar um enigma, esse tipo de quebra-cabeça é uma delícia.

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