“Alô, feministas de plantão.” A provocação, postada no Facebook por um conhecido qualquer, irritou a empresária Camila Farani, 34, enquanto ela corria os olhos por sua timeline. Não que o recado fosse direcionado a ela – não era. Mesmo assim Camila se sentiu atingida pelo tom irônico do post. Ao mesmo tempo, a própria reação também a surpreendeu. Afinal, ela não queria adotar nenhum rótulo nem se identificava com a ideia de “queimar sutiã”, tão associada ao feminismo… De onde vinha, então, tanto incômodo?
Foi a partir desse sentimento ambíguo que a empresária embarcou numa reflexão sobre a própria história, aguçou o olhar para a trajetória de outras mulheres e descobriu uma bandeira que queria empunhar: estimular o empreendedorismo feminino.
Hoje, Camila integra o trio à frente da MIA – sigla para Mulheres Investidoras Anjo. A iniciativa, que também conta com Ana Fontes, 49, (da Rede Mulher Empreendedora) e Maria Rita Spina Bueno, 51, (da Anjos do Brasil), nasceu em 2014 e é a primeira do tipo no Brasil. Seu foco: capacitar mulheres para que elas possam investir em negócios de alto impacto liderados por outras mulheres. “Esse é meu maior desafio e propósito de vida agora”, diz Camila.
Órfã de pai desde pequena, ela conta que cresceu numa família de mulheres fortes, mas conservadoras. Quando sua mãe precisou decidir qual dos dois filhos teria a chance de estudar em uma escola particular, escolheu o menino. Camila foi estudar no Colégio Militar e, nas horas livres, ainda precisava ajudar a mãe a gerir a Tabaco Café, no centro do Rio, de onde vinha a renda familiar. O que poderia ser encarado como obrigação, porém, acabou se tornando paixão. Ali na cafeteria, Camila descobriu que tinha talento para o mundo dos negócios.
Atenta a oportunidades que alavancavam as vendas, ela acabou se tornando sócia da mãe, abriu uma empresa de fast food saudável e foi chamada para dirigir o Grupo Mundo Verde, de onde saiu em 2012 para fundar o Grupo Boxx, também com foco em alimentação. Ao mesmo tempo, crescia como investidora. Ajudou a fundar o Lab22 (laboratório de investimento-anjo) em 2012 e pouco depois assumiria a vice-presidência do Gávea Angels. Além disso, passou a dar aulas de empreendedorismo e gestão na prestigiada FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Em resumo: tudo ia bem, mas mesmo assim ela se sentia como uma “estranha no ninho”. Em todas as reuniões de trabalho, se deparava apenas com homens ao redor da mesa:
“Eu me sentia muito sozinha. Onde estavam as outras jovens empresárias, líderes, mentoras?”
Desse desequilíbrio, dessa falta de mulheres com representatividade no mundo dos negócios nasceu a MIA. A impressão de Camila não é algo isolado. Existe uma grande discrepância entre homens e mulheres quando se avalia tanto quem investe como quem recebe investimentos – e essa situação não se restringe ao Brasil. Recentemente, o projeto Startup DNA divulgou que no Reino Unido os homens têm 59% mais chance de receber um investimento anjo do que as mulheres, número que sobe para 86% no caso de venture capital.
Uma das explicações geralmente levantadas tem a ver com “reconhecimento de padrões”, ou seja, investidores tendem a apostar em modelos parecidos com aqueles que já conhecem. E o mundo dos investimentos é predominantemente masculino. Um levantamento do Babson College mostrou que apenas 6% dos sócios de fundos de venture capital no mundo são mulheres – em 1999, eram 10%. Até gigantes como a Intel Capital estão atentas à necessidade de trazer diversidade ao sistema. A empresa lançou em junho o Diversity Fund, que deve destinar 125 milhões de dólares para startups lideradas por mulheres (ou por representantes de minorias) ao longo dos próximos cinco anos.
MULHERES SÃO 1% DAS CEOS DE STARTUPS BRASILEIRAS
Tudo isso convenceu Camila, Ana e Maria Rita de que, para estimular o empreendedorismo feminino, elas precisariam de mais mulheres na outra ponta, ou seja, dispostas a oferecer apoio financeiro e mentoria. Mas atenção: a meta não é, neste caso, incentivar qualquer negócio, e sim aqueles inovadores e de alto impacto.
É importante fazer essa distinção porque, quando olhamos para o quadro geral, os dados indicam que as brasileiras já estão empreendendo bem mais. Segundo o Sebrae, entre 2004 e 2014, o número de mulheres nessa posição cresceu 21,4% (entre homens, aumentou 9,8%). Elas se dedicam, em primeiro lugar, a serviços de cabeleireiro e beleza (14,7%), depois a alimentação (9,3%), e em terceiro, a serviços ambulantes (8%).
O órgão não tem dados sobre a presença das mulheres em startups, por exemplos, mas é possível ter uma ideia do quadro por meio do ranking elaborado pela consultoria Dell, o 2015 Global Women Entrepeneur Leaders. O levantamento leva em conta aspectos como disponibilidade de capital, acesso das mulheres a educação, presença feminina em postos de liderança e à frente de negócios inovadores. Dentre 31 países, o Brasil aparece em 18º lugar e, segundo o estudo, apenas 1% das startups em expansão no mercado pertencem a mulheres.
Ana Fontes constata isso na Rede Mulher Empreendedora. Segundo ela, a maioria das participantes está ali porque descobriu, ao se tornar mãe, o quanto o ambiente corporativo ainda é hostil para quem tem crianças pequenas. Outras, na faixa dos 50 anos, já criaram os filhos e agora não encontram lugar no mercado de trabalho. Há também as mulheres de baixa renda, cujo salário não cobria os gastos com as crianças e, por isso, passaram a trabalhar em casa.
Ainda são raras, segundo Ana, as participantes envolvidas em economia criativa e negócios ligados a tecnologia. Daí a importância de iniciativas como a MIA — que tem cerca de 70 mulheres investidoras, 10% delas ativas. O grupo não revela os valores investidos.
“Nosso investimento anjo visa startups, e temos poucas mulheres nesse segmento. O que se vê nessas empresas é que 90% das pessoas envolvidas são homens brancos de alta escolaridade. E você não vai criar coisas muito inclusivas num ecossistema onde 90% dos participantes têm o mesmo perfil”, diz Ana.
Maure Pessanha, 33, diretora-executiva da Artemisia, aceleradora de negócios de impacto social, compartilha da mesma preocupação. Segundo ela, cerca de 80% das inscrições que recebe são de empresas lideradas por homens – o que ela também associa ao fato de que muitas das propostas selecionadas têm a tecnologia como base. “A gente tenta ter um olhar mais cuidadoso no processo de seleção, para ver se ele tem alguma sócia, por exemplo, pois sabe que isso agrega na hora de ter empatia e resolver conflitos, o que é muito importante num negócio de impacto social.”
Sobre tecnologia, sim, ainda se trata de um ambiente predominantemente masculino. Mas isso está mudando, na avaliação de Deb Xavier, gaúcha de 29 anos, idealizadora do Jogo de Damas, iniciativa que apoia empresárias e atrai, especialmente, mulheres de 25 a 35 anos que não se sentiam valorizadas no mercado de trabalho. O Jogo de Damas é a primeira entidade no país a se tornar parceira do Lean In, uma ONG voltada ao crescimento profissional das mulheres, criada por Sheryl Sandberg, COO do Facebook.
“Existem muitas iniciativas, como o Technovation Challenge e o Made With Code que visam atrair mais meninas e mulheres para o setor, ao mesmo tempo em que estamos, como sociedade, discutindo massivamente o papel econômico da mulher. Esses questionamentos são fundamentais para que a gente desconstrua estereótipos, femininos e masculinos, que hoje são uns dos principais obstáculos para a mulher no mercado de trabalho”, afirma Deb.
Se o acesso a financiamento e tecnologia são entraves para as mulheres que buscam empreender, quais são os obstáculos para as mulheres que poderiam investir? Camila Farani elenca alguns. O principal, em sua avaliação, é o medo de não ser capaz de orientar quem está começando no mercado atual, que vive em constante transformação.
COMO SER MENTORA DE ALGO EM TRANSFORMAÇÃO?
“Há uma preocupação sobre como ser mentora. Quais são os indicadores para um e-commerce, por exemplo? Essas são coisas novas, que estão chegando no Brasil. A mulher se vê nesse dilema: ela é executiva de uma empresa, o que poderia falar para quem está abrindo um e-commerce?”, diz Camila. “O maior receio delas é não saber como emprestar seu conhecimento. E o meu papel é despir a mulher dessa ideia de que ‘não sei como fazer’. Eu não sei tudo sobre todas as áreas, mas fui aprendendo o macro.”
Outro obstáculo é uma maior aversão a riscos. Mas, segundo Camila, isso diminui à medida que as mulheres aprendem mais sobre o mundo dos investimentos. Ela tem algumas dicas que ajudam a ter mais segurança. Entre elas:
1. Escolher empresas de segmentos de que goste;
2. Fazer o investimento em grupo, com pessoas mais experientes, para aprender com elas;
3. Procurar uma rede de investidores anjos, como a MIA, a Anjos do Brasil ou a Gávea Angels;
4. Analisar cerca de dez projetos antes de escolher um;
5. Só investir capital que você possa perder.
O saldo de Camila, após oito investimentos (em homens e mulheres) é o seguinte: já obteve retorno com uma startup, perdeu dinheiro com outra, tem quatro em fase de crescimento e duas ainda numa etapa inicial. Com o investimento que não deu certo ela aprendeu, especialmente, a importância de um controle mais efetivo do fluxo de caixa da empresa. Já os ganhos, diz, não são apenas financeiros:
“Ser investidora me tornou uma empreendedora melhor. Ao ter de analisar o negócio de outra pessoa, é preciso saber sobre premissas, indicadores, documentação etc. É um novo tipo de conhecimento”
Ela diz que isso mudou sua forma de agir, de encarar as coisas no próprio negócio. “Nosso pensamento padrão, por exemplo, é só expandir com capital próprio, não contrair dívidas… Mas aí você aprende sobre novas agências de fomento, sobre acesso a subvenção econômica e se espanta em como queria saber disso antes.”
QUANDO O LUCRO SE MULTIPLICA
Além deste processo de aprendizado, Camila destaca ainda o prazer de sonhar junto com alguém. “Quando gosto de uma empreendedora ou empreendedor, vou com eles até o fim. Mesmo que eu não faça um investimento, viro mentora, conselheira… Porque aquela pessoa me dá força, me dá vida”, diz.
De acordo com o Banco Mundial, mulheres costumam investir o que ganham em saúde, educação e bem-estar de suas famílias e comunidades, o que multiplica os benefícios provenientes de seu sucesso. Sociedades onde as mulheres contam com maior participação econômica e política costumam ter maior estabilidade, afirma a consultoria Ernst & Young em um relatório sobre o tema.
Mas a EY também destaca que não basta ajudar as mulheres a abrir novos negócios – foco da maior parte dos programas. Falta oferecer condições para que as empresas delas cresçam e mudem de escala. Isso vai desde terem grandes empresárias em que se espelhar até acesso a programas nos quais possam aperfeiçoar a capacidade de negociação, ganhar autoconfiança e superar o medo de errar. Para Ana Fontes, o sucesso profissional das mulheres depende ainda de outra questão: a igualdade nas relações pessoais.
“Quando um homem tem um negócio, ele foca no negócio. Já a mulher não, pois ela não recebe em casa o apoio que lhe permita focar na empresa. Esta não é uma questão secundária”
Ana afirma que a mulher empreendedora tem que buscar parcerias e tentar crescer ao mesmo tempo em que todas as coisas ao redor continuam dependendo dela. E quem tem dinheiro para pagar babá, empregada, motorista e assistente pessoal é julgada e culpabilizada: “A mulher sempre está num tribunal”.
Mas Maíra Liguori, 35, já observa uma mudança de mentalidade ao comparar o cenário atual com o de três anos atrás, quando surgiu a Think Olga – ONG feminista responsável pela campanha Chega de Fiu-Fiu e que centralizou, ano passado, os depoimentos da campanha #meuprimeiroassedio, da qual faz parte. “A Olga já foi muito criticada, as discussões de gênero não estavam no grau que estão hoje”, diz.
UM CAMINHO SEM VOLTA
A recepção foi bem melhor com a chegada, no ano passado, da Think Eva – consultoria de marketing para marcas e empresas sobre o público feminino que também tem, como missão, apoiar financeiramente a Think Olga. À frente da empresa estão Nana Lima e Juliana de Faria, além de Maíra. “A gente fala que empoderamento feminino é um caminho sem volta e se espalha por todas as áreas da vida. Quando a gente toma consciência do nosso lugar na sociedade, enxerga tudo de um jeito diferente”, diz.
Ela também se refere ao empreendedorismo por oportunidade (não só por necessidade), que tem a ver com inovação, busca por espaço e crescimento. Para incentivar as mulheres nessa direção, a Think Eva montou um programa de mentoring, que contou com oito participantes em sua primeira edição. Uma das metas era buscar diversidade – foram selecionadas mulheres de diferentes etnias, idades, classes sociais. As propostas também diferiam bastante – tinha desde projeto de conteúdo para adolescentes até de roupa para bebê. Mas Maíra observou um traço em comum:
“Todas elas queriam devolver alguma coisa para o mundo. Para elas, não era só oportunidade de negócio, e sim uma missão. E a motivação pessoal é um fator determinante para o sucesso. Se você vê uma mulher instruída, bem orientada e com uma missão, não tem como isso dar errado e não ser bom para todo mundo.”
Ana Fontes também se mostra confiante na chegada de uma nova geração de mulheres (incluindo as empreendedoras) mais seguras, preparadas para reivindicar e assumir o posto de protagonista. Fruto de toda a mobilização feminina que vem se tornando cada vez mais forte no Brasil e no mundo.
“Fico feliz quando vejo o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, responder que metade de seu gabinete é formado por mulheres ‘porque é 2015’”, conta Ana Fontes. Alô, atrasados de plantão, o mundo mudou.
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Para impulsionar uma carreira, poucas coisas fazem tanta falta quanto uma boa rede de contatos. Saiba como Luiz Lobo fundou a Prosa, uma startup que conecta jovens recém-formados em busca de mentoria e profissionais experientes.
Em um mercado de trabalho cada vez mais complexo, a formação universitária muitas vezes é insuficiente. Saiba como a DNC combina cursos online e parcerias com empresas para aumentar a empregabilidade e a qualidade da mão de obra.