Mulher não pode viajar sozinha? A SisterWave quer desafiar o “toque de recolher invisível” e promover viagens seguras

Marília Marasciulo - 4 dez 2019
Rebecca Cirino (à esq.), Frederico Dib e Jussara Pellicano Botelho são os sócios da Sisterwave, plataforma de hospedagem e conexões para mulheres viajantes (foto: Marco Torelli).
Marília Marasciulo - 4 dez 2019
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A designer brasiliense Jussara Pellicano Botelho, 31, adora viajar. Já foi à Ásia, encarou sozinha um mochilão de seis meses pela América do Sul… Desbravar o mundo é com ela mesma. Uma experiência quase traumática, porém, ensinou uma realidade dura expressa por um senso comum: mulheres não conseguem ocupar certos espaços ou estar na rua em determinados horários sem se sentirem ameaçadas.

“Quando você se hospeda em um AirBnB ou em um CouchSurfing e a anfitriã é mulher, no máximo você terá medo de ser furtada. Se o anfitrião é homem, você sente medo por sua vida e corpo”

Para ajudar a transformar essa realidade, Jussara criou a SisterWave, uma plataforma para ajudar outras mulheres a poderem ter experiências como as suas.  Mais do que um “AirBnB para mulheres” (apelido que ela faz questão de rejeitar), trata-se de uma rede com objetivo de proporcionar conexões seguras que deem à viajante um olhar mais real do lugar visitado.

Lançado em MVP no fim de 2018, a SistwerWave está presente em 90 cidades do Brasil, e tem atualmente 260 anfitriãs e mais de 6 500 usuárias —  ou sisters, como são chamadas.

O PRIMEIRO NEGÓCIO SURGIU DURANTE O TCC NA FACULDADE

Jussara sempre teve veia empreendedora. Na faculdade, seu TCC (em 2012) foi criar uma rede para conectar artesãos a centros urbanos, a Acolá Projetos Sócio Culturais. Chegou a ter como cliente a Procuradoria Geral da República, que queria substituir importados chineses por artesanatos brasileiro na hora de presentear visitantes estrangeiros (Jussara conectou o órgão à Aldeia Karajá, na Ilha do Bananal).

Depois de se formar, ela criou um estúdio de design sustentável com duas amigas. Começaram a fazer papelaria para casamento e deu tão certo que em pouco tempo só focavam nisso. Não era bem o que ela queria e, com uma das sócias, criou (em 2013), a Cirandas, uma agência de branding e design de serviços cujo slogan era “faça a sua ideia girar”.

A Cirandas durou cinco anos. Jussara passou dois deles trabalhando remotamente. Numa de suas viagens, na Tailândia, ela se deu conta de que dava para quebrar o ciclo “trabalhar-poupar-e-só-então-viajar”. Em vez disso, abraçou o nomadismo digital e fez das viagens um estilo de vida.

“Existe uma correlação entre empreender e viajar, pois você precisa correr riscos, sair da zona de conforto, lidar com o fluxo de emoções e ver muita coisa dar certo, mas muita dar errado também”

A agência de branding seria desativada com a criação da SisterWave. E a ideia surgiu, claro, durante uma viagem — um mochilão pela Europa, hospedando-se com auxílio do CouchSurfing.

UMA HISTÓRIA TENSA NA EUROPA DEU ORIGEM À IDEIA DO NEGÓCIO

O ano era 2017. Os pais de Jussara nem imaginavam que a filha estava usando a plataforma que conecta anfitriões e viajantes dispostos a dormir no sofá. “Ouvia histórias tensas, ficava com muito medo”, lembra.

Em Bolonha, na Itália, Jussara e uma amiga mochileira marcaram de encontrar o anfitrião. Depois de revirar as redes sociais do rapaz, combinaram que ele iria buscá-las às 19h numa região movimentada. Parecia tudo bem: era verão, só escurecia por volta das 20h… Mas ele apareceu apenas às 21h.

Cinco minutos depois de entrarem no carro, o anfitrião informou às duas que teriam de parar na estação de trem para buscar um amigo dele. O desespero começou a bater. “O amigo era um cara grandão, e já começamos a pensar que nós duas não venceríamos os dois”, conta.

Enquanto o anfitrião fazia um caminho mais longo, para mostrar a cidade, as duas avaliavam mentalmente suas opções — a amiga tinha um canivete, e Jussara tentava lembrar os golpes de taekwondo aprendidos na adolescência.

“É nessas horas que você entende que os homens não têm noção do que passa na cabeça de uma mulher. Existe um toque de recolher invisível para mulheres. E há lugares muito hostis quando você não está acompanhada por um homem”

O pânico só terminou quando chegaram na casa e, aliviadas, perceberam que era “uma galera muito fofa”. O “grandão” era chef de cozinha, o anfitrião era músico. No fim das contas, tiveram uma experiência muito mais autêntica do que se tivessem ficado em algum albergue ou hotel.

O PRIMEIRO SÓCIO VEIO DE UMA EMPRESA JÚNIOR DE COMPUTAÇÃO

Na volta da Europa, em novembro de 2017, Jussara participou de um Startup Weekend em Brasília e apresentou a ideia. Resultado: ficou em primeiro lugar no evento. Mas, como ocorre com tantos projetos, o ânimo do grupo foi minguando, o time de oito pessoas (formado no evento) se reduziu a cinco, depois duas… Até que Jussara se viu só.

Em maio de 2018, ela buscou ajuda da empresa júnior de computação da Universidade de Brasília para desenvolver a plataforma. Embora tivesse preferência por uma desenvolvedora, percebeu que o gerente de projetos da CJR, Frederico Dib, 23, estava muito interessado e empolgado com a ideia.

Em outubro de 2018, Jussara convidou-o para a sociedade, e dois meses depois lançaram o primeiro MVP. Nesse processo, os pais também deram uma força:

“Empreender demanda muito e não é confortável, por exemplo, voltei a morar na casa dos meus pais. Mas ainda bem que tenho esse apoio”

Com o orçamento restrito a R$ 18 mil de “mãetrocínio”, a versão era bastante simples, mas em janeiro já tiveram a primeira hospedagem. Diferentemente do AirBnB, não há propriedades inteiras para aluguel, pois a ideia é justamente que anfitriãs e viajantes compartilhem o espaço e se conheçam. Na rede, só entram mulheres, mas as viajantes ou anfitriãs podem estar acompanhadas de homens, desde que ambas estejam de acordo com isso.

EM VEZ DE UMA CONCORRENTE, A DUPLA GANHOU UMA SÓCIA

Mesmo sem muita grana para criar a plataforma com todas as funcionalidades que queriam, já sabiam quais elas seriam: seguiriam uma lógica de rede de conexão, com ferramentas de acolhimento, conexão e segurança, traduzidas como “Vamo comigo” (para quem busca uma companheira de viagem), “Chega aí” (para ajudas pontuais), “Tamos juntas” (rede de apoio para deslocamento remoto) e “Fica a dica” (mapeamento de pontos interessantes e de risco).

O Vamo Comigo começou como um blog. Sua autora, a publicitária paraibana Rebecca Cirino, 32, compartilhava dicas e experiências de suas viagens; por três anos, ela viveu na França (em Paris e Rennes), trabalhando remotamente. Em janeiro de 2017, Rebecca voltou para o Brasil. “Vim para São Paulo porque era a única cidade em que me via morando depois de viver fora”, diz.

Rebecca tinha seu próprio projeto de desenvolver uma plataforma para conectar mulheres que sonhavam em viajar juntas — ou seja, basicamente o conceito por trás da SisterWave. O negócio não chegou a sair do papel, mas Rebecca era uma potencial competidora. “Em vez de concorrermos, chamamos ela para fazer parte da equipe”, diz Jussara.

Na verdade, as duas se conheceram virtualmente, por meio do Instagram, quando Rebecca foi marcada num post da SisterWave por sua antiga sócia. O contato “olho no olho” se deu pela primeira vez em abril deste ano, numa feira de turismo em São Paulo. Rebecca lembra:

“A gente nunca tinha se visto pessoalmente. Eu a vi de longe e mandei uma mensagem para saber se era ela. Sentamos para papear, contei minha angústia de desistir de empreender, ela contou os obstáculos que estava enfrentando… E aí veio o convite”

De lá para cá, o agora trio de sócios — Jussara, Frederico e Rebecca — passou a encarar o trabalho mais “braçal” de divulgar o serviço em eventos e construir a rede de sisters.

ACELERADAS NA ESTAÇÃO HACK, ELAS QUEREM IMPULSIONAR O NEGÓCIO

O faturamento bruto ainda é baixo, uns R$ 1 000 por mês, e vem da cobrança de uma taxa de intermediação de 6% da anfitriã e 14% das viajantes pelo serviço.

Em 2019, a fim de enxergar melhor o negócio, o trio entrou no processo seletivo da Estação Hack, iniciativa do Facebook com apoio da Artemisia. De 1200 startups, a SisterWave foi uma das dez selecionadas para participar de uma aceleração de seis meses em São Paulo.

O processo já inspirou mudanças de estratégia para entender quais são as cidades mais buscadas — por enquanto, a mira está em São Paulo e Brasília — e povoá-las com mais anfitriãs. Também estudam apostar em anúncios em versões gratuitas e criar opções premium para mais funcionalidades de conexão.

“Por enquanto, queremos fazer as coisas que não são escaláveis, como entender profundamente a demanda usando ciência de dados e apostar em marketing digital”

Para o próximo ano, o trio espera um faturamento de R$ 10 mil líquidos. Ainda que seu horizonte, por enquanto, não vá muito além de três meses, Jussara admite que sonha em construir algo como uma rede global de viajantes.

“Na Europa, senti pela primeira vez a liberdade de ser mulher no mundo, me senti pertencente e capaz de ocupar aqueles espaços”, diz. “Quero poder fazer isso no meu país e que outras mulheres possam fazer isso também.”

 

DRAFT CARD

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  • Projeto: SisterWave
  • O que faz: Rede que promove conexões entre mulheres viajantes e anfitriãs.
  • Sócio(s): Jussara Pellicano Botelho, Frederico Dib e Rebecca Cirino
  • Funcionários: apenas os sócios
  • Sede: São Paulo
  • Início das atividades: 2018
  • Investimento inicial: R$ 18 mil
  • Faturamento: R$ 1 mil (mensal)
  • Contato: [email protected]
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