“Não existe conto de fadas, mas aprendi que ajudar o outro é ser ajudado. E que fazer isso é um hábito”

Marysol Barreto - 3 ago 2018
Marysol Barreto conta como é possível fazer trabalho voluntário sem ser assistencialista, apenas criando condições de emancipação para quem é atendido — e que é preciso repetir isso quantas vezes for.
Marysol Barreto - 3 ago 2018
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por Marysol Barreto

Não vim aqui contar uma história que eu julgue necessariamente extraordinária (preciso alinhar essa expectativa). Mas talvez o meu grande feito tenha sido conseguir encaixar em meus dias, nas minhas preocupações e em minhas demandas semanais o hábito de dividir meu tempo com o próximo.

Fazer trabalho voluntário pode ser algo distante, difícil de adequar ao dia a dia corrido das pessoas, mas já não tenho mais este olhar de dificuldade para o assunto. Um dia desses, refleti muito ao ouvir que quem ajuda pode fazer um bem maior a si do que ao outro. Não concordo 100%, mas acho que realmente sou ajudada e aprendo muito quando ajudo.

Tudo começou (ok, a raiz é desde sempre, mas preciso resumir) na faculdade, quando iniciei o curso de Engenharia de Produção no CEFET/RJ. Lá, o ensino de extensão é muito presente na vida dos alunos e tive a oportunidade de aprender na prática aquilo que se ouvia em sala de aula. Entrei em uma organização que passou a se chamar ENACTUS CEFET/RJ e, lá, aprendi que o trabalho voluntário gerava em mim uma motivação muito forte.

Esta era uma das mais de 1 500 ENACTUS presentes em faculdades no mundo todo. Uma organização que leva estudantes a observarem os problemas da sociedade com um olhar crítico, descobrindo suas necessidades e contribuindo para solucionar problemas. Com base em pilares sociais, ambientais e econômicos, uma das principais ideias é que as ações não devem ser assistencialistas, mas sustentáveis, gerando o empoderamento e dando a possibilidade de independência para as pessoas atendidas.

Quando entrei, fui para a equipe de projetos e, logo em seguida, já estava liderando uma equipe. Em um ano, era vice-presidente. Após o meu período como membro do time, me tornei alumni e, por fim, membro do conselho de negócios. Em todo este tempo, participei de projetos no hospital psiquiátrico Instituto Philippe Pinel, na Casa da Mulher Caxiense Ruth Cardoso, na Baixada Fluminense e na Associação Aliança dos Cegos, além de apoiar tantos outros que foram desenvolvidos por lá.

O projeto que era realizado na Aliança dos Cegos, por exemplo, auxiliava esta instituição a aumentar sua geração de renda e melhorar a qualidade de vida de cerca de cinquenta deficientes visuais que lá moravam e encontravam-se em situação de vulnerabilidade financeira ou abandono familiar. Realizamos melhorias na fábrica de vassouras que existia no local, conseguimos parcerias para doação de equipamentos de proteção individual e reaproveitamento de resíduos. Para o desenvolvimento individual dos assistidos, fazíamos palestras e oferecíamos aulas de informática. A minha maior lembrança é o carinho que dávamos e recebíamos daquelas pessoas, histórias de vida tão inspiradoras.

Nós éramos estudantes, só estudantes, e já fazíamos a diferença. Existia uma força muito grande dentro de nós, uma energia sem tamanho para trabalhar em prol do próximo, pessoas que estavam perto e precisavam da nossa ajuda naquele momento

Este laboratório me ensinou, e muito. Sou extremamente grata por ter tido esta oportunidade. Hoje, vejo que na mão de um universitário tem algo muito valioso, um conhecimento que confronta com a escassez muito grande de quem está do lado de fora dessa comunidade em que vivemos. Fico feliz e orgulhosa de ver que naquela época pude aprender dividindo.

O lançamento oficial do L.A.R aconteceu em novembro de 2017. Na foto, assistidos, voluntários e convidados da “festa de abertura”.

O tempo passou, a faculdade passou, mas os amigos ficaram. E em 2015, uma delas, minha amiga-irmã Mariana Machado, me chamou para conhecer um trabalho feito com pessoas em situação de rua no centro do Rio.

Naquele momento, trabalho social já não era mais um mistério para mim e, para completar, o trabalho que era desenvolvido era muito semelhante ao que eu fazia na ENACTUS. Não se tratava de apoio assistencial, mas de um trabalho sustentável que passava por etapas importantes para tentar tirar aquelas pessoas das ruas.

Algum tempo depois, quando os gestores da época não podiam mais estar próximos do projeto, nos vimos parte integrante daquela organização, tendo que reestruturar e reescrever aquela história. Em novembro de 2017, começamos quase que do zero e com um novo nome: Instituto LAR – Levante, Ande, Recomece. Para mim, essas três palavras demonstram bem uma das nossas maiores forças: acreditamos no potencial que existe dentro das pessoas.

Preciso dividir uma reflexão importante antes de começar a falar dessa minha jornada na ONG. Ninguém é digno de situação de rua. Aliás, importante falar de dignidade, porque na rua não há.

Ninguém “mora” na rua, pois não há moradia ali. É uma situação na qual aquelas pessoas estão vivendo

Existem, sim, infelizmente, aquelas que desistem de tentar sair, mas todas podem e devem ser ajudadas. Aliás, sabe quais são as “questões” das pessoas em situação de rua? Todas que você possa imaginar. Assim como as “questões” de quem não está, certo? É esse mundão que engole a gente, que afasta e aumenta a desigualdade. Para grande parte da população, acabar em situação de rua é muito mais fácil do que se pensa, pode acontecer com qualquer um. Você tem ideia de quantas pessoas têm família e estão na rua?

O Instituto LAR (momento de puxar o ar com orgulho) dá apoio psicológico, palestras motivacionais, instruções para a retirada de documentação (no caso de quem não tem ou perdeu a papelada), suporte na reinserção no mercado de trabalho com currículos e procura de vagas de emprego, oficinas de arte (com nossa parceria com a Auê na Rua), apoio jurídico e de moradia.

Com o apoio de parceiros, o L.A.R. levou 100 assistidos para o Festival de Cinema Suíço, no CCBB, no Rio.

Somos uma família de voluntários que se disponibilizam a contribuir pela causa e tenho muito carinho por todos eles. A Bruna Caravina, por exemplo, é uma psicóloga que consegue, de maneira profissional, trabalhar com generosidade e empatia.

Há tantos outros voluntários, cada um com suas características e complementaridades, que observam cada passo dado, sentem as particularidades de cada assistido. Todos me ensinam.

Os assistidos, ah, estes também são para lá de especiais. Muitos, depois de se reerguerem, tornam-se voluntários e isso é a coisa mais linda de se ver. Você já foi tão agradecido por algo que fez questão de retribuir? Lá no Instituto muitos assim fazem. Devaldo é um deles. Hoje é assistido e voluntário da casa.

Ao conhecê-lo, ele estava sempre de cabeça baixa, quieto e eu sempre economizava palavras, por não saber de que maneira abordá-lo. Agora, ele mora em um espaço cedido pelo Instituto e contribui muito para as nossas atividades, consertando computadores, instalando programas e dando suporte com a impressora (nos meus momentos de desespero com o aparelho). Devaldo é inteligentíssimo e extremamente prestativo. Eu poderia contar tantas outras histórias como essa aqui. Histórias de vidas muito duras, mas de muita superação. Mas alerto:

Não existe conto de fadas. Ao trabalhar com quem está na rua, há pessoas que vão embora e não voltam. Desistem, se entregam, tentam de novo, seguem lutando. O processo é lento, difícil, exige esforço e muita vontade

Mas temos respeito a cada história e ao tempo de cada um. “Levante, ande, recomece” não diz quantas vezes isso terá que acontecer. Não estamos aqui para julgar, só estaremos ali para quando precisarem de nós. Com isso, chego à conclusão de que ajudar é ser ajudado, ensinar é aprender. Para ter o hábito de dividir não é preciso ser um anjo ou dever algo. Acredite, é um hábito. Algo que te faz ser grato pelo que tem e entender o significado do que, de fato, significa viver em sociedade.

 

Marysol Barreto, 28, é formada em Engenharia de Produção pelo CEFET/RJ e foi vice-presidente da organização ENACTUS CEFET/RJ. Atualmente, trabalha em uma multinacional do setor de Óleo e Gás e é diretora voluntária do Instituto L.A.R.

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