Entenda por que o Alana elegeu o audiovisual como ferramenta para mudar o mundo

Marina Audi - 23 dez 2020
Flávia Doria, CEO do AlanaLab.
Marina Audi - 23 dez 2020
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“Se dez anos atrás, eu me perguntasse se estaria aqui em 2020, eu responderia: nossa, será…?!”, diz Flávia Carvalho Dória, 46, CEO do AlanaLab.Ao mesmo tempo, quando olho minha trajetória, tenho certeza de que tudo que eu fiz e tudo que eu sou, me trouxe até onde eu estou hoje, realizada e muito feliz.”

O AlanaLab, que Flávia comanda desde 2018, é o núcleo de negócios sociais criado dentro do Alana, a ONG que promove o direito e o desenvolvimento integral da criança, fundada em 1994 por Ana Lúcia Villela e seu irmão Alfredo Egydio Arruda Villela Filho, herdeiros da holding Itaúsa. 

Enquanto o Alana se mantém, desde 2013, com rendimentos de um fundo patrimonial (leia a história da fundação aqui), o AlanaLab nasceu para caminhar com as próprias pernas, tocando projetos autossustentáveis com foco em comunicação de impacto. 

Esse núcleo-laboratório reúne três empresas. A primeira é Maria Farinha Filmes – MFF, produtora audiovisual que atingiu a estabilidade financeira há dois anos.

A MFF é dedicada a criar entretenimento com o objetivo de acelerar transformações sociais. Ela assina mais de 25 produções, entre elas a série sobre ativismo ambiental Aruanas (2019), coproduzida com a TV Globo; o filme Um Crime Entre Nós (2020), sobre o mercado de exploração sexual de crianças e adolescentes; além de projetos de conteúdo autoral patrocinado como Repense o Elogio (2018), sobre igualdade de gênero, assinado pela Avon e vencedor do Effie Awards Brasil.

A segunda empresa do AlanaLab é a distribuidora Flow, especializada em lançar filmes como manifestos, experimentar novas formas de democratizar o acesso a histórias inspiradoras e realizar campanhas de impacto social que proporcionem caminhos concretos para o grande público se envolver, fomentando o espírito ativista.

E a terceira é a Junglebee, produtora de realidade virtual e aumentada responsável por três documentários em curta-metragem exibidos na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: Rio de Lama (2016), sobre a tragédia de Mariana (MG); Fogo na Floresta (2017), sobre uma aldeia indígena no Xingu; e Ocupação Mauá (2018), sobre a ocupação urbana com 11 anos de existência, nos arredores da Estação da Luz, em São Paulo.

Em dezembro, a empresa lançou Pirimbim, uma “áudio série” que propõe uma viagem pelo mundo do conhecimento ao público infantil (o projeto foi feito em parceria com o compositor e roteirista Fernando Salem, de Cocoricó e Castelo Rá-Tim-Bum).

Confira abaixo os principais trechos da conversa entre o Draft e Flávia:

 

Como funciona a relação entre o AlanaLab e as empresas que compõem o núcleo: Maria Farinha Filmes – MFF, Flow e Junglebee?
O que o AlanaLab faz é trabalhar como um fundo de investimento… Falo de fundo como paralelo, só para dizer que um fundo vai lá, pega o seu dinheiro, investe em iniciativas que ele vê que têm a ver com o propósito para o qual nasceu. É através do Lab que o Alana faz esses investimentos. Somos sócios das três empresas e nos envolvemos, sim, na gestão.

O conceito sempre foi ter um olhar para impacto com sustentabilidade financeira. A ideia é não só reinvestir nas empresas. Também temos o objetivo de devolver os lucros para a parte filantrópica da organização.  

O AlanaLab pode tanto pegar estruturas que já existem – caso da Maria Farinha Filmes, fundada em 2008 – quanto pode partir do zero?
Sim. E, às vezes, trazemos parceiros externos, como é o caso da Junglebee que tem como sócios a Beenoculus [empresa de soluções de XR – Realidade Virtual, Aumentada e Mista incluindo infraestrutura de hardware e plataformas de software] e o Tadeu Jungle

O envolvimento do AlanaLab vai diminuindo conforme essas empresas vão ficando maduras. O nosso conceito é, de fato, entrar com olhar de gestão e inovação, mas cada vez mais, deixar essas empresas independentes, caminhando por si.

Agora, existe um lugar em que eu atuo, especialmente junto com duas pessoas do meu time, que é pensar como a gente faz a ponte entre essas empresas e entre as outras organizações do Alana. Somos independentes e não precisamos só fazer e olhar para causas direcionadas. 

Temos muita sinergia, há muita coisa que fazemos juntos e temos uma forte tendência a potencializar essas causas que são do Alana Foundation (braço filantrópico nos EUA para investimento em pesquisa acadêmica) e do Instituto Alana (a ONG que nasceu em 1994, no Jardim Pantanal, zona leste de São Paulo)

Então, obviamente, tudo vira um sistema, que se retroalimenta. O meu papel é potencializar essas conexões, de fazer com que a gente se fortaleça dentro desse sistema, o Sistema Alana.

Como foi a sua trajetória profissional no mundo corporativo tradicional, até chegar ao Terceiro Setor?
Eu me formei [em Administração de Empresas, na FAAP] e fiz carreira. Entrei para a Johnson&Johnson, que por muito tempo, foi minha segunda família. Quando fui fazer MBA em empreendedorismo na UCLA [em 2002], até pedi demissão, mas depois voltei. 

Amei fazer MBA. A melhor coisa foi, realmente, perceber como você consegue olhar para o mesmo problema por um milhão de maneiras. Quanto mais diversos os pontos de vista, de pessoas de países, backgrounds e vidas completamente diferentes… Essa diversidade faz muita diferença para o que você enxerga de solução.

Fui muito feliz nessa vida corporativa. Foi dentro da Johnson que eu comecei a ter uma tendência para casos do Terceiro Setor. O meu envolvimento com o Safe Kids Worldwide [rede global sem fins lucrativos que trabalha para prevenir lesões na infância] aconteceu lá dentro. 

Quando o Martin Eichelberger fundou o Safe Kids, a GM e a J&J o ajudaram a expandir para 25 países. Quando ele veio conversar para expandir essa organização para o Brasil, eu me voluntariei, junto com a minha chefe.

Essa vontade do social vem muito da minha família também. A minha mãe, Maria Helena Catelli de Carvalho, é muito envolvida com o social desde sempre. Ela é farmacologista biomédica, trabalhou na pesquisa do Viagra, foi professora-titular da USP… Ela é incrível. 

Meu pai trabalhou no setor financeiro e sempre falou: “Eu ganhei todo o dinheiro, mas a sua mãe ganhou todo o reconhecimento”. E, realmente, minha mãe desbravou muita coisa na vida… Ela sempre me fez olhar para o lado

Minha família é de origem muito simples. Meu avô tinha uma vendinha. Ele nunca ganhou dinheiro porque não aguentava ver as pessoas chegando com fome — e dava tudo para elas.

Antes do AlanaLab você ainda trabalhou como consultora por quatro anos e depois empreendeu com cultura, fundando, em 2011, a Oficina da Alegria. Qual foi a motivação?
Consultoria me fez ver o que eu não queria. Acho que o que me fez empreender foi a sede por fazer acontecer rápido.

A vida corporativa foi uma escola que me deu sustentação, me deu um olhar específico para gestão e também me trouxe um networking fenomenal, que me ajuda nesse “lugar de pontes” de que eu falava. 

Mas nessas grandes corporações, eu sentia muita falta de ver o resultado ali na hora. Eu fui empreender e quebrei a cara pra caramba. E é uma delícia quebrar a cara, porque você errou, pode aprender e fazer de novo. 

Como interagem entre si as três empresas do AlanaLab?
A Maria Farinha Filmes — MFF nasceu em 2008, nesse ambiente ativista do Alana. No meio do caminho de entender o entretenimento como um instrumento potente de transformação, começamos a perceber que tão importante quanto produzir esses conteúdos era fazê-los chegar nas pessoas de uma forma diferente. 

Aí, viramos experts nisso. Está cheio de conteúdo incrível que não foi visto pelas pessoas que precisam vê-lo. Passamos a desenvolver essa ciência por trás disso, a formalizar a importância que esse “fazer chegar” tem no sucesso desses movimentos de transformação. Então, foi muito natural fazer o spin-off da Flow, em 2017, que pegou a parte de distribuição da MFF e virou uma empresa focada nisso.

Se você olhar no mercado, é difícil haver estúdios e empresas que conseguem fazer tudo isso muito bem. Percebemos que era importante ter uma estrutura dedicada e que não olhasse só para os conteúdos da MFF, para não ser algo muito focado no nosso umbigo

E ao longo desse tempo, os sócios da Flow fizeram uma parceria muito importante com a Participant Media nos EUA, nossa empresa-irmã em termos de valores e ambições de transformações socioambientais. 

Daí surgiram outros conteúdos que pudemos trazer para a Flow, como os documentários A Juíza (RGB) e Longe da Árvore [ambos disponíveis em plataformas digitais e para exibições públicas gratuitas — saiba mais clicando nos links].

Como a Junglebee se encaixou nisso?
A gente acredita muito – e agora é comprovado por nossas pesquisas e análises de redes sociais – na força do entretenimento para a transformação. Estamos sempre de olho em novos formatos e tecnologias que potencializam esses conteúdos. 

Digamos que o nicho em que a gente trabalha com a Junglebee é a força da empatia, através dessa tecnologia [realidade virtual e aumentada]. 

E se a gente acredita no poder desse entretenimento, desse tipo de conteúdo que você assiste numa tela flat na sua frente, imagine estar “dentro” desse conteúdo — que é o que acontece com realidade virtual

Por exemplo, a gente fez Ocupação Mauá com um tema supercontroverso – as pessoas acham coisas muito diferentes a respeito de ocupações – com o olhar de fazer espectadores se colocarem nos sapatos das pessoas dessa comunidade.

Houve conflitos, má recepção?
Sempre tem hater, sempre tem controvérsia… É muito fácil de acontecer. Inclusive, a gente provocou, lá atrás, com Criança, a Alma do Negócio (2008) e Muito Além do Peso (2012) discussões enormes com pessoas de empresas gigantescas. Hoje, elas reconhecem que a provocação desse diálogo, e o diálogo em si, mudaram muita coisa para eles como profissionais. 

As pessoas que estão dentro dessas grandes empresas, às vezes tomando decisões equivocadas, também são pais e nos encontramos com elas nos valores. Eu falei muito disso no meu TED.

Temos uma humanidade compartilhada com todo mundo, com pessoas em diversos setores. Existe um lugar para conversar e usamos esses instrumentos de transformação para isso. Nessas tentativas, existem conversas acaloradas, gente que tenta dissuadir… Mas sempre prevalece um lugar de diálogo, de não partir para a briga. 

Uma das coisas que aprendemos é que, toda vez que você vai falar de uma causa, precisa trazer para dentro todas as organizações que já estão na linha de frente, que já têm pesquisas e entendem direito do assunto. 

Sempre começamos com esse grupo de pessoas muito envolvidas. Depois, amplia a conversa para outros interessados — e, depois, para uma massa de pessoas. Então, toda vez que encontramos resistência, na verdade estamos muito cercados de gente que entende do que estamos falando — e que nos protege, de certa forma

Esse lugar do Alana de fazer pontes e conseguir falar com muita gente diferente a respeito de assuntos que são esse common ground, esse lugar onde a gente se encontra nos valores, é uma das nossas maiores forças.  

Quão desafiador foi convencer esse público corporativo de que o trabalho em colaboração com o AlanaLab poderia ser não apenas lucrativo, mas de fato transformador?
Hoje, todas as empresas sabem que não podem mais, simplesmente, vender produto. Ou falar sobre diversidade sem agir. Não podem combater o racismo, sem de fato, ter políticas internas aplicadas. 

O que começou a acontecer é que as empresas que eram super-resistentes a falar com a gente, agora, pedem reuniões longas… E nós temos instrumentos para ajudá-los. Temos boas conversas do nosso time de advocacy até campanhas que fazemos para eles. 

São campanhas comerciais?
Tudo é autoral, mas fazemos autoral para as empresas, dentro de uma causa real. E por que é muito importante fazer autoral para as empresas? Porque, para ser de verdade, precisamos envolver todas as organizações sociais, públicas e privadas, nessa conversa. 

Um exemplo é o curta-metragem Ser O Que Se É [vencedor do Effie Awards Brasil], para a Natura. A causa do corpo é muito real para a empresa.

Depois de anos, conseguimos ter uma carteira de cases de sucesso para provar que fazemos tudo com ciência, propriedade, trazendo junto com a gente todo um ecossistema. Aproximamos essas organizações privadas das organizações sociais

Várias das nossas campanhas acabaram virando investimento dessas empresas em organizações sociais que atuam na ponta. Então, essas conexões serviram. Conseguimos, inclusive, unir empresas concorrentes…

Isso é bem atípico no mercado, não? Quando e como aconteceu?
O fato de eu ter estado nessa cadeira, olhando para o território de marca, [pensando sob a lógica do] só eu posso falar isso e não converso com as outras empresas, me deu legitimidade. 

Em O Começo da Vida [filme de 2016, que alcançou mais de 8 milhões de pessoas no mundo, é ferramenta de campanha global do Unicef e acaba de ampliar a franquia com O Começo da Vida 2: Lá fora, de 2020], eu uni quatro empresas de produtos infantis (J&J, Natura, Hughies/Kimberly-Clark e Pompom/Hypermarcas) que se matam no dia a dia por espaço no ponto de venda e na comunicação

Eu disse: “Galera, vocês todas olham para a infância. Vamos juntos? Eu vou ajudar cada uma a ter o seu território. Então, só você quer dar ingresso no cinema? Tudo bem. Só você quer fazer tal campanha de videocase? Tudo bem. E vocês confiam que eu garanto que ninguém vai pisar no pé um do outro?”

Vocês propuseram ações diferentes para cada empresa. Assim, elas tiveram a exclusividade que precisam para justificar o investimento. De onde veio esse insight?
Foi vivência mesmo, de saber que essas marcas precisam disso. O setor privado é o que mais tem dinheiro ao alcance. Essas empresas chegam, de fato, nas pessoas, elas têm um poder de comunicação e uma capilaridade gigantesca. Como a gente pode ignorar a força delas em movimentos sociais de transformação? 

Não dá para fazer um movimento de transformação se não estiver envolvendo o setor público, privado e social. Então, se você entende de onde elas vêm… Pô, elas precisam competir — senão, não vão ganhar share, não vão ter lucro, e aí não vão poder investir nessas causas. É preciso continuar tocando com as regras de mercado. 

Se todas essas empresas apoiam a infância, como a gente pode proporcionar que elas se unam? Garantindo esse espaço exclusivo delas, mas também garantindo esse lugar comum

O nosso insight foi pensar: onde a gente se encontra? E esse lugar é a causa. Não tem uma pessoa que trabalha com franquia de baby que não está preocupada com a infância. E aí temos de encontrar um jeito de elas estarem juntas, sem ferir os valores de suas empresas.   

Isso aconteceu também com canais de distribuição, certo? O Começo da Vida foi lançado ao mesmo tempo no GNT, Netflix e gratuitamente em exibição pública…
Sim. Ou seja, não é só o investimento do dinheiro, do poder de alcance dessas empresas. É um investimento de rever suas políticas. É um investimento de repensar o jeito que a gente faz as coisas para um bem maior. 

Quando a gente levou o projeto de Aruanas para a Globo, demorou, mas eles falaram que não dava mais para evitar o assunto, porque somos um dos países que mais desmata — e também que mais mata ativistas. 

E ajuda, claro, a ter pessoas como eu, que já estiveram do outro lado, para falar que também entendemos os desafios que eles têm no dia a dia, nas suas entregas de resultado. Esses insights vêm daí: de enxergar o outro e achar o lugar em que a gente se encontra. 

 

 

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