O caso do Hambúrguer do Seu Oswaldo é a prova de que o tema “transformação digital” vai muito além das grandes corporações

Marcelo Nakagawa - 26 jul 2022
Marcelo Nakagawa, professor do Insper (Foto: Germano Lüders).
Marcelo Nakagawa - 26 jul 2022
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Há aproximadamente 30 anos, não sei bem onde, li que o jornalista Heródoto Barbeiro ia até o bairro do Ipiranga, na Zona Sul de São Paulo, só para comer o Hambúrguer do Seu Oswaldo.

Depois li que esse tal Seu Oswaldo, vira e mexe, estava na lista dos melhores de São Paulo na “Comer & Beber”, da Veja. A curiosidade bateu, mas sair de Pinheiros, na Zona Oeste, onde morava, para ir até um bairro que eu nem sabia direito onde ficava, para comer um lanche, me parecia loucura.

Achei, no entanto, a combinação Heródoto, hambúrguer, Ipiranga e Veja tão inusitada que resolvi conhecer o local.

Chegando lá, descobri que era uma porta sem letreiro na frente, com uma quantidade insana de pessoas do lado de fora.

Não tinham telefone, pagamento só em dinheiro, pedido antecipado, refrigerantes só em garrafinha e espera de pé até vagar um banco no balcão. Estavam, há 30 anos, exatamente iguais à 1966, quando o Seu Oswaldo começou a vender seus lanches.

UM EMPREENDIMENTO RAIZ… ATÉ SER ATINGIDO PELA PANDEMIA

À primeira visita, percebi que o atendimento é sempre igual para todos. Você é chamado para sentar-se, o lanche é colocado na sua frente, você come em 20 minutos e vai embora.

Mas como o hambúrguer é delicioso, comecei a fazer parte daquela multidão da calçada, anos depois levando esposa e agora também as filhas.

Veio cartão de débito, vale-alimentação, celular, internet, aplicativos de mensagens, delivery e o Hambúrguer do Seu Oswaldo continuou exatamente igual, tradicional e raiz. Aí veio a pandemia…

Muitos dizem que a pandemia acelerou em dez anos a transformação, especialmente a transformação digital das empresas.

Difícil generalizar, já que muitas organizações — mesmo em uma década — dificilmente colocariam seus colaboradores em trabalho remoto, aceitariam assinaturas e documentos digitais ou automatizariam tantos processos internos.

“Nunca desperdice uma boa crise”, teria dito Winston Churchill, ex-primeiro-ministro do Reino Unido. Mas, muitas empresas, de todos os portes e setores, agora que a crise da pandemia está menor, parecem começar a desperdiçar a oportunidade de, não apenas se transformarem, mas, em muitos casos, de se reinventarem digitalmente.

A TRANSFORMAÇÃO DIGITAL VAI MUITO ALÉM DA DIGITALIZAÇÃO DO NEGÓCIO

Das organizações que estão investindo em transformação digital, muitas a entendem apenas como lógicas de “digitalização” dos seus processos, algo que foi intensificado na pandemia.

A digitalização ou pelo menos seu estudo em todas as áreas da organização é um esforço praticamente mandatório. Há diversas oportunidades de reduções de custo, aumento de produtividade e até de receitas em todas as organizações.

Assim, o mapeamento de todos os processos, identificação e priorização de oportunidades de digitalização, seleção e validação de solução por meio de prototipagem — e daí a tomada de decisão para escalar para toda a empresa — são iniciativas que poderiam ser conduzidas em, absolutamente, toda a firma.

Isto implica em desenvolvimento de capacidades internas de inovação e, ao mesmo tempo, de iniciativas de inovação aberta, seja com parceiros estabelecidos, startups e até atuais competidores.

Mas a Transformação Digital começa a ficar mais interessante e ainda mais relevante quando se avança para além da digitalização

As novas tecnologias permitem que as organizações testem “novos modelos digitais de negócios”. Isto pode criar motores de crescimento e criação de valor como já está acontecendo diversas empresas e suas fintechs ou startups.

QUANDO A ORGANIZAÇÃO SE TORNA UMA “PLATAFORMA DE PLATAFORMAS”

Além disso, as oportunidades de transformação digital se ampliam quando as corporações percebem que podem utilizar as novas tecnologias para assumir novos direcionamentos estratégicos.

E assim, evoluir daquele modelo de negócio concentrado em ser maior e melhor naquilo que é feito hoje para a adoração de “estratégias de plataformas digitais de negócio”.

Neste modelo, a organização comercializa não apenas a sua linha de produtos, mas se integra a outros parceiros para oferecer soluções mais amplas considerando toda a jornada do cliente.

O estágio mais avançado da transformação digital começa a ocorrer quando as organizações, que criaram suas plataformas, começam a migrar para “estratégias de ecossistemas digitais de negócios”

Neste caso, a empresa se torna uma “plataforma de plataformas”, como já ocorre, por exemplo, com uma grande marca de vendas online, que se integra a outras plataformas da mesma marca, mas voltadas para pagamentos, entregas ou anúncios.

Nesta dinâmica, a transformação digital é uma jornada que pode, além de trazer resultados como redução de custos e aumento de produtividade ou receitas, criar lógicas de crescimento, geração de valor e vantagens competitivas.

E a maior ameaça é que, se não pensar neste cenário, muito provavelmente alguém estará fazendo isso no setor em que atua. Aí, o melhor dia para começar a pensar nisso terá sido ontem.

OS TRÊS PILARES DA JORNADA DE TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E SEUS DESAFIOS

O problema é que hoje já será ontem amanhã, então a grande questão para muitas organizações é: o que posso fazer? Há três pilares que sustentam o plano da jornada da transformação digital.

A primeira sustentação diz respeito aos aspectos estratégicos da organização. Mas não é apenas sobre a definição da estratégia em si, mas sobre novas lógicas da sua formulação e como é executada, modificada e evoluída durante a sua execução. Mais do que digitais, estamos falando de organizações mais inovadoras e ágeis.

A segunda é um mergulho nas tecnologias digitais de fato. Há hoje muitas opções para serem avaliadas e colocadas em prática, então entrar de cabeça neste universo é fundamental.

Já o terceiro e último elemento do tripé tende a ser o mais desafiador, pois lida com as questões de pessoas, cultura organizacional, liderança e (re)aprendizados de cada colaborador da organização e dos clientes.

Transformação digital começa e termina com pessoas. Falar isso sempre é fácil. É um jargão daqueles que impressionam e as pessoas tendem a concordar.

Mas não apenas é muito difícil como complexo e, quase sempre, mais demorado do que se imagina.

Isto implica em conscientização individual da relevância das questões digitais no sucesso profissional de cada colaborador — do planejamento de oportunidades de aprendizados e, notadamente, reaprendizados até o apoio psicológico da ressignificação do trabalho.

Do outro lado, exige lideranças que se tornem exemplos e embaixadores da transformação digital, da inovação e da agilidade.

Entre as duas pontas, o desafio da empresa em se tornar um “laboratório de aprendizagem organizacional”, já que não haverá uma receita pré-estabelecida e infalível para tornar a empresa mais competitiva por meio da transformação digital, inovação e agilidade.

QUAIS OS MITOS DA TRANSFORMAÇÃO DIGITAL E COMO COMBATÊ-LOS

Há alguns mitos que rondam a Transformação Digital. O primeiro é o “Mito da Digitalização”, já comentado, e implica em perceber a transformação digital além da digitalização.

Outro, muito comum, é o “Mito do Vale do Silício”. Muitos percebem transformação digital com espaços caros, multicoloridos e gente descolada, como viram em safaris tecnológicos quando visitaram as big techs da “Nova Economia” no Vale do Silício.

A transformação digital pode começar com duas pessoas em uma pequena sala de massagem não utilizada na empresa ou em um pequeno salão de eventos alugado por uma semana, como já aconteceu com grandes empresas.

O “Mito do Resultado de Longo Prazo” também precisa ser considerado já que é possível trazer retorno de investimento, talvez modestos, mas positivos e crescentes, no próprio ano fiscal.

E para não me alongar, outro mito importante é que transformação digital é um assunto apenas para grandes corporações

Esse é contexto que sempre me dá fome, pois preciso retornar ao Hambúrguer do Seu Oswaldo.

Durante a pandemia, passaram a receber pedidos por WhatsApp, pagamentos por Pix e, como passaram a ter mais informações do cliente, agora te atendem calorosamente com “Oi, Marcelo. Seu pedido já está pronto!”.

 

Marcelo Nakagawa (leia uma entrevista que ele concedeu ao Draft aqui) é professor de inovação e empreendedorismo do “Programa Avançado em Transformação Digital: Gestão, Operações e Tecnologia” do Insper e coordenador de Programas de Inovação da FAPESP.

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