O que aprendi sobre a escassez do tempo (e a efemeridade da vida) num antigo filme da “Sessão da Tarde”

Lipsio Carvalho - 18 nov 2020
Lipsio Carvalho, fundador da Beatnik & Sons.
Lipsio Carvalho - 18 nov 2020
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A mitologia grega é responsável por alguns dos mais incríveis personagens já criados pelo homem. De garotos com asas nos pés (o que, convenhamos, não faz nenhum sentido aerodinâmico) a senhoras de olhar petrificante e cobras na cabeça.

Essas criaturas fantásticas povoam o imaginário da humanidade há milênios. Mas o meu imaginário sempre deu preferência a uma delas: o Ciclope.

De acordo com as lendas da época de Homero, Ciclopes eram gigantes que trabalhavam para Hefesto, o Deus da Forja, sendo famosos por não temerem os deuses. Entretanto, o ciclope que gostava não era grego.

Meu gigante preferido era o ciclope do filme Krull — um filhote de Star Wars com Senhor dos Anéis que preencheu Sessões da Tarde inúmeras vezes com seu reino mágico e versões baratas de personagens já estabelecidos em outras franquias da época.

Rell, o ciclope de Krull, era coadjuvante, morria na metade do filme. Mas sua história é certamente mais profunda que o filme em si. Em Krull, a tribo de Rell, então com dois olhos, gostaria de ver o futuro. Afinal, por que não, certo?

Na busca por esse objetivo, os ciclopes fazem um acordo com o mago do reino que concorda em conceder-lhes o poder de enxergar o porvir. Mas como na vida e nos reinos mágicos não existe almoço grátis, o mago estipula um preço: concederia aos ciclopes o poder de enxergar o futuro em troca de um olho de cada aldeão 

Mal sabia Rell e seus conterrâneos que o mago havia lhes pregado uma peça. Levou os olhos de todos e em troca, lhes deu o poder de enxergar não qualquer futuro, mas apenas um. O único futuro que os ciclopes de Krull poderiam enxergar era o dia da própria morte.

Entretanto, o que no filme de 1983 é retratado como uma maldição, certamente pode ser interpretado de outra forma. 

Tentar prever o futuro é um exercício que praticamos diariamente. “Que horas será que chega o metrô?”, “Será que meu chefe está de bom humor hoje?”, “Será que o fato dela ter visualizado minha mensagem há três dias e não ter respondido significa que não está mais a fim?”.

Mas normalmente falhamos miseravelmente em enxergar o que nos aguarda.

E mais, garanto que se a realidade fosse diferente e sim, tivéssemos a capacidade de prever o futuro, provavelmente expandiríamos nossas previsões para coisas como “Será que o Flamengo ganha hoje?”, “Quais os números da Mega-Sena”, ou mais importante, “Quem será o eliminado da Fazenda essa semana?”.

Espero que você concorde comigo que nenhuma dessas previsões estaria a altura de tamanho poder, certo? Ou seja: se tivéssemos o poder de enxergar o futuro, falharíamos miseravelmente. De novo. 

Por isso o mago estava certo. O mago de Krull deu a Rell e sua tribo não o poder de enxergar o futuro, mas sim, apenas o futuro que importa. O fim. Enxergar o fim nos força a ressignificar o tempo presente e a realmente planejar como vamos utilizar cada momento.

Percebam que não usei a palavra morte. A morte para mim — assim como o ciclope — é um personagem. Ela é magra, carrega uma foice e se veste mal.

O fim, por outro lado, é real. Porque tudo tem fim. O seu dia mais feliz até hoje teve fim. O verão tem fim e o sorvete que você toma no dia de sol também. Empresas têm fim (o que é ótimo, em alguns casos). Por que você, ou eu, não teríamos fim? 

Felizmente, graças à ciência, podemos ter uma noção do fim do nosso tempo sem ter que assinar contratos leoninos com magos esquisitões. Basta abrir a internet e calcular a previsão média em que tudo termina. Tudo fundamentado estatisticamente.

E assim eu fiz.

Fui em um site de endereço mórbido, o The Death Clock, preenchi minha idade, alguns dados sobre a minha saúde… E pronto: o site me cuspiu um número.

12.342 dias, 2 horas, 14 minutos e 46 segundos. Quarenta e cinco. Quarenta e quatro…

E como num passe de mágica virei ciclope.

Por mais que eu entenda que esse número é uma estimativa estatística e que eu posso viver muito mais ou muito menos que isso, esse é sim um cenário possível. E isso foi chocante. Pouco mais de doze mil dias me soou pouco. Me soou breve.

Se a vida é um sopro, metade do fôlego já foi. Automaticamente tudo o que eu já fiz nessa vida começou a passar na minha cabeça como um filme.

Mas, depois de se enxergar o fim, foi o que ainda não fiz que pesou mais. A viagem que ainda não fiz. O abraço que não dei. O filho que ainda não tive.

Conclusão semelhante sobre o não realizado é frequente entre doentes terminais. Por sorte eu ainda tenho tempo. 12.342 dias para ser exato. Como é bom ser ciclope.

Desde então, passei a ressignificar uma série de comportamentos. Metas nebulosas ganharam data, conversas ganharam objetivos e papos vagantes daqui pra frente vão vagar ainda mais.

Quando se enxerga o fim, as coisas ganham perspectiva e você passa a entender o valor do tempo, do trabalho e do ócio. Reuniões que poderiam ser um email se transformam em… emails. Horas-extra passam a ser toleradas apenas se acompanhadas de recompensas-extra e não responder mensagens recebidas fora de hora passa a ser terapia

Para ser dono de algo, alguma coisa precisa existir. Tangibilizar os dias que te faltam é um exercício transformador que materializa o tempo e consequentemente atribui a ele o seu devido valor.

Te convido a fazer o mesmo. Se Rell e os ciclopes de Krull tivessem entendido isso, certamente agradeceriam o mago. Ciclopes são ingratos.  

 

Lipsio Carvalho é empreendedor e fundador da Beatnik & Sons.

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