“O que aprendi sobre empreendedorismo vivendo como nômade digital em mais de 30 países nos últimos seis anos”

Franklin Costa - 10 nov 2023
Carol Soares e Franklin Costa, cofundadores da oclb, em Chicago, nos Estados Unidos, em março de 2022, logo depois do SXSW.
Franklin Costa - 10 nov 2023
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Em sua teoria da relatividade, Einstein ressignificou o que entendemos sobre a realidade ao afirmar que o tempo é relativo. Não precisa ser um gênio para chegar à mesma conclusão. Basta viajar.

Quando viajamos, o nosso tempo é diferente do resto do mundo. Às vezes, ele passa rápido demais (pense nos últimos dias antes das férias acabarem).

Outras vezes, parece quase parar. Esses são aqueles momentos de plenitude, do tipo “Barato Total”, música imortalizada na voz da musa Gal Costa (“Quando a gente está contente, nem pensar que está contente a gente quer, e nem pensar a gente quer, a gente quer é viver”).

Desde março de 2017, Carol Soares (minha sócia, esposa e parceira de vida) e eu nos tornamos nômades digitais. Nossa casa é uma mala de viagens e uma mochila

Nos últimos seis anos, já moramos em mais de 30 países, conhecemos mais de 80 cidades e dormimos em mais de 250 quartos e camas diferentes.

Ou seja, enquanto viajar para a maioria das pessoas é uma ocasião especial, para nós essa é a rotina. 

Um dia, cerca de dois anos depois de virarmos nômades, encontrei em Portugal um amigo francês casado com uma amiga brasileira dos tempos de faculdade.

Ele me perguntou se eu já havia refletido sobre o que era viver como nômade. Na época, respondi que não. “Estou vivendo tudo tão intensamente que mal consigo parar para pensar no que estou fazendo”, disse.

Estava em pleno barato total. Tão contente, que nem pensar que estar contente eu queria. 

COMEÇAMOS A PESQUISAR FESTIVAIS E DECIDIMOS EMPREENDER COM UM CLUBE DE ASSINATURAS SOBRE O FUTURO DO ENTRETENIMENTO

Os três primeiros anos foram anos dourados. Tudo que faturamos era reinvestido em novas experiências. Mais viagens, mais museus, mais comidas exóticas e, principalmente, mais eventos e festivais. 

Nosso negócio, a consultoria oclb, surgiu um mês depois de entregarmos nosso último contrato de aluguel, em abril de 2017.

Viajamos para os Estados Unidos com uma única missão: pesquisar três festivais dos sonhos, o SXSW (em Austin, no Texas), o Ultra (em Miami) e o Coachella (na Califórnia). Desde 2015, quando aparecemos pela primeira vez aqui no Draft, nós já trabalhávamos com festivais.

Carol tem formação acadêmica, um pós-doutorado em biologia e um mestrado em antropologia do consumo. Eu cocriei o primeiro festival de música eletrônica do Rio, fui consultor de alguns dos principais festivais que já passaram pelo Brasil e, ao longo de 20 anos, construí uma carreira que situa-se na interseção do marketing, da inovação e da indústria dos eventos. 

Acontece que em um mês e meio nos EUA foi o suficiente para entendermos que não seria sustentável financeiramente continuar o planejamento que desenhamos. As contas não fechavam.

Pensamos, então, em criar um “clube de assinatura de conteúdos sobre o futuro do entretenimento”. Na prática, seriam aulas mensais pelo YouTube com estudos de casos dos festivais e cidades por onde viajávamos

A marca oclb surgiu como uma abreviação de “o clube”. Inicialmente, montamos um grupo de 30 interessados que fizeram parte da turma original.

O formato deu tão certo que os participantes propuseram que fizéssemos um modelo de caravana pelo Brasil.

FIZEMOS EXPERIÊNCIAS POCKET DE NOSSAS AULAS E TIVEMOS UMA ÓTIMA RECEPÇÃO DO PÚBLICO

Quando retornamos ao Brasil, no final de 2017 e até o início de 2018, levamos uma edição pocket das nossas aulas em formato de curso presencial.

Era uma coisa de doido, uma experiência pop-up, com três noites de encontros para discutirmos o futuro das experiências e do entretenimento ao vivo

Cada curso seria uma experiência em si. Em Porto Alegre, por exemplo, a sala de aula foi montada em cima do palco do auditório Araújo Vianna. Em Curitiba, fizemos uma parceria com o super descolado restaurante Botanique, e todas as aulas tinham no seu intervalo um jantar assinado pela chef do lugar como experiência gastronômica.

Em todas as cidades por onde passamos, distribuímos brigadeiros com larvas para provocar os participantes do curso a pensarem em alternativas para a proteína como a comida do futuro.

(Experimentamos a carne de frango feita à base de plantas pela primeira vez no SXSW de 2017, mas na época dos nossos cursos essa indústria ainda estava chegando no Brasil.)

Entre risos nervosos e um ou outro ato de coragem, o importante para nós sempre foi ensinar pela experiência. 

LISBOA FOI QUASE O FIM DO COMEÇO DE NOSSA VIDA COMO NÔMADES DIGITAIS…

Antes de rodarmos os cursos do oclb pelo Brasil, e logo depois da pesquisa que fizemos nos EUA, moramos três meses em Lisboa, onde prestamos um serviço para os executivos do Rock in Rio.

Lisboa quase foi o fim do nosso nomadismo. É, ainda, a cidade em que sonhamos nos aposentar

Só não ficamos lá porque além de não termos o visto, Carol e eu não poderíamos desistir do nosso projeto “viver sem casa” justamente no segundo país em que moramos. Ainda assim, fizemos amizades lá que, mesmo seis anos depois, continuam firmes.

Depois da experiência nos EUA, em Portugal e a volta ao Brasil, onde “moramos” em cinco cidades em apenas três meses (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre e Curitiba), formamos uma comunidade a partir dos nossos cursos com mais de 250 pessoas.

E foi essa comunidade que nos sugeriu criarmos um programa de viagens para que guiássemos grupos de pessoas aos maiores festivais do mundo.

Em 2018, criamos então o oclb journey. Fomos curadores e guias de grupos para os festivais Sónar, em Barcelona, Rock in Rio e Web Summit Lisboa. No ano seguinte, em 2019, incluímos no roteiro o SXSW (EUA) e o Primavera Sound (Barcelona).

A PANDEMIA PARALISOU NOSSO NEGÓCIO E NOSSA VIDA DE NÔMADES

Nossa empresa existia para pagar as nossas contas. Não sobrava nada. Mas também não faltava. Nos anos dourados, conseguimos passar quatro meses no sudeste asiático, viajando cada um com uma mochila e uma mala pequena, de avião. Quanto mais leves, melhor. O mais puro suco de barato total. 

Até que veio a pandemia. Ironicamente, bem quando demos a nossa primeira volta ao mundo. Estávamos em Bangkok, quando ouvimos falar pela primeira vez da dita cuja, isso, ainda em dezembro de 2019.

No Japão, em fevereiro de 2020, vimos tudo começar a fechar. No aeroporto de Tóquio, onde tomaríamos um avião em direção a Los Angeles, descobrimos que o SXSW seria cancelado

Nós tínhamos alugado uma casa para 12 pessoas em Austin, além de termos um grupo de mais de 20 pessoas que nos contrataram como curadores e guias para essa edição do festival. 

Na viagem para LA, eu praticamente não fechei os olhos. Passei o tempo todo fazendo contas e planejando cenários. Eu já imaginava, ainda em fevereiro, que a Covid-19 se tornaria uma pandemia.

Vi como ela se multiplicou rapidamente na Ásia. Primeiro na China, depois na Tailândia, em seguida para todos os países do continente.

Quando os primeiros festivais dos EUA foram cancelados, justamente o SXSW e o Ultra, Carol e eu começamos a nos preparar para o pior. 

E era o pior mesmo. Não poderíamos mais viajar. Como você é um nômade sem viajar? Não poderíamos mais ir a festivais, principal matéria-prima para nossos serviços

Nossos principais clientes eram organizadores de eventos. De uma hora para a outra, tudo que construímos como carreira e estilo de vida estava em risco.

COMO NOS ADAPTAMOS AO “NOVO ANORMAL” E À IMPOSSIBILIDADE DE VIAJAR

Felizmente, quando aterrissamos nos EUA, o mundo ainda vivia “o antigo normal”. Chegamos, inclusive, a viajar para Austin.

Mas a American Airlines comunicou o cancelamento de todos os voos para o Brasil e nós pegamos um dos últimos — senão o último deles.

As duas primeiras semanas no Brasil foram deprimentes e aterrorizantes em proporções iguais. Não conseguimos voltar ao Rio. O único voo da American Airlines que conseguimos pegar nos deixou em São Paulo.

Alugamos um Airbnb às pressas, um quarto-e-sala no Centro, bem próximo do Largo do Arouche. As ruas pareciam uma cena de filme pós-apocalíptico…

Enquanto adiávamos cursos, negociamos com clientes a devolução de pagamentos do SXSW e tentamos com todas as forças segurar o único contrato de consultoria que tínhamos naquele momento.

Agradecemos imensamente à plataforma de eventos Sympla pela parceria que nos sustentou, literalmente, no primeiro ano da pandemia.

Aos poucos, nos adaptamos ao “novo anormal”. Já meditava diariamente com o aplicativo Headspace, mas passei também a praticar yoga com o Down Dog.

Carol e eu fazíamos aulas de HIT (High Intensive Training) pelo canal SELF do YouTube. Para relaxar, assistíamos a vídeos do canal Cercle ou, se queríamos matar saudades das pistas, alguns clássicos do Boiler Room.

Voltei a fazer terapia, agora online. Nos finais de semana, fazíamos videoconferências de horas com amigos e a família.

Um dos meus momentos mais felizes da semana era sair para fazer as compras no Sacolão de Higienópolis ou comprar um pão na padaria Assaz

Como passamos a frequentar o mesmo mercado todas as semanas, começamos a cozinhar mais. Carol diz que eu aprendi a cozinhar na pandemia e, de fato, preparei muitos pratos elaborados, daqueles que levam horas para fazer. 

NOSSO NOMADISMO GANHOU OUTRO RITMO — MAIS LENTO E CUIDADOSO

Depois de três anos morando em cada lugar por não mais que alguns dias ou semanas — sendo Lisboa a exceção à regra –, finalmente fomos obrigados a parar no mesmo lugar.

Surpreendentemente, isso nos ajudou a criar novos hábitos. Passamos a cuidar melhor da saúde, do nosso relacionamento e estivemos mais à disposição para a família e amigos.

O próximo passo foi o trabalho. Caiu uma ficha que nosso estilo de vida não seria sustentável a longo prazo. Precisávamos de metas. De reserva financeira para a aposentadoria.

Felizmente, desde cedo aprendi a criar um fundo de emergência e foi com ele que estávamos vivendo naqueles primeiros meses de 2020. Repensamos nosso modelo de negócios.

Primeiramente, digitalizamos todos os serviços: cursos, consultorias e produção de conteúdos autorais. Criamos infoprodutos, como o oclb comunidade e o oclb academy

Só não deu para virtualizar as viagens para festivais, mas isso ficaria em pausa mesmo. 

Ao final de 2020, havíamos recuperado o prejuízo do primeiro semestre. Empatamos mais um ano, mas comemoramos como se o Brasil tivesse ganhado o hexa.

Depois de quatro meses em São Paulo, ainda sem vacinas, conseguimos viajar para o Rio. Encontramos a família e alguns poucos amigos. Depois da temporada carioca, passamos mais quatro meses em Florianópolis. 

Nosso nomadismo ganhou outro ritmo. Mais lento, mais cuidadoso. Em cada lugar, passávamos pelo menos três meses.

Nos vacinamos pela primeira vez em Floripa. A segunda, em Porto Seguro. Em todas as paradas, continuamos a priorizar aquilo que nos era essencial: a saúde, a família e os amigos

Como casal, ficamos ainda mais próximos (mas também passarmos a só alugar apartamentos de dois quartos, para cada um ter o seu espaço de trabalho).

Profissionalmente, crescemos cinco anos em dois. Em 2021, tivemos nosso maior faturamento, que só foi superado por 2022 e, em seguida, 2023. 

O nomadismo em marcha lenta nos obrigou a repensar o futuro. Durante a pandemia, lembrei do meu amigo francês e comecei a escrever um livro de memórias (um dia, ele sai).

Comecei a processar tudo que vivi, olhando mais para o passado e presente e menos para o futuro. O tempo passou a ficar mais devagar, mais suave e mais leve. 

IRONICAMENTE, FOI QUANDO PRECISAMOS DESACELERAR QUE MAIS PROSPERAMOS

O mais rico insight desse período foi separar o estilo de vida do negócio, o lifestyle do business.

Quando o caixa voltou a entrar, Carol e eu convidamos consultores para nos ajudar a estrutura nosso negócio e visão de futuro.

Nunca quisemos fundar um negócio de escala. Sempre buscamos criar um negócio como um artista idealiza uma obra. Um projeto de cada vez, sempre com um olhar autoral, feito sob medida para clientes que trabalhamos com e nunca para

Ironicamente, foi quando paramos que mais prosperamos. Financeiramente, mas também na saúde e relacionamentos. 

Os últimos dois anos marcam a terceira e mais recente fase do nosso nomadismo. O tempo que desacelerou nos anos de distanciamento social voltou com força total, papo de 150bpm

A indústria dos eventos está ainda vivendo o esperado “efeito champanhe”, ou seja, uma explosão de ofertas que estavam presas e sob pressão entre 2020 e 2022.

Surgiram novos festivais, voltaram os antigos e veio uma nova invasão de marcas gringas. O segmento corporativo segue o mesmo ritmo.

Só na categoria de eventos de criatividade, inovação e negócios, o Rio de Janeiro agora tem quatro: o já tradicional Rio2C e os novos Rio Innovation Week, Blockchain Rio e Web Summit, que em 2023 foi realizado pela primeira vez fora da Europa.

QUEREMOS PRIVILEGIAR OS EVENTOS PRESENCIAIS, MAS AINDA NÃO VOLTAMOS AO RITMO PRÉ-PANDEMIA (E TALVEZ NUNCA VOLTEMOS)

Mais uma vez, precisamos voltar a olhar para o plano de negócios para priorizar o presencial ao invés do digital.

Temos frequentado o máximo de eventos, festivais, conferências, festas e encontros.

Mas os anos de pandemia nos deixaram mais seletivos. Ainda não entramos no ritmo pré-pandemia e a verdade é que talvez nunca voltemos ao “antigo normal”

Como explicamos em algumas lives, ainda estamos passando por um processo de “fisioterapia social”.

Não pensamos em deixar de ser nômades, mas como aprendi nas sessões de análise, “o desejo reside na falta”.

Carol e eu, vira e mexe, nos pegamos conversando sobre a casa onde moraríamos se voltássemos a pagar aluguel, os cursos que faríamos se ficássemos no mesmo lugar e que tipo de rotinas poderíamos ter para cuidar ainda mais da saúde.

Sempre empacamos na mesma pergunta: “Tá, mas onde morar?”. A maldição de quem já morou literalmente em centenas de lugares pelo mundo é justamente encontrar uma cidade que tenha um pouco do melhor de cada uma que já conhecemos.

NOSSO NOMADISMO NÃO É UM DIFERENCIAL DO NEGÓCIO, MAS UM EXPERIMENTO DE VIVER, TRABALHAR E NOS RELACIONAR NO FLUXO

Uma das principais qualidades de ser nômade é também um de seus piores defeitos: você se sente de todo o mundo, mas ao mesmo tempo não se sente pertencendo a lugar nenhum.

Escrevo este artigo de São Paulo. Ao longo de 2023, morei quatro meses nessa cidade. Nunca mais de um mês corrido, sempre entre idas e vindas. Daqui a duas semanas, Carol e eu viajamos para o Chile.

Será uma parada estratégica antes de tomarmos um voo de 14 horas rumo a Sydney, na Austrália, onde acontecerá a primeira edição do SXSW fora dos EUA desde 1987. De lá, viajaremos para a Nova Zelândia, depois Melbourne, Doha e Lisboa, onde participaremos do Web Summit.

Já não viajamos apenas com malas de mãos. Os hábitos saudáveis que adotamos durante a pandemia felizmente foram incorporados na rotina

Agora, em nossas malas levamos suplementos proteicos, vitaminas, tapete de yoga e algumas faixas elásticas que usamos quando fazemos exercícios em casa.

Carol não abre mão de levar seu moedor de café para onde vai (ela tem dois, um para cada tipo de voltagem, 110 ou 220).

Viajamos mais pesados, procuramos passar mais tempo nos lugares, especialmente se é a nossa primeira vez na cidade. Temos que ter tempo para trabalhar, mas também para turistar. 

Da mesma forma que nos últimos anos o jogo das mídias sociais virou muito mais mídia do que social, a oclb é hoje muito mais business que lifestyle

Nunca quisemos explorar o nomadismo como um diferencial do negócio. Como a Carol já contou em um TEDx que fez em 2018, nosso nomadismo não é nada mais que “um experimento de viver, trabalhar e nos relacionamos no fluxo”. 

Um dia, quem sabe, a gente sossega e para em algum lugar desse mundo. O tempo pode ser relativo, mas o espaço, não. Ele é absoluto. O que muda são as pessoas.

Então, enquanto tivermos saúde e conseguirmos pagar as contas, nosso nomadismo continua. Que seja eterno enquanto dure. 

 

Especialista em festivais, consultor de marketing e nômade digital, Franklin Costa é cofundador da oclb.

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