O sonho é acabar com a xenofobia: como o Abraço Cultural apoia e gera renda para refugiados no Brasil

Dani Rosolen - 7 mar 2022
Equipe do Abraço Cultural Rio de Janeiro.
Dani Rosolen - 7 mar 2022
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O ano era 2014. Copa do Mundo sendo realizada no Brasil. E Copa dos Refugiados também. O evento, da Atados e do Adus, em São Paulo, tinha como objetivo reunir pessoas de diferentes países e promover a integração entre elas e a comunidade local.

Ali, surgiram os primeiros insights do que seria o Abraço Cultural, plataforma de cursos de idiomas (árabe, espanhol, francês e inglês) e cultura ministrados por professores refugiados. Mas essa história a gente já contou aqui, em 2016.

Corta para 2022. Ano de Copa do Mundo (desta vez, no Catar). O Abraço Cultural já tem quase sete anos de estrada e passou por algumas transformações, a principal delas na pandemia, quando adotou o formato online. O projeto também ganhou uma nova sede, chegando ao Rio de Janeiro.

Desde sua fundação, o Abraço Cultural já gerou mais de 3 milhões de reais em renda para mais de 100 refugiados (hoje são 34 contratados de 13 nacionalidades), que se tornaram professores do projeto e, ao longo desses anos, compartilharam sua língua e cultura com mais de 5 260 alunos (eram 242 na primeira edição do curso).

AINDA EM 2016, O RIO ENTROU NA ROTA DO PROJETO

Em 2015, Daniel Morais, fundador do Abraço Cultural, tinha ido ao Rio para lançar, na cidade, o Atados, negócio do qual também é fundador. Ele comenta:

“Nesta época, a Cacau e a Tati me procuraram e sugeriram trazer o Abraço Cultural para o Rio. A gente se animou e acabou que a nova unidade, fundada em 2016, alcançou um público de estudantes ainda maior que a de São Paulo”

Cacau é Carolina Vieira, fundadora, diretora e coordenadora pedagógica do Abraço Cultural Rio de Janeiro; Tati é Tatiana Rodrigues, fundadora, diretora e coordenadora gerencial da unidade carioca.

“Fomos fazendo as coisas sem saber se daria certo, mas conseguimos parcerias com espaços, com a Caritas, que fez a primeira ponte com as pessoas em situação de refúgio”, diz Cacau. “Eu e a Tati temos perfis bem complementares. Eu tinha muita vivência em ensino de idiomas; ela, em aprender idiomas — e as duas sempre interessadas em cultura e em contribuir para um mundo melhor.”

A dupla foi moldando o Abraço Rio e, com o tempo, conquistando público e dois espaços físicos, um naTijuca e outro no Largo do Machado. A sede de São Paulo fica em Pinheiros, mas as unidades do projeto, em ambas as cidades, estão fechadas desde o início do isolamento social.

“A gente foi tomando caminhos diferentes, por exemplo, na metodologia, tanto pelas demandas locais como a dos professores nestes seis anos de história”, diz Cacau. “Mas com a pandemia, o Abraço Rio e o São Paulo se aproximaram de novo pela urgência de começar a oferecer cursos online.”

EM UMA SEMANA, O ABRAÇO SE ADAPTOU AO UNIVERSO ONLINE PARA CHEGAR A MAIS ALUNOS

Os dois espaços, o do Rio e o de São Paulo, sempre foram muito analógicos – até pela proposta dos cursos. Por uma questão de sobrevivência, se viram obrigados a mudar, logo no começo da pandemia.

 “Em uma semana, fizemos um treinamento intensivo com os professores, distribuímos computadores, verificamos o acesso à internet de cada um e logo começamos. Foi uma adaptação muito rápida e isso mostrou o quando estávamos preparados para gestão de crises”

Sobre os alunos, Cacau diz que a adaptação foi natural. Alguns preferiram usar os créditos que tinham para esperar voltar a turma presencial, mas foram se dando conta de que isso demoraria a acontecer e decidiram se rematricular.

A partir da esq.: Roberta Sousa, Cacau Vieira e Tatiana Rodrigues, as três diretoras do Abraço Cultural Rio de Janeiro (Foto: Victor Curi, ex-aluno e voluntário da instituição).

Na época, eles tinham acabado de inaugurar o novo espaço (do Largo Machado) e ficaram receosos de que os alunos que estavam lá há apenas uma semana não topassem a mudança.

“Como a nossa comunicação sempre foi muito franca, o número de cancelamentos efetivos foi muito baixo.”

Com o online, Daniel conta que o projeto conseguiu atingir muito mais gente, atendendo alunos de outros 13 estados, entre eles Bahia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Roraima, além de Portugal e Canadá. “Quando passar tudo isso, provavelmente manteremos o online junto com o presencial”, afirma Daniel. Cacau complementa:

“Um dos nossos objetivos com os cursos online era atingir lugares onde não há acesso fácil a cursos de idiomas. Isso trouxe uma vontade ainda maior de tirar o ensino de idiomas desse lugar elitizado, tanto em termos de referências, sempre do [hemisfério] norte, como em questão de acessibilidade” 

Apesar dos desafios, a ida para o online, diz ela, fez o Abraço alargar seus propósitos e dialogar ainda mais com pessoas em situação de refúgio.

COMO APOIAR REFUGIADOS NO MEIO DE UMA PANDEMIA

Cacau conta que as aulas culturais — em que os professores falam sobre temas que vão da dança à culinária, dentro dos cursos de idiomas — continuaram a ser realizadas. “Foi uma adaptação um pouco mais difícil, mas essas aulas seguiram, com menos sabores, perfumes e sons.”

Já algumas das atividades que envolviam o público geral (não só alunos), como happy hours e feiras, foram paralisadas na pandemia, mas o Abraço deu um jeito de continuar a oferecer a população algum tipo de programação através de parcerias.

“Fechamos com o Sesc, por exemplo, para participar de forma online do Festival Rio Refugia, com ateliês, debates e mesas redondas em 2020 e 2021. A expectativa é que a edição deste ano seja presencial”

Para apoiar empreendedores refugiados que acabaram perdendo sua fonte de renda com a crise, Daniel conta sobre outra ação desenvolvida em parceria com o Atados:

“Criamos a plataforma Abrace Daí, para ajudar a divulgar e dar visibilidade ao trabalho desses empreendedores e fizemos também uma campanha de crowdfunding.”

PARA COMBATER A XENOFOBIA E O RACISMO, O TEMA REFÚGIO AINDA PRECISA SER MAIS TRABALHADO NO BRASIL

Quando o Abraço Cultural começou, não se falava muito em refúgio no Brasil.

“Decidimos fazer a Copa dos Refugiados justamente para aproximar as pessoas do tema. E aí, em 2015, quando lançamos, foi divulgada aquela foto de um menino sírio morto em uma praia da Turquia”

A imagem, afirma o empreendedor, ajudou a sensibilizar o público para a questão da crise migratória e a mostrar o Abraço como uma solução positiva, inclusiva, reforçando a cultura e os valores das pessoas em situação de refúgio.

Longe de ser uma questão distante, continuamos a ver situações tristes ligadas ao tema no Brasil, como o assassinato do congolês Moïse Kabagambe, no Rio, em janeiro deste ano. A missão de continuar abordando o assunto hoje talvez seja mais urgente do que nunca. Segundo Cacau:

“A gente sempre destacou mais o lado celebrativo da diversidade, mas a partir desse caso recente estamos entendendo que essas batalhas também são nossas e que o Abraço precisa ser cada vez mais um espaço de militância”

Com a ajuda de uma rede de apoio de psicólogos, a empresa realizou uma oficina com os professores em que abordaram o caso de Moïse. Os depoimentos impactaram a coordenadora do Abraço:

“Foi muito doloroso ver que eles relataram algumas situações percebidas como xenofóbicas e racistas nas aulas online”, diz Cacau. “Vimos que com o online, aumentamos o alcance de público — mas também nos deparamos com pessoas procurando um curso de idioma, porém não necessariamente familiarizadas com o tema do refúgio.”

NÃO CUSTA LEMBRAR: NÓS, BRASILEIROS, SOMOS PARTE DO SUL GLOBAL

Por outro lado, Cacau diz que percebe o impacto positivo do Abraço em relação ao debate sobre o tema.

Antes da pandemia, por exemplo, eles iam falar em escolas de todos os tipos. “Víamos que os alunos entendiam que o outro é como eles, de carne e osso.” Ou quando recebem feedbacks dos estudantes:

“Lembro de uma aluna que era professora de história, ela já era doutora, inclusive, e disse que, na aula de francês do Abraço, o professor pediu para ela contar o que sabia do Senegal — e ela disse que não sabia nada. Depois do curso, ela afirmou que se deu conta do quão ignorante era sobre o tema e nos agradeceu pela existência do espaço”

Outro tipo de ação que fortalece o entendimento de Cacau e de Daniel de estarem divulgando a questão do refúgio são parcerias, como a realizada com a Pfizer. No começo deste ano, a pedido dos voluntários da empresa, o Abraço, junto com o Atados, preparou um encontro para a equipe com a seguinte temática “Culturas do Sul global: até onde o que nos separa também não nos aproxima?”.

“Montamos uma oficina de uma hora e meia em que três professores do Abraço — a Maryony, da Venezuela, o Hadi, da Síria, e o Jonathan, do Congo — estabeleceram essas trocas com os participantes por meio das histórias que contaram de suas vidas e de suas culturas”, diz Cacau.

CULTURA E PROPÓSITO. OU: POR QUE O ABRAÇO DEU CERTO ATÉ AGORA

Segundo Daniel, o Abraço Cultural seguiu firme nestes anos, mesmo com pandemia, porque tem vários atrativos:

“É um curso de idiomas, mas com pessoas que têm histórias por trás da língua que estão ensinando. Além disso, os alunos têm uma visão crítica diferente. Elas sabem que estão pagando para os refugiados e não para enriquecer o dono de uma escola. Fora isso, nossa pedagogia é muito boa, com base na cultura”

Cacau conta que o público do Abraço é diverso. Tem gente que vem pela proposta dos professores serem refugiados e há também quem venha interessado apenas em aprender o idioma, mas acaba descobrindo outras coisas.

“Acho importante não fazer distinção, como se os estudantes fossem um tipo de público e os refugiados, outro. Quando no Abraço temos uma aluna negra que abre uma apostila de francês e vê na primeira página uma pessoa negra, há uma identificação”

A coordenadora lembra que nós, brasileiros, vivemos num país “muito mais próximo culturalmente de alguns lugares da África e da Venezuela do que da França ou dos Estados Unidos”.

“Quando mudamos as referências, não estamos só querendo valorizar o que essas pessoas têm, mas criar uma ponte, um ponto de encontro. Esse é um grande diferencial do Abraço.”

Outro ponto positivo — e que, segundo Daniel, mostra o sucesso da proposta — são as histórias dos professores.

“Já tivemos como professor, aos 18 anos, o Steve (leia a história dele aqui), que hoje está formado em Direito. O Ali, que saiu na outra matéria do Draft e voltou para a Síria, pois conseguiu um trabalho lá; a Genevieve, que também foi mencionada na outra reportagem — ela já era professora no Haiti e voltou para lá construir uma escola, depois que realizamos uma campanha de crowdfunding; o Guilan, que foi trabalhar na Pfizer e muitos outros.”

Tem também, diz Cacau, professores do Abraço que se descobriram na Pedagogia e estão cursando faculdade na área e seguindo esta habilidade “despertada” pelo Abraço.

O QUE O PROJETO PLANEJA ABRAÇAR EM UM FUTURO NÃO TÃO DISTANTE

Para manter esse sucesso, os gestores do Abraço planejam realizar mais experiências que toquem na questão cultural e política dos refugiados, levando isso a empresas e outros grupos e ajudando a divulgar cada vez mais esta bandeira.

Outro projeto em estudo é lançar cursos para níveis mais avançados. No momento, o Abraço Cultural está com inscrições abertas (custa 1 175 reais ou cinco parcelas de 235 reais) para turmas online previstas para começar na segunda semana de março.

Os cursos in company, pelo qual já passaram colaboradores de organizações como 99, Nissan, Nubank e Consulado da Inglaterra, tinham sido paralisados na pandemia. Mas, de acordo com Cacau, devem voltar a ocorrer neste ano, pois já há demanda.

“Tivemos três contatos de empresas na última semana. Agora vamos avaliar junto deles se no esquema online vale fechar um grupo específico ou é melhor oferecer descontos para que os funcionários façam parte de turmas regulares”

No mais, a meta é aumentar cada vez mais o número de professores e promover formações educacionais continuadas que façam sentido não só para a sala de aula, mas para a vida dos refugiados:

“Acho que isso nós já estamos conseguindo fazer”, diz Cacau. “Antes da pandemia, por exemplo, havia professores que eram totalmente analógicos, não sabiam abrir o Word… Hoje, eles fazem atividade online e interativas em suas aulas.”

 

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