“Os desafios enfrentados por famílias de crianças com deficiência têm mais a ver com o preconceito do que com a deficiência em si”

Márcia Freire - 3 jun 2022
Márcia Freire, mãe de Rodrigo e criadora da comunidade Crianças Especiais.
Márcia Freire - 3 jun 2022
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Eu nasci e vivi grande parte da minha vida em Boquim, cidade do interior de Sergipe com menos de 30 mil habitantes. Ainda hoje moro aqui.

Mas não fui sempre a “Márcia mãe do Rodrigo”. Antes, eu era uma jovem como outra qualquer. Trabalhava bastante, às vezes ia a festas com minhas amigas, tinha minha rotina.

As pessoas com deficiência passavam por mim e eu as via como em um tipo de mundo paralelo. Muitas vezes, eu me sentia empática e solidária,  embora não me visse como alguém apta a interagir com elas

Nesta época, com meus 20 e poucos anos, estava em um relacionamento e nutria o desejo de ser mãe, mas não esperava que isso acontecesse logo.

Aos 26 anos, no entanto, aconteceu.

A GESTAÇÃO FOI TRANQUILA PARA MIM E PARA O BEBÊ, MAS QUANDO RODRIGO NASCEU, DESCOBRI QUE ELE TINHA UMA SÍNDROME RARA

Apesar de não ter sido uma gravidez planejada, eu estava feliz, pois aquele era um desejo genuíno que tinha.

Passei a gestação tranquila em relação à minha saúde e, aparentemente, a do bebê também.

Com o parto, comecei a vivenciar a maternidade solo de fato, pois o pai do Rodrigo não me acompanhou nessa nova realidade.

Quando meu filho tinha 1 ano, recebi o diagnóstico: Rodrigo tinha a síndrome Rubinstein-Taybi (SRT), uma doença genética causada por anomalia do cromossomo 16

Os portadores apresentam, dentre outros sintomas, deficiências físicas e mentais, subdesenvolvimento na estrutura ósseo facial, pálpebras caídas (ptose) e polegares largos. Um terço dos pacientes também apresenta cardiopatias congênitas.

Na época, em 2004, eu me senti em um abismo, sozinha, sem ter informações completas sobre aquela síndrome considerada rara.

Precisei parar de trabalhar para cuidar dele, que demandava atenção exclusiva. Rodrigo ainda parecia ter poucos meses de vida, estava se alimentando mal e observei que tinha dificuldades para enxergar.

Fomos a psicólogos, terapeutas, cardiologistas, neurologistas. Recebemos a notícia de que meu filho tinha também problemas cardíacos.

Enquanto isso, continuava a ter alguns obstáculos para atingir marcos do desenvolvimento, como andar e falar. Só começou a se sentar sozinho quando já tinha 4 anos.

CRIEI UMA PÁGINA NO FACEBOOK PARA ME CONECTAR COM PESSOAS QUE VIVIAM OS MESMOS DESAFIOS QUE EU. O PRINCIPAL DELES: O PRECONCEITO

O tempo passava e nós adaptávamos…. Passei a primeira década após o diagnóstico de Rodrigo me sentindo solitária.

Até que, em 2015, fui para as redes sociais e fundei a página Crianças Especiais. Meu objetivo era encontrar outras famílias que viviam a mesma realidade ou talvez algo parecido com todos os meus dias

Lá eu me encontrei! Foi a abertura para momentos de grandes descobertas, aprendizados e convivência, mesmo que à distância, longe das pessoas.

As maiores dificuldades que as famílias com crianças e adolescentes com deficiência, no geral, passam estão muito mais ligadas ao preconceito e barreiras impostas pela sociedade do que à deficiência em si.

Os olhares, comentários e julgamentos são grandes dores que carregamos, muitas vezes em silêncio.

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NÃO REPRESENTAM APENAS ESTATÍSTICAS. ELAS SÃO DE CARNE E OSSO E PRECISAM SER RESPEITADAS

Recordo de uma vez em que estávamos em um parque de diversões, em um daqueles brinquedos de girar, que estava quase completo, exceto por um lugar vago ao lado do meu Rodrigo.

Um homem colocou uma menina que parecia ser sua filha para se sentar ao lado dele, mas quando olhou para o meu filho e identificou que ele tinha deficiência, tirou a menina de lá

Márcia com Rodrigo na praia.

Foi marcante, pois nesse dia eu não me calei. Falei que sabia que ele tinha feito aquilo por preconceito em relação ao Rodrigo.

Quando ele tentou negar, insisti e disse que era uma bobagem, pois meu filho era uma criança amável, que não faria mal algum a ela.

Mesmo assim, ele não mudou de ideia, mas meu filho teve ainda mais certeza de que eu estava com ele para o que fosse preciso.

Se pesquisar os últimos dados sobre pessoas com deficiência no Brasil, você vai encontrar que cerca de 8,4% da população acima de 2 anos têm algum tipo de deficiência — o que representa um  universo de 17,3 milhões de pessoas no país, segundo últimos dados do IBGE apurados por meio do estudo da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS).

Muitas delas estão aqui no meu estado, e um deles era meu filho Rodrigo.

Em 2019, Sergipe era o estado brasileiro com o maior número de pessoas com deficiência (12,3%), índice acima da média nacional.

Só que é preciso lembrar que essas pessoas não são apenas números. Retratá-las de forma humana, caso a caso, com verdade e pureza, é essencial.

A PÁGINA NO FACEBOOK VIROU UMA COMUNIDADE COM 3,5 MILHÕES DE PESSOAS E GANHOU ATÉ UM PROCESSO DE ACELERAÇÃO

Letícia Lefevre (à esq.) e Márcia Freire, criadoras da comunidade Crianças Especiais.

Acredito que tenha sido isso o que conseguimos fazer com a comunidade Crianças Especiais: dar visibilidade e representatividade a essas crianças e jovens.

Por meio da página criada no Facebook, conheci a Letícia Lefevre, também mãe e advogada engajada na causa das pessoas com deficiência.

Juntas, nós começamos a construir a comunidade que temos hoje.

Um grupo integrado de apoio a famílias de crianças e adolescentes com deficiência formado por 3,5 milhões de pessoas que interagem em diversas plataformas, como site, Facebook, Instagram e WhatsApp.

Ao longo dos anos, a comunidade atraiu novos integrantes de todos os estados do Brasil e também do exterior — principalmente em Portugal (87 mil), México (39 mil) e Argentina (36 mil).

E este ano veio a boa notícia: o Crianças Especiais foi selecionado para ser uma das 11 comunidades brasileiras escolhidas pelo Facebook para fazer parte de um programa global de aceleração, o Aceleradora de Comunidades 2021

A jornada incluiu mentoria, peer learning, conexão com o ecossistema e suporte financeiro. Como resultado da aceleração, o Crianças Especiais lançou o curso online “Tudo sobre os Direitos da Criança com Deficiência”.

PERDI MEU FILHO, MAS NÃO O PROPÓSITO DE AJUDAR OUTRAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E SUAS FAMÍLIAS

O momento agora é de seguir com o trabalho, apesar da minha dor. Isso porque, em dezembro de 2020, o Rodrigo partiu após meses de pandemia que nos isolaram, o que não fez bem a ele.

Com a interrupção das aulas presenciais, ele ficou cada vez mais desanimado, passou a se alimentar mal e perdeu o entusiasmo.

O coraçãozinho dele não aguentou. Ele tinha apenas 17 anos, mas certamente deixou seu legado.

E senti que precisava continuar, pois assim como eu, que moro no interior, em uma cidade que não tem sequer uma ONG para nos orientar, há outras tantas pessoas na mesma situação que seguem cuidando de seus filhos

Observo que, às vezes, olhamos tanto, mas tanto para as limitações que nossos filhos com deficiência possuem que esquecemos o quanto eles têm para nos oferecer, nos ensinar. 

Um dos maiores ensinamentos que Rodrigo me deixou foi a persistência e o olhar amável para o mundo. Deste modo, por que então eu deixaria de sonhar?

RODRIGO ME ENSINOU MUITO SOBRE A VIDA. SÃO ESSES APRENDIZADOS E A MEMÓRIA QUE TENHO DELE QUE ME AJUDAM A CONTINUAR SONHANDO

Recentemente, viajei para o Rio de Janeiro, para conhecer  a Jessica, que também tem a síndrome Rubinstein-Taybi (SRT), e para Curitiba, onde conheci o Leonardo, que tem paralisia cerebral e é filho de uma amiga.

Na capital paranaense, também tive a oportunidade de ver mais de perto o trabalho de um instituto de educação voltado a crianças com deficiência. Atuar em um lugar assim tornou-se um grande sonho particular, pois estar com todas essas crianças me fez muito feliz.

Além disso, ainda quero colaborar cada vez mais e melhor com as famílias que fazem parte da comunidade Crianças Especiais.

Quero mudar vidas, assim como Rodrigo fez mudando a minha para melhor, me transformando em alguém que olha com mais afeto para o outro

Aprendi com meu filho a ser uma pessoa mais paciente em relação ao devido momento em que cada coisa deve acontecer.

Com ele, o tempo parecia passar mais calmo, vi que não precisava ter tanta pressa… Hoje, ele vive em mim por meio das memórias que tenho dele. E é isso que me move.

 

Márcia Freire, 44, é fundadora da Comunidade Crianças Especiais, projeto de apoio a famílias de crianças e adolescentes com deficiência. O grupo, fundado por ela e atualmente administrado também por Letícia Lefevre (advogada e cofundadora do projeto), soma mais de 3,5 milhões de pessoas. Tendo estudado até a oitava série, Márcia já trabalhou com a entrega de quentinhas em um negócio da família em Sergipe e como feirante vendendo frutas. Seus sonhos são muitos a partir do olhar para o outro.

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